Mobilização

‘São Paulo ainda não tomou medidas contra empresariado de transporte’, diz Passe Livre

Apesar de vantagens para usuários, movimento critica faixas exclusivas de ônibus por não mexerem no lucro dos empresários. Bilhete Único Mensal incomoda pelo mesmo motivo

Marcelo D’Sants/Frame/Folhapress

‘Sabemos de 117 linhas cortadas na cidade’, denuncia MPL ao criticar política de transporte de Haddad

São Paulo – Apesar dos incentivos dados pela prefeitura de São Paulo ao transporte público, não dá para dizer que o Movimento Passe Livre (MPL) seja um entusiasta das medidas anunciadas pelo poder público municipal nos últimos meses. Não porque seus militantes, como parte da imprensa e da elite paulistana, estejam chateados com carros engarrafados nas avenidas da cidade enquanto as faixas exclusivas ficam livres após a rápida passagem dos ônibus. Mas porque avaliam que o prefeito Fernando Haddad (PT) ainda não fez nada para ferir os interesses do empresariado dos transportes.

Como tentaram deixar claro em junho, durante as manifestações contra o aumento da tarifa, os membros do MPL acreditam que a raiz do problema está em tratar o transporte público como negócio – e não como direito. Nove meses depois, atestam, nada foi feito para mudar a situação. “Há vantagens para os usuários, mas as faixas trazem também uma grande compensação para os empresários”, pondera Marcelo Hotimsky, 20 anos, militante do Passe Livre desde 2010. “Elas tornam o trajeto mais rápido, os ônibus gastam menos gasolina e menos tempo parados. O mesmo veículo pode fazer mais viagens no mesmo dia. Assim, rodará a catraca mais vezes, gastando menos.”

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Hotimsky explica que as faixas exclusivas demonstram como prefeitura e empresariado dos transportes estão entrelaçados. Outro exemplo dessa relação umbilical seria o Bilhete Único Mensal, promessa de campanha de Haddad que saiu no papel ainda no primeiro ano de sua administração. “Em todo país, há 37 milhões de pessoas excluídas do sistema de transporte, que é dito público. O Bilhete Único Mensal simplesmente não faz nada para reverter esse número em São Paulo”, explica, apontando o alto custo do novo bilhete para o usuário. “Só aumentou o subsídio que a prefeitura já concede aos empresários.”

Haddad confirmou recentemente, em entrevista à RBA, não ter abandonado a ideia de criar uma empresa municipal de transporte como uma espécie de concorrente das concessionárias, ou até substituta delas em alguns trajetos. Mas, diz o prefeito, isso acarretaria em um aumento de custos com o qual só seria possível arcar caso o Congresso Nacional concluísse a aprovação do projeto de lei que visa a renegociar a dívida da União com estados e municípios. Os compromissos da prefeitura chegam a R$ 80 bilhões, dobro do orçamento anual.

Estudante de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), Hotimsky explica que a conjunção de interesses entre poder público e lucro privado é uma das razões que fazem com que o MPL deslegitime os espaços institucionais de diálogo entre governos e movimentos sociais. Por isso, seus militantes se recusam participar do Conselhos Municipal de Trânsito e Transportes. Pelo mesmo motivo, não se preocuparam em acompanhar as sessões da CPI dos Transportes, na Câmara dos Vereadores. “Como movimento social, não nos cabe estar dentro da institucionalidade, mas fazer pressão.”

Confira a primeira parte da entrevista concedida por Hotimsky à RBA.

Como vocês analisam as mudanças no transporte público em São Paulo depois de junho?

Depois da luta contra o aumento, uma das medidas que o prefeito tomou em nome do transporte público, a princípio, foi a construção de faixas exclusivas. Não é que as faixas exclusivas não sejam interessantes para os usuários. Em parte, são, pois aumentam a velocidade dos ônibus. Mas isso não quer dizer que aumentam a velocidade das viagens. Com a segmentação de linhas que está acontecendo, o ônibus pode até andar mais rápido pelo corredor, mas o usuário precisa parar em vários lugares e esperar nos terminais. Ele não chega mais rápido ao destino.

A política das faixas exclusivas é muito interessante para pensar na relação da prefeitura com o empresariado, porque, depois de junho, em nenhum momento a prefeitura exigiu ou declarou que haveria alguma medida prejudicial aos empresários. Por exemplo, colocar mais ônibus em circulação. Disponibilizar mais ônibus à noite ou mais ônibus dentro dos bairros, em vez de ser bairro-centro, como é a lógica da maioria. Isso não aconteceu. As faixas, apesar das vantagens para os usuários, trazem uma grande compensação para os empresários. Elas tornam o trajeto mais rápido. Isso quer dizer que o ônibus gasta menos gasolina e menos tempo parado. O mesmo ônibus pode fazer mais viagens no mesmo dia. Assim, rodará a catraca mais vezes, gastando menos, com menos veículos.

É muito interessante ver como andam de mãos dadas a prefeitura e o empresariado de transporte. Estão encruzilhados. Por isso, a gente acredita que não tem nenhuma espécie de diálogo que possa resolver o problema. É pressão política. Os interesses são conflitivos. Ganha quem conseguir fazer mais pressão.

Vocês não veem nenhum avanço no transporte público da cidade frente aos últimos anos?

É difícil dizer. Como eu disse, a questão das faixas, por um lado, poderíamos considerar um avanço. Mas, por outro, vemos uma série de retrocessos. A luta que o MPL tem tocado junto com a população nos bairros se dá principalmente por uma política que é um retrocesso com relação ao transporte público, que são os cortes de linha. É a prefeitura cortando linhas, colocando terminais nos lugares, e assim fazendo com que as pessoas tenham que pegar cada vez mais ônibus, andar cada vez mais. Isso é claramente um retrocesso. A gente não consegue ver nenhum benefício para o usuário. Isso aconteceu em uma série de bairros. Não só em São Mateus.

Quantas linhas foram cortadas?

Sabemos de 117 linhas cortadas apenas em outubro do ano passado. Em São Mateus, na zona leste, foram 49 linhas cortadas. Uma foi devolvida por causa de mobilizações populares, uma série de atos, reunião com SPTrans. E a linha voltou. São dezenas de linhas cortadas, enquanto não se vê ninguém falando em colocar mais ônibus nas ruas. O que a gente vê é justamente menos ônibus, mais lotados, e mais integrações.

E o Bilhete Único Mensal?

O Bilhete Único Mensal é uma proposta bem complicada, porque não inclui ninguém no sistema de transporte público. Dá para perceber isso pelo fracasso que foi o cadastramento do Bilhete Único Mensal. A prefeitura fez uma divulgação muito grande, em todos os ônibus da cidade de São Paulo tinha propaganda sobre o Bilhete Único Mensal. A questão é justamente o preço. É absurdo. São R$ 140 por mês. Grande parte da população não tem esse dinheiro de antemão para pagar. Então, quem se beneficia desse sistema é quem justamente já tem dinheiro. Para piorar, o Bilhete Único Mensal não vem integrado com o metrô, ou vem com aquele preço exorbitante, de R$ 240 por mês. É óbvio que grande parte da população, que tem trabalho informal, sem carteira assinada e sem Vale Transporte, já não teria acesso. São justamente as pessoas que não têm como ter esse dinheiro sobrando no começo do mês.

Mesmo entre as pessoas que têm Vale Transporte, o Bilhete Único Mensal não está se mostrando uma solução boa. Muitas seriam obrigadas a pegar só ônibus, para o empregador não ter que pagar o pacote com trem e metrô. É interessante ver que a própria divulgação que a prefeitura fez em relação ao Bilhete Único Mensal ressaltava muito mais o fato de ônibus, em países desenvolvidos, não ser usado só pela população pobre. “Olha, a população rica também vai poder andar de ônibus.” Não se pensou na inclusão das pessoas que estão hoje excluídas do transporte público. Em todo país, há 37 milhões de pessoas excluídas do sistema de transporte, que é dito público. O Bilhete Único Mensal simplesmente não faz nada para reverter esse número em São Paulo. Pelo contrário, só aumentou o subsídio que a prefeitura já concede aos empresários. Seria muito mais útil se esse aumento no repasse de recursos fosse destinado à redução da tarifa e ao aumento no número de linhas.

Vocês não participam de conselhos de transporte, esse tipo de fóruns?

Não, a gente não participa. Inclusive, quando saiu o Conselho Municipal de Trânsito e Transportes aqui em São Paulo, fizemos questão de fazer uma denúncia ao funcionamento desse espaço. A existência de conselhos participativos é comum em governos do PT. Em vez de darem um poder deliberativo para a população, porém, eles são apenas consultivos. E acabam servindo como forma de cooptação de movimentos sociais e sindicatos, que aderem aos conselhos, ficam aparentemente dentro do poder, pensam que estão exercendo alguma influência, mas, na prática, nunca são ouvidos de verdade. Fomos convidados para compor o Conselho Municipal de Trânsito e Transportes, mas tivemos críticas muito grandes ao jeito como ele foi estruturado. No início, seria um conselho instituído pela prefeitura, que iria escolher quem participava. Isso já era bem esquisito dentro de um modelo popular. A gente foi lá e era uma coisa super esquisita. O secretário de Transportes, Jilmar Tatto, ficava num palanque, o resto das pessoas permanecia sentada, e ele ficava lá de cima falando como as coisas iriam funcionar. Então, mesmo a participação consultiva não funcionava muito.

E a CPI dos Transportes na Câmara? Vocês acompanharam?

Isso está dentro da mesma lógica da institucionalidade em que a gente não acredita. No caso da CPI, acho que tem alguns fatores a mais. Em primeiro lugar, hoje em dia, uma das coisas que a gente mais tenta ressaltar no problema dos transportes não é só que existe uma máfia e um monte de corrupção por trás dessa máfia, grandes alianças políticas, mas que a própria lógica do transporte público hoje em dia se baseia numa lógica de exploração, por princípio. Isso é problemático. Quando houve problemas de corrupção no Metrô, a gente tentou pautar muito essa questão: mesmo que estivesse tudo certo, não houvesse nenhum problema com as licitações, esse dinheiro que está sendo usado para pagar grandes empresas, para que essas grandes empresas lucrem, a princípio poderia estar sendo investido no transporte público.

Por mais que tudo fique dentro da lei, por mais que as empresas estejam lucrando de acordo com o combinado… A grande questão é que, no modelo atual, o lucro mínimo fica estabelecido em contrato, mas o lucro máximo, não. Então, quanto mais passageiros dentro do ônibus, melhor, e a CPI não vai averiguar isso. Não é uma CPI que vai conseguir acabar com esse tipo de problema, que está na própria forma, no contrato que a prefeitura tem com as empresas de ônibus, na forma de remuneração, que tem como valor intrínseco que é melhor para o empresário sempre carregar o máximo de gente lotada dentro de um mesmo ônibus, e não colocar ônibus para circular em diversos lugares e dias, ou nas periferias. Não é uma CPI que vai mudar isso. O que pode mudar isso é a mobilização popular e a pressão popular nas ruas.

Vocês se recusam a participar de qualquer espaço institucional?

É, achamos que não cabe à gente participar disso. Como movimento social, cabe à gente estar nas ruas, nos bairros, junto à população, fazendo pressão para que a institucionalidade atenda às demandas da população em relação ao transporte. Como movimento social, não cabe estar dentro da institucionalidade, mas fazer pressão – o que também explica nosso apartidarismo.

Qual é a razão desse apartidarismo?

A gente vê que a maioria dos partidos políticos hoje em dia tem um trabalho muito pouco dirigido à periferia, que é a principal área de atuação do MPL. Uma das análises que temos em relação ao que aconteceu em junho, sobre a rejeição dos partidos, é por causa de um processo histórico em que os partidos de esquerda se distanciaram da população, das reivindicações, e se dirigiram às universidades, aos gabinetes, às disputas eleitorais. A periferia não conhece os partidos. Está distantes deles. Não vê o que eles fazem por ela. Por isso, e porque nosso trabalho é dirigido à periferia, temos menos contato com partidos.

Ainda assim, existe essa aliança em determinados momentos.

A gente não é antipartidário. Somos simplesmente apartidários. Não funcionamos como partido, não vamos fazer campanha eleitoral para nenhum partido. Independentemente do partido que estiver no poder, continuaremos lutando por transporte.

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