Acolhimento na pandemia

MP pede 8 mil vagas para pessoas em situação de rua em São Paulo. Covas oferece 500

Taxa de vacância de hoteis é de 95% em São Paulo, que tem cerca de 30 mil moradores de rua. “Diferença é gritante”, diz padre Júlio Lancellotti sobre oferta da prefeitura

José Cruz/EBC
José Cruz/EBC
Movimentos têm se preocupado com as condições de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo em meio à onda de frio

São Paulo – O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) recomendou ao prefeito da capital, Bruno Covas (PSDB), que acolha as moradores de São Paulo em situação de rua nos espaços e imóveis vagos da rede hoteleira da cidade, e em prédios públicos municipais ociosos. Em despacho assinado na segunda-feira (18), a Promotoria pede urgência na criação de, no mínimo, 8 mil vagas para acolhimento dos sem-teto.

“Solução adequada para a situação de emergência que decorre da pandemia da covid-19”, afirmam os promotores no documento. O pedido atende a representação feita pelo coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, pela deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP) e pelo coordenador da Pastoral do Povo de Rua, padre Júlio Lancellotti

A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) já previa, por meio de edital, o credenciamento de hotéis, mas oferece apenas 500 vagas. Uma oferta “tímida e claramente insuficiente”, na avaliação do MP. “Já que há cerca de 25 mil pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo”, lembra o órgão. 

O levantamento municipal também aponta que a rede de acolhimento atende aproximadamente 17 mil pessoas sem-teto – déficit, portanto, de 8 mil vagas. Movimentos sociais e entidades que atuam junto a moradores de de rua apontam para uma estimativa ainda maior, com mais de 30 mil pessoas vivendo nas ruas da capital. O que aumentaria para 13 mil o número de pessoas que hoje estão desassistidas em meio à maior crise sanitária enfrentada pelo país. 

“Você vê a diferença do que a prefeitura oferece, 500 vagas, e o que o Ministério Público propõe, de 8 mil vagas. É gritante”, critica Lancellotti.

Proteção e estrutura 

O município também é restrito na destinação dos quartos de hotéis, que seriam utilizados apenas por idosos, um dos grupos de risco na pandemia do novo coronavírus. O coordenador da Pastoral do Povo de Rua e a Promotoria destacam que a proposta da prefeitura deveria também ser ampliada a outros grupos, principalmente diante da proximidade da chegada do inverno.

“Tem muita gente ainda dormindo na rua. Nós estamos esperando qual será a proposta da prefeitura para as baixas temperaturas. Por isso a rede hoteleira seria uma boa. Porque acolheria mulheres com crianças, além dos idosos que não estão em CTAs, casais, inclusive homoafetivos e grupos LGBTs”, diz o padre Julio Lancellotti. 

De acordo com ele, a rede hoteleira oferece diversas vantagens por ser uma estrutura pronta e por ter muitos estabelecimentos ociosos e sofrendo impactos econômicos. “Isolamento social requer proteção e estrutura, senão não tem isolamento. E isso ajuda a manter uma estrutura já existente, e que de certa forma precisa ser até socorrida. Ao mesmo tempo que acolhe os moradores de rua. Isso foi feito até em Londres. E vários lugares do Brasil também fizeram”, destaca. 

Os promotores acrescentam que a medida têm impactos positivos também sobre a manutenção dos empregos dos trabalhadores dos serviços de hospedagem.

Ainda assim, a gestão Covas parece encontrar dificuldades em conseguir as vagas. A taxa de vacância nos hotéis chega a 95%, segundo Associação Brasileira da Indústria de Hotéis em São Paulo. Porém, a prefeitura precisou republicar edital de credenciamento que seria encerrado no último dia 9.

População visível, preconceito também

O novo prazo foi prorrogado para a próxima sexta-feira (29). Questionado, o município não respondeu o porquê do adiamento. Em entrevista à BBC News Brasil, a Secretaria de Assistência Social disse que “alguns hotéis entraram em contato com a pasta demonstrando interesse em receber moradores de favelas, mas não pessoas em situação de rua”. 

“Eles têm o estereótipo do morador de rua”, critica o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, acrescentando que a proposta é a disponibilização da rede hoteleira popular, com oferta de três refeições diárias e material para banho e higienização, como também prevê o edital. “Não estamos pedindo vagas em hotéis cinco estrelas. E existe um rede hoteleira popular. Tanto é que nós colocamos uma família em um hotel de duas estrelas, na região da Mooca, para efeito demonstrativo. E nós conseguimos alugar dois quartos”, comenta. 

A outra opção proposta pelo Ministério Público, de uso de prédios públicos ociosos, como as escolas, é que as salas de aula sejam adaptadas como dormitórios, aproveitando ainda a estrutura de banheiros, cozinhas e pátios cobertos para refeitórios. A ideia é que esses equipamentos ofereçam maior autonomia à população em situação de rua.  

“Tem prédios com espaços maiores, e que as pessoas sempre ficam dizendo ‘vai destruir, vai acabar’. Há uma rejeição estrutural à população de rua e é preciso, neste momento, achar caminhos como, por exemplo, o centro esportivo da Mooca que está sendo usado como abrigo emergencial. O pessoal (vizinhos) ficou horrorizado, mas como foi ordem do prefeito não tinha jeito. Parece que não caiu a ficha de muita gente de que esse é um momento emergencial, que requer respostas rápidas”, cobra o padre Júlio. 

Covid-19 entre os sem-teto

O movimento Na Rua Somos Um – formado por 45 grupos que atuam com as pessoas em situação de rua – também pressiona o poder público para que o anúncio de ações se transforme em acolhimento imediato. A Promotoria lembra que nesta fase da pandemia, em que a prefeitura e o governo de São Paulo discutem a decretação do bloqueio total, o chamado lockdown, a medida só terá força se a população em situação de rua também estiver abrigada para cumprir o isolamento. 

“Deixar tais pessoas nas ruas, em tal situação, isoladas e sem qualquer assistência, será condená-las à morte – pelo vírus, pela fome ou de frio –, já que os recursos assistenciais prestados diretamente nas vias públicas, pelo Poder Público ou por organizações privadas, dificilmente serão garantidos com segura periodicidade, isto é, com eficiência e presteza”, frisa o MP. 

Epicentro da pandemia do novo coronavírus no país, a capital paulista, segundo boletim desta quinta (21), já tem mais de 44 mil casos confirmados e 3.186 mortes por covid-19. Outros 3.485 óbitos são investigados por suspeitas da doença. Até o dia 13, a Secretaria Municipal de Saúde também confirmava a morte de 22 pessoas em situação de rua infectadas pela covid-19. 

A RBA pediu uma atualização do dado para a pasta, mas até o fechamento da nota a área técnica ainda não havia respondido. O risco ainda é de subnotificação. “Hoje nós estavámos dando busca de alguns que a gente não tem visto. A gente não sabe onde eles estão”, afirma o coordenador da Pastoral do Povo de Rua. 

Vinte mil vagas, ainda insuficiente 

Em nota à reportagem, a secretaria não confirmou se a pasta e a prefeitura irão acatar a recomendação do Ministério Público. Por não ter ajuizado uma ação civil pública, a representação do MP tem efeito de aconselhamento. A pasta, contudo, frisa apenas as 500 vagas da rede hoteleira prevista em edital. E disse que, além das 17,2 mil vagas regulares dos 89 serviços de acolhimento, foram abertas “680 vagas em oito novos equipamentos emergenciais, com funcionamento 24 horas”. 

A pasta alega que “outras 400 vagas serão criadas nos Centros de Educação Unificado (CEUs)” e “a cidade chegará próxima de 20 mil vagas para atendimento a esse público”. 

Sobre a época de baixas temperaturas, a secretaria afirma já ter consolidado o “Plano de Contingência para Situações de Baixas Temperaturas – 2020”, no período de 6 de maio a 20 de setembro, quando a temperatura for igual ou inferior 13 graus. “Neste período, os trabalhos são intensificados na rede de abordagem e atendimento à população em situação de rua. As equipes de orientadores socioeducativos oferecem encaminhamentos e acolhimentos à rede socio-assistencial. A população também pode ajudar solicitando uma abordagem social e pode ser acionada por meio da Central SP 156.”


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