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Todos perdem: Entenda os riscos da PEC que facilita a privatização de praias

Em audiência pública, especialistas, ambientalistas e pescadores alertam que a PEC relatada por Flávio Bolsonaro trará benefícios à iniciativa privada e ao setor imobiliário. E prejuízos ambientais e econômicos

Waldemir Barreto/Agência Senado
Waldemir Barreto/Agência Senado
Aprovada na Câmara, a proposta retira da União o domínio de praias e o contorno de ilhas e margens dos rios e das lagoas

São Paulo – Tramita no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022 que quer retirar da União a posse de praias e outras áreas na costa marítima, conhecidas como terrenos de marinha. Essas áreas incluem ainda aquelas que contornam as ilhas, margens dos rios e das lagoas, em faixa de trinta e três metros medidos a partir da posição da maré cheia. A ideia é transferir o domínio para a inicitiva privada, estados e municípios.

Na tarde desta segunda-feira (27), especialistas e comunidades tradicionais reunidos em audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa classificaram a medida como um “retrocesso”. Isso porque trará prejuízos ao meio ambiente e aos direitos da população em benefício dos interesses do poder econômico.

A bióloga e doutora em Ciências Marinhas Marinez Eymael Garcia Scherer, coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente (MMA), alertou que a eventual aprovação da PEC ampliaria os riscos ecológicos ao litoral brasileiro. Principalmente a erosão por conta da ação humana predatória devido ao avanço imobiliário.

A especialista citou casos já considerados alarmantes no Ceará e em Santa Catarina. Nesses estados a faixa costeira está em estado avançado de erosão. No caso catarinense, os prejuízos ultrapassaram R$ 1 bilhão em 2022, segundo o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, plataforma do Sistema Nacional e Proteção e Defesa Civil que engloba custos materiais, ambientais e econômicos, entre outros.

Os terrenos de marinha

“Os ecossistemas têm funções que nos trazem serviços ecossistêmicos, que, por sua vez, nos trazem benefícios que nos dão valores ecológicos, culturais, econômicos e bem-estar humano. Se a gente perde essas estruturas, a gente perde esse bem-estar humano, economia, valor, o que é importante para todas as pessoas, além de termos um gasto que acaba recaindo sobre toda a população brasileira. A gente nem precisa falar no quanto está sendo disponibilizado (em recursos) para o RS, muitas vezes por conta de áreas que foram ocupadas e não deveriam estar ocupadas por serem de preservação permanente”, comparou

Ao defender que o Brasil seja mais cuidadoso com a preservação do litoral, a especialista citou casos de países como México, Espanha, Suécia, Portugal, Uruguai, Peru, Chile e Argentina, que impõem limites mais rígidos para a proteção costeira. Segundo a coordenadora, em alguns casos as zonas de proteção chegam a 250 metros para a conservação da faixa litorânea.

No Brasil, os chamados “terrenos de marinha” são áreas da União no litoral delimitadas por uma métrica de 33 metros para o interior do continente. A medição faz referência a uma média das marés registrada no ano de 1831. Marinez Scherer afirmou que acabar com a “instituição dos terrenos de marinha” é algo que tende a reduzir a faixa de segurança para a preservação da costa brasileira, trazendo riscos variados ao país.

PEC e privatização das praias

“Seria perder ecossistemas, qualidade de vida e bem-estar humano nas cidades costeiras, [trazendo] um bônus para pouquíssimos e um ônus muito alto para toda a sociedade brasileira. Seria ainda retirar do Estado a possibilidade de planejamento futuro, de ordenar o bem público e delimitar a ocupação de áreas vulneráveis. É um gol contra, um tiro no pé, um retrocesso porque estaremos indo contra o que o resto do mundo vem fazendo para proteger essas áreas”, emendou.

De autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA), a proposta tramita atualmente no Senado como PEC 3/2022, e já recebeu aval da Câmara dos Deputados. O texto prevê que sejam mantidas sob o domínio da União áreas relacionadas ao serviço público federal, unidades ambientais federais e áreas não ocupadas.

Ao mesmo tempo, fixa que deverão passar para o domínio de estados e municípios “as áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos”. Também prevê “domínio pleno” para “foreiros [indivíduo que tem direito de uso de um imóvel] e ocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação da futura emenda constitucional decorrente da PEC”.

O texto da proposta diz ainda que os terrenos de marinha poderão passar para o domínio de “ocupantes não inscritos, desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos cinco anos antes da data de publicação da emenda constitucional e seja formalmente comprovada a boa-fé”. Os críticos da PEC apontam que a medida cria um ambiente jurídico favorável a uma maior ocupação da costa de forma prejudicial ao meio ambiente e aos direitos da população em benefício dos interesses do poder econômico.

Vulnerabilidade ecológica

No Senado, a PEC tem como relator Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O parlamentar já apresentou parecer favorável à aprovação da medida. “Em sua origem histórica, a importância dos terrenos de marinha esteve vinculada à ideia de defesa do território, principalmente ao objetivo da segurança da costa brasileira contra invasões estrangeiras. Todavia, atualmente, essas razões não estão mais presentes, notadamente diante dos avanços tecnológicos dos armamentos que mudaram os conceitos de defesa territorial”, defende no texto, ao afirmar ainda que a PEC “traz regramento adequado e equilibrado para os terrenos de Marinha”.

Ao rebater a defesa do senador, o deputado Túlio Gadelha (Rede-PE) disse que a proposta compromete manguezais e outras áreas da costa, além de ampliar a vulnerabilidade ecológica desses locais diante de acordos políticos a serem geridos pelos municípios e por representantes do poder econômico.

“Todos nós sabemos que só a União tem a capacidade de cuidar. É a União que consegue fazer o controle, fiscalizar através de instituições como Ibama, ICMBio, a própria Marinha. Quando a gente tira dela essa competência de gestão desses espaços e atribui isso ao município ou à iniciativa privada, está deixando (essa responsabilidade) com o ponto mais frágil (do sistema federativo) ou então com pessoas que a gente não sabe se têm responsabilidade com aquele ecossistema.”

Pescadores dizem não à PEC e à privatização das praias

Representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), Ana Ilda Nogueira Pavão também manifestou preocupação com a medida durante o debate no Senado. Ela disse que o segmento vê a proposta como uma via para favorecer o “desmatamento desordenado provocado pelos grandes empreendimentos”. “Essa PEC vem nos trazer um retrocesso e ela não nos representa. Esse desenvolvimento [que estão buscando] não tem nada a ver com a gente. A gente sabe que o teor dessa PEC, no fundo, visa à urbanização da orla pelos grandes empreendimentos e quem vai lucrar com isso não somos nós. Nós só vamos perder.”

A pescadora citou ainda a preocupação com a expulsão de trabalhadores vulneráveis da costa por conta da atuação predatória do grande poder econômico. “Pescadores têm sido tirados dos seus territórios por conta da presença invasiva e, muitas vezes, irregular de grandes empreendimentos. Essa PEC vai fazer muito mal pra gente. Isso tem que ser falado. E, se é algo que vai nos atingir, a gente tinha que ser consultado”, defendeu.

(*) Com informações de reportagem de Cristiane Sampaio do Brasil de Fato