Racismo a brasileira

Judiciário e educação precisam se descolonizar, diz única professora negra de Direito da USP

Eunice Prudente defende políticas públicas que consigam desconstruir os modelos civilizatórios europeus, incluir a diversidade e enfrentar o racismo no país

UFPEL/Reprodução
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"Precisamos nos descolonizar, porque os modelos que temos são muito europeus, e a nossa cultura é muito rica. Precisamos nos voltar para ela", destaca professora da USP

São Paulo – Por trás da morte a cada 23 minutos de um jovem negro, como aponta o Atlas da Violência, está a impunidade e a omissão do poder Judiciário na aplicação das leis contra o racismo. Essa é a avaliação da professora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Eunice Aparecida de Jesus Prudente. 

Em entrevista à jornalista Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual, Eunice – a primeira e ainda única professora negra daquela escola – faz uma avaliação sobre os desafios de se fazer justiça social num país onde as instituições estão contaminadas pelo racismo estrutural. O que não é diferente com o Judiciário, diz, em que a questão de “classes sociais é bem clara”, principalmente na imputação do crime de racismo. 

“O discriminador, aquele que acredita que existem raças humanas, hierarquia entre elas, o racista, ele não é um réu comum. Ele não é um moço preto ou pardo das periferias, que fala gíria que o juiz não entende (…) De repente, o Judiciário tem diante dele um outro réu. É a senhora que criou um grande colégio importante, mas que discrimina. Ela é racista. É um empregador, ‘importante’ na sociedade, mas ele discrimina. E outras situações que vamos encontrar de discriminação, principalmente no mercado de trabalho”. 

“Aquele réu é muito parecido com a família do juiz. Éé muito parecido com o próprio juiz porque é um homem branco que recebeu uma (boa) educação. É uma mulher branca respeitada na sociedade e por aí afora”, explica. 

Judiciário: herdeiro racista

Pioneira do Movimento Negro, ex-secretária de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo e autora do livro Preconceito Racial e Igualdade Jurídica no Brasil, Eunice diz que sempre lembra de uma audiência, em que foi acompanhada por uma ex-aluna, que voltou impressionada com a postura do juiz e do promotor. Ambos, em meio ao julgamento, davam conselhos à ré para que ela voltasse a estudar e trabalhar, e que deixasse o tráfico de drogas. Crime que hoje encarcera mais da metade das mulheres, jovens e negras no Brasil. 

“Mas quem era essa ré? Era uma moça estrangeira, europeia, loura, dentro dos padrões de beleza, jovem, e recebeu esse tratamento”, descreve Eunice. “E aí eu disse para a minha aluna, ‘mas esse deve ser o tratamento, porque no Brasil não há pena de morte, são proibidas as penas cruéis’. A penalidade é para reerguer a pessoa, para ressociá-la, reeducá-la. E foi o que eles fizeram ali, em parte. Eles deveriam tratar todos os réus daquela forma. Mas nas audiências de custódia não é bem isso que ocorre, porque o padrão é o moço pobre, que vem das periferias e ali não tem chance, ele incomodou, ele tem que sair da sociedade”, lamenta a docente. 

Única na USP

Eunice se consagrou como a primeira professora negra no que é considerado a melhor escola de Direito do país. Mas ainda hoje, prestes a completar 193 anos da fundação, em agosto, é a única mulher negra que ocupa uma carreira na docência de uma das mais importantes instituições de ensino público do país. Fato que atribui diretamente à discriminação racial

Filha de um metalúrgico e uma tecelã, criada em meio à luta da Juventude Operária Católica, a professora relata na entrevista que nunca foi “iludida” pela ideia de uma “democracia racial que o Brasil nunca foi”. Ao longo de sua vida, desde a infância, “sempre teve lições de ações políticas. De ter uma visão crítica da sociedade”, afirma. 

Empenho e luta que manteve depois de anos como funcionária administrativa da USP e cursando a graduação no noturno. Até seu mestrado e doutorado, conquistados sob orientação do jurista Dalmo de Abreu Dallari, professor emérito do Direito da USP. “Tive muito apoio dele, porque as mulheres, os negros, os vulneráveis dessa sociedade, precisam de apoio e orientação. Eu não tinha pais, avós desembargadores, pessoas que seriam ‘importantes’ nessa sociedade. (Meus pais) eram importantes enquanto trabalhadores”, conta Eunice à Rádio Brasil Atual. 

Luta antirracista 

Na linha de frente do Direito e da luta antirracista, a professora observa que é preciso alterações na Constituição e na legislação do país no trato aos servidores militares que atuam sob a ótica racista, especialmente as Polícias Militares. Mas defende que o principal modo de romper com essa “questão política grave” nas instituições do país “é pela via pacífica da educação”. 

A começar, na sua avaliação, pela aplicação da Lei 10.639 de 2003, que obriga o ensino de história da África nas escolas e cultura afro-brasileira. “Precisamos nos descolonizar, porque os modelos que temos são muito europeus, e a nossa cultura é muito rica. Precisamos nos voltar para ela. É preciso que se saiba do protagonismo negro na própria história do Brasil, nos anos de escravização”, defende Eunice. 

“Governantes, academias,  todos precisam abraçar essa causa de se posicionar contra a discriminação racial. O racismo existe. (…) O movimento negro fica muito sozinho nessa luta, e todos devem vir para essa luta e engrossá-la porque é uma questão política, brasileira. Se cuidarmos disso e levarmos sobretudo para a educacao e a formacao dos brasileiros, talvez possamos, em pouco mais de uma década, vencer tudo isso”, finaliza a professora de Direito da USP. 

Confira a entrevista na íntegra

Redação: Clara Assunção – Edição: Fábio M. Michelk