Violência estrutural

Caso de estupro de menina de 10 anos expõe ‘ideia machista de que mulher precisa se sujeitar’

Ao programa “Entre Vistas”, presidenta da AJD destaca que “suposta proteção dos costumes e da vida” esconde, na verdade, um “problema cultural” que é “sintoma” de um “país adoecido pelo patriarcalismo”

Arquivo EBC
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"A ideia machista é tão forte e arraigada na cultura brasileira que não consegue sequer frear-se diante de um episódio dantesco como esse", destaca Valdete Souto Severo ao jornalista Juca Kfouri

São Paulo – Presidenta da Associação Juízes para Democracia (AJD), Valdete Souto Severo questiona: “De que democracia estamos falando no Brasil, ou, que democracia é essa?” A magistrada participou do programa Entre Vistas, da TVT, exibido nesta quinta-feira (20). Provocada pelo apresentador Juca Kfouri, ela comentou o caso do estupro da menina de 10 anos que, abusada pelo próprio tio desde os 6, engravidou, mas teve de viajar do Espírito Santo, onde mora, a Recife, para ter acesso ao direito de realizar o aborto legal

Ela mesma responde. “Não há aqui um problema jurídico. Nosso problema é cultural. Nós precisamos seriamente discutir qual é a nossa noção de respeito à vida, aos corpos”, defende a presidenta da AJD.

A pergunta sobre o caso da criança capixaba foi enviada pelo jornalista Jhonatan Campos, entrevistador do telejornal Central do Brasil – produção da rede nacional de movimentos populares, exibido de segunda a sexta-feira pela TVT, sempre às 20h. 

Corpo sujeito

Campos é um dos responsáveis por algumas das imagens que, no domingo (16), denunciaram a aglomeração formada por fundamentalistas religiosos e parlamentares evangélicos, em frente ao hospital onde a criança havia sido encaminhada para interromper a gravidez fruto de crime. Articulado de maneira clandestina, após informações sigilosas do caso serem vazadas ilegalmente, o grupo tentou invadir o local e coagir a vítima e a equipe médica com a pecha de “assassinos”. 

Na pergunta direcionada a Valdete, o jornalista quis saber por que o aborto apesar de, nesse caso, estar previsto em lei, “ainda assim foi preciso uma série de manobras para que a vida dessa criança, que estava em risco, pudesse ser salva? Por que a lei funciona para algumas pessoas e para outras não?”, disparou o jornalista. “O que nós temos aqui é a manifestação de um sintoma. Um sintoma que nos mostra que a sociedade brasileira é atravessada ainda por uma questão de machismo estrutural”, respondeu a juíza. 

“O que me parece que está por trás dessa discussão, muito mais do que a suposta proteção dos costumes e da vida, é uma ideia machista de que a mulher precisa se sujeitar àquilo que lhe acontece, aguentar, porque, afinal de contas, ela está aí para isso mesmo”, completou. 

Doente de machismo

O “sintoma”, apontado pela presidenta da AJD, seria também a manifestação de um país “adoecido”. E que ainda “não conseguiu acertar as contas e evoluir em relação a essa estrutura patriarcal que nos determina como sociedade”. 

“A ideia machista é tão forte e arraigada na cultura brasileira que não consegue sequer frear-se diante de um episódio dantesco como esse. A gente podia estar falando de uma mulher adulta e a situação não mudaria. Mas estamos falando de uma criança, cujo corpo físico não tem condições de gestar uma vida. Então estamos falando da possibilidade de que essa criança tenha uma vida minimamente saudável, é disso que se trata. E a menina teve que sair da cidade dela para realizar o procedimento”, lamentou. 

A magistrada também destacou a importância da descriminalização do aborto, hoje colocado dentro do ordenamento jurídico como proibitivo. As únicas exceções são para casos como o da menina capixaba, de gravidez decorrente de estupro, de risco à vida da gestante e em caso de fetos anencéfalos. Contudo, a decisão deveria caber exclusivamente à mulher, como defende Valdete. 

A participação da juíza e presidente da AJD no Entre Vistas também foi marcada por análise das ameaças aos direitos trabalhistas sob o governo Bolsonaro, além de uma avaliação da atuação dos sindicatos e da própria Justiça do Trabalho.  Valdete é doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) e juíza no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 4ª Região, no Rio Grande do Sul.

Confira a entrevista na íntegra

Redação: Clara Assunção