Um mundo de possibilidades

Ladislau Dowbor considerou a Rio+20 tímida. Mas criou espaços e oportunidades para os que querem dar um novo rumo ao planeta

Uma agenda para o futuro e um contexto favorável: são os ganhos da Rio+20, na visão de Ladislau Dowbor, professor do Núcleo de Estudos do Futuro, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e piloto de um site muito rico em informação científica e discussões sobre o planeta (dowbor.org). 

Hoje existe uma concentração do poder corporativo, mas a crise sugere oportunidades. Temos um documento mais fraco, mas um contexto de mais oportunidades (Foto: Danilo Ramos/Revista do Brasil)

Se o documento final é mais fraco que o da Eco-92, o esgotamento da agenda neoliberal e a retomada do papel do Estado permitem vislumbrar um legado positivo. Mas, para o autor de O Que É o Poder Local? e de Democracia Econômica, será um grande cataclismo o que vai impulsionar a humanidade a encontrar um padrão sustentável de desenvolvimento.

Que balanço o senhor faz do documento elaborado pelo Brasil e negociado entre os países participantes da Rio+20? 

Eu vejo um problema no todo. Os 283 pontos mencionam essencialmente “recomendamos que…”, “sugerimos que…”, “notamos que…”, não tem nenhum imperativo, afirmação mais forte, que determine a urgência no conjunto de informações. Também não há praticamente nenhum direcionamento para as causas dos problemas. Por exemplo, fala-se das dificuldades com a crise econômica, mas não dos bancos que criam essa crise. Menciona-se a desigualdade, mas não a falta de desapropriação das grandes fortunas. O aumento dos preços e a rotatividade do mercado de commodities, mas não os sistemas especulativos internacionais. Lista os problemas da contaminação das águas, mas não menciona os agrotóxicos e as formas de contaminação. Isso é um pouco grave.

O senhor acha que apenas mencionando as origens desses problemas o documento já seria mais efetivo?
Ou apontasse com força que há certas práticas que devem cessar, em particular coisas como os sistemas especulativos internacionais, a proteção dos paraísos fiscais, a proliferação das armas – e depois se queixam da violência, mas são grandes empresas que produzem essas armas, e são conhecidas. 

E que aspectos o senhor considera positivos?
O documento abre espaços para que a gente possa começar a cobrar. Por exemplo, o segundo ponto diz que erradicar a pobreza é o maior desafio global que enfrenta o mundo hoje. Apontar a desigualdade e a pobreza como eixo principal é extremamente positivo, porque, quando você começa a tirar as pessoas da pobreza, gera dinâmicas inclusivas, gera emprego e obtém apoio político para maiores transformações. Que é, aliás, o que vem ocorrendo no Brasil. 

Mas são só dos governos as responsabilidades pelos problemas?
Outro ponto muito positivo, o 47, aponta a necessidade de transparência das corporações, porque a gente só grita contra a falta de transparência do governo, dos políticos corruptos. Mas, as empresas, o que fazem as grandes empresas, em diversos setores? Como estão estruturadas as dinâmicas financeiras dos bancos, enfim? Há ganchos que se abrem, a partir dos quais há espaço para batalhar. Bem ou mal, é um documento assinado pelos diversos países. Se a gente compara, na Rio+20, com um documento muito bom preparado pelo Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e confronta com o Vision 2050, com a visão das corporações para 2050, encontra uma evolução forte. As corporações em grande parte são a causa dos problemas, mas são tão fortes que, sem sua participação, não serão os verdes nem a esquerda que vão levantar esse piano.

Desde que as pessoas sejam bem informadas.
Isso é outro ponto importante discutido na Rio+20, que a gente também está discutindo aqui no Brasil: o resgate do uso e do poder das telecomunicações. No documento, isso é colocado como um instrumento essencial. Ou seja, é uma guerra evidente, sobretudo para nós, que estamos dominados por algumas corporações da mídia, e por isso a democratização é essencial.

Mas o texto é relativamente cordial com­ ­as corporações…
As corporações em grande parte são a causa dos problemas, mas são tão fortes que, sem sua participação, não serão os verdes nem a esquerda que vão levantar esse piano
Quando você associa o grande eixo da conferência, o ambiental, com a dimensão da desigualdade, que é assegurar o emprego e a inclusão das pessoas, fica evidente toda a lógica de que a gestão desse processo se dê no nível local, nas cidades
“We also invite business and industry… to contri­bute”, diz um dos pontos. É simpático: convi­damos a indústria a contribuir (risos). É um convite. Mas outros pontos tocam no conceito de transfe­rência de tecnologia e, no fim do documento, tem um ­capítulo só sobre isso. É fundamental entender que quem controlava no século passado as empresas, as indústrias e as máquinas é quem hoje controla a ­comunicação e a informação, as tecnologias do ­conhecimento. E o acesso ao conhecimento é vital. O documento tem uma parte inteira sobre a transferência de tecnologias. Não menciona patentes, copyrights e royalties – o que faz parte da timidez do texto –, mas menciona, sim, o direito dos países de produzir seus medicamentos, de se posicionar em relação à Organização Mundial do Comércio e aos tratados de propriedade intelectual. É um gancho que abre uma brecha em toda essa blindagem no campo do oligopólio e no campo ético.

E como as partes se relacionam para acompanhar a aplicação dessas demandas?
Tem uma coisa que pode ser muito interessante, que está no ponto 84. É o universal inter­governmental high-level political forum – um ­fórum intergovernamental, universal e de alto nível –, no qual são detalhadas 12 funções desse corpo, que ­seria um tipo de fórum mundial de personalidades respeitadas. Isso deverá ser submetido às pro­postas elaboradas pelas Nações Unidas. O mais ­provável é que será de 30 representantes, equi­l­i­brando os ­diversos continentes, nos diversos segmentos ­sociais. Deverá ser aprovado na próxima reunião da Assembleia Geral da ONU, em setembro. ­Pela primeira vez a gente teria um corpo de refe­rência planetária. Temos problemas globais, mas não ­temos governos globais. Dos 193 países membros, cada um puxa para o seu lado, e isso está levando o planeta para o buraco. 

O problema é que a representatividade das Nações Unidas em relação aos interesses do planeta é bastante distorcida, não é?
Aliás, o ponto 92 sugere repensar a representatividade dos organismos internacionais. Na época do sistema Bretton Woods (conferência que reuniu 44 países aliados, ainda em 1944, para discutir uma integração econômica e financeira com vistas a reerguer o capitalismo após a Segunda Guerra), grande parte dos países do mundo não existia como nação, eram colônias. Agora, no sistema das Nações Unidas, a Ilha de Vanuatu, no Pacífico, que tem 30 mil habitantes, tem um voto e a Índia, com mais de 1 bilhão de habitantes, tem um voto… 

As corporações em grande parte são a causa dos problemas, mas são tão fortes que, sem sua participação, não serão os verdes nem a esquerda que vão levantar esse piano

Muito parecida com o nosso Congresso Nacional, guardadas as devidas proporções…
Exatamente. Estou dizendo o óbvio. Mas no particular a estrutura de votos no Conselho de Segurança, nos órgãos de financiamento internacional, é pré-histórica. É um avanço interessante que em diversas partes do documento haja a necessidade de planejamento, que tinha sido jogado para fora. “O mercado iria resolver”, né? É importante também, no item 104, a necessidade de repensar o sistema de indicadores para monitorar os resultados a serem buscados.
Medicina para todos, por exemplo, o ponto 142, é muito importante – ou seja, o direito dos países de produzir seus medicamentos. E ainda um capítulo importante sobre emprego e renda. Eu uso muito o exemplo do que a Índia está fazendo. Lá há uma lei da garantia do emprego. Cada cidade é obrigada a ter um cadastro de projeto de mão de obra, pagando um salário básico, e tem 30 dias para assegurar trabalho a uma pessoa que precise. Isso reduz a pobreza crítica e promove um conjunto de atividades, como arborização urbana, saneamento básico, drenagem de água, um monte de coisas que tem pra fazer. É um absurdo ter um monte de coisas a fazer e um monte de gente desempregada.  

Volta-se à questão: quem monitora a execução das intenções? Qual o papel das cidades?
Esse documento da Rio+20, que é o geralzão, tem de ser visto no contexto do movimento das cidades, do C-40 – um grupo de, na realidade, 59 cidades do mundo que decidiram fazer a lição de casa sem esperar os grandes poderes. E há milhares de cidades do mundo assumindo esse papel. Quando a gente pensa assim, arborizar a cidade, empregar as pessoas, assegurar educação mais decente e políticas sociais básicas, isso funciona muito no nível local. Quando você associa o grande eixo da conferência – o ambiental – e a dimensão da desigualdade, que é assegurar o emprego e a inclusão das pessoas, evidencia toda a lógica de que a gestão desse processo se dê no nível local. 

A educação não deveria ser um processo mais integrado aos desafios da sustentabilidade?
Houve algumas tomadas de posição, por exemplo, da Fundação Getulio Vargas, de reforçar um ensino de desenvolvimento sustentável. O Instituto Paulo Freire faz referências fortes a educação ambiental. O mundo da educação no Brasil são cerca de 50 milhões de pessoas, entre alunos, educadores. Tem a mídia alternativa muito presente – outro eixo importante de participação, que se reforça na sua dinâmica informativa. Então, uma coisa é avaliar o documento, a fragilidade, as nações, os governos… Outra coisa é ver isso como um destravador de uma tendência planetária, de uma consciência mais ampla, que acontece de maneira muito forte. Uma coisa é dizer que estamos avançando, outra coisa é pensar se os avanços são compatíveis com o ritmo de andamento dos problemas.

Quando a comunidade científica começou a pautar governos e a ONU, em 1972, na Conferência de Estocolmo sobre desenvolvimento sustentável, estava em questão o mercado ser o regulador – Estado pequeno, mercado livre. Houve alguma reversão desse poder concentrado do mercado?
Tem mudanças muito fortes. A principal provavelmente é o que a gente chama de financeirização da economia. Está no meu site uma pesquisa inata­cável do instituto federal suíço de pesquisa tecnológica. Dos 37 milhões de empresas que estão no banco de dados dos bancos, pegaram as 43 mil principais e estudaram quem controla quem. Resultado: 80% do mundo corporativo é controlado por 737 corporações e, desse grupo, um núcleo duro de 147 con­trola 40%. Destas, 75% são intermediários financeiros. Na realidade, você não tem mais produtores. E a crise mostra que eles não conseguem se administrar. 

A sustentabilidade foi apenas alegoria no processo de perversão dos modelos econômicos?
Em 1972, a repercussão (da Conferência de Esto­colmo) é relativamente frágil, mas há um contexto bom, o contexto dos anos de ouro do pós-guerra. Em 1992, é muito mais forte. Sai dali a Agenda 21, mas com toda a força do liberalismo avançando, do pós-Ronald Reagan, pós-Margaret Thatcher. Os grandes poderes não dão bola para a Agenda 21. Você tem um documento excelente, e muito pouco espaço. ­­E hoje tem esse sistema que reforçou muito a concentração do poder corporativo, e uma crise que sugere oportunidades. Muito mais oportunidades. A Agenda 21, de 1992, era um documento forte, com menos contexto. Hoje, em 2012, temos um documento mais fraco e mais contexto, mais oportunidades.

As corporações financeiras ainda mandam…
Quem, por exemplo, viu o filme Trabalho Interno (Inside Job, sobre os movimentos especulativos que levaram à quebra de gigantes como o banco Lehman Brothers, da seguradora AIG e de toda a economia americana) entende que se tratou essencialmente de fraude, de bandidagem, de apropriação indébita dos recurso alheios, de ganhar dinheiro não financiando produção, mas simplesmente especulando, desorganizando a economia. Isso provoca indignação, muita gente está começando a entender

O filme revela que parte das pessoas que operavam para que os mercados fizessem os estragos que fizeram desfruta de posições de poder no governo Obama e nas universidades, como Harvard e Colúmbia.
Nesse sentido, temos um texto bastante surrealista. Eu acho vital o papel do conjunto da mídia alternativa, das redes sociais, dos mais diversos sistemas com que as pessoas se comunicam, para criar outra cultura. 

Quando você associa o grande eixo da conferência, o ambiental, com a dimensão da desigualdade, fica evidente toda a lógica de que a gestão desse processo se dê no nível local, nas cidades

O conceito de sustentabilidade já não é um termo acadêmico. As pessoas estão cada vez mais se apropriando dele?
Eu acredito nesse avanço. Meu trabalho é essencialmente de disseminação dessa compreensão científica. E temos de batalhar por essas redes de professores, de ciência aberta. Temos de informar, proporcionar a muito mais gente a compreensão dos desafios, para que haja pressão política, para que as coisas mudem.

Existe possibilidade de um capitalismo verde? Que se adapte para ser benéfico às pessoas? 
Quando você diz isso, eu me lembro de uma reunião com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Ele respondeu a essa questão com outra: pode um tigre ser vegetariano (risos)? Eu acho que não seria esse o enfoque. As chamadas macrotendências, as florestas, a vida nos mares, os climas etc. são demasiado graves para que a gente possa ignorar. Muitas empresas entenderam o desafio e estão digerindo as transformações internas para passar a outro patamar tecnológico.

Faltam teóricos para formular diagnósticos e projetos de modelos de desenvolvimento?
Diversos autores, como Lester Brown, Ignacy ­Sachs, Paul Krugman, Joseph Stiglitz, apontam para onde vai estourar o sistema primeiro. Por que se criou a ONU e todo o primeiro sistema internacional de nações? Porque a Segunda Guerra Mundial foi um negócio pavoroso de onde saiu uma base política para a transformação. O mais provável é que haverá um cataclismo maior. Temos 1 bilhão de pessoas passando fome, 11 milhões de crianças morrem, por ano, de fome ou por falta de acesso a água limpa, 25 milhões de pessoas já morreram de aids. A conta já é alta. Provavelmente um choque mais repentino, maior, criará base política para uma nova transformação. Para mim, todo o sistema está mudando. Eu tenho dúvidas se o conceito de capitalismo se aplica ao que a gente está vivendo. A mais-valia já não é extraída por um produtor

Os bônus pagos a executivos de corporações financeiras já superam os dividendos pagos a acionistas de indústrias… 
Não tenha dúvida. As coisas estão mudando e, pra mim, as qualificações capitalismo e socialismo nos remetem a um conjunto de conceitos que não se aplicam, porque não dão conta do que está acontecendo. Vale mais a pena fazer mais trabalho empírico para entender o que está acontecendo.  

Os velhos rótulos desbotaram?
A gente deve se dar o trabalho de reavaliar. ­A ­China é capitalista ou socialista? Se você tem um país com 15 anos de crescimento, que tirou 350 milhões da pobreza, e segundo as palavras do Peter Spink, inglês radicado no Brasil, é o único que está fazendo a lição de casa em termos ambientais, o mínimo que a gente tem a fazer é saber como ela funciona. Eu vi ontem um documentário sobre a educação em Xangai. Professores entram às 7h e saem às 17h. Nesse período, têm duas aulas de 40 minutos. O resto é apoio a alunos, reunião e elaboração de matérias com outros professores. Há muita coisa nova acontecendo.

O senhor acredita que esse Centro Rio+ pode ser um polo de difusão desses fragmentos de conhecimentos necessários para cada área? De educação, de saúde, de agricultura, de tecnologia…
Há muito menos polos agora. O que há é trabalho em rede. Tem um conceito que é importante, que chama cosmopolitan democracy. Uns caras que estudaram as mais variadas unidades… Qualquer hospital hoje tem acordos internacionais, intercâmbio de médicos, troca de tecnologias, qualquer universidade tem. Na PUC-SP, fizemos levantamentos e tivemos cerca de 1.600 eventos internacionais em um ano. Qualquer empresa média hoje tem um conjunto de sistemas de relações internacionais. Então se está gerando, não através de governo, da ONU, nem de Fundo Monetário, um tecido interativo que cobre todo o planeta, em que a comunicação gira na velocidade da luz, e está tudo na internet. Está se gerando um conjunto de dinâmicas horizontais muito interessantes. Na Alemanha de antes da crise, por exemplo, está na Economist: 60% das poupanças das famílias alemãs, que é muita coisa, está em caixas de poupança locais, comunitárias, das cidades.

A poupança não está concentrada em poucos bancos?
Muito pouco foi para o sistema especulativo. São muitas dinâmicas. E a gente tem de buscar como se identificam os quistos sociais. Por exemplo, São Paulo está a 14 quilômetros por hora, gastam-se 2h43 por dia no trânsito, e não se consegue mudar. As pessoas continuam pensando que produção é produzir tênis, mesa, automóvel, e isso aqui está se tornando uma coisa pequena dentro do universo produtivo. A gente sabe o que é agricultura e o que é a indústria, e depois vem todo um conjunto de “outros”. O consultor da IBM, o padre, a prostituta são todos um conceito “residual”. Se num universo em que 75% do que está estudando é “outros”, você tem um problema.

As grandes cidades perderam capacidade de propor soluções? 
Eu acho que isso é muito difícil porque nós tivemos um êxodo rural menos por atração e mais por ex­pulsão. Foi a expulsão do campo que gerou as metrópoles, e as periferias. As seis grandes metrópoles brasileiras são essencialmente muito complicadas. Eu acho que o movimento Nossa São Paulo, que agora está se multiplicando, é um eixo muito legal porque começa a tomar em mãos a cidade. O que é problema sempre é oportunidade. A cidade tem pela frente o objetivo de criar uma vida decente, qualidade de vida, felicidade interna bruta, acesso a segurança, saúde, tem de ter a descentralização, assegurar que cada bairro tenha serviços acessíveis. Você pode descentralizar todos os serviços e manter a gestão coerente. O Brasil, com essa desigualdade, frente a tempos tenebrosos que vêm por aí, tem uma imensa oportunidade de ter um horizonte de expansão econômica aqui dentro e se apoiar nessa expansão. Isso cria apoio político, estabilidade e proporciona as oportunidades.

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