Carta a um deputado

Preocupados com a vida de quem?

Como mãe, espero que o senhor nunca tenha vivido e nunca experimente a devastação que o estupro sofrido por uma filha possa provocar

Paulo Pinto
Paulo Pinto
Vidas são preciosas e é nosso dever zelar por elas

Por Simone Domingues* – Excelentíssimo Senhor Deputado, após inúmeras manifestações sobre o projeto de lei proposto na semana passada, que equipara o aborto a homicídio, confesso que pensei já ter perdido o tempo oportuno para fazer a minha manifestação. Entretanto, tendo em vista o curto prazo para a votação de tal projeto, uma vez que a partir dessa semana a Câmara estará vazia para que os deputados possam festejar o “São João”, gostaria de fazer algumas considerações que são essenciais quando a discussão envolve a preocupação com a vida.

Como profissionais de saúde mental, que temos o compromisso de prevenir e tratar diversos transtornos mentais, convivemos com diversas pessoas que carregam os traumas dos abusos e violências sexuais sofridas. Essas vítimas têm um risco aumentado para o desenvolvimento do transtorno de ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático, maior vulnerabilidade para tentativas de suicídio, dentre outras condições psíquicas.

Como mãe, espero que o senhor nunca tenha vivido e nunca experimente a devastação que o estupro sofrido por uma filha possa provocar.

Infelizmente, esse não é um caso isolado.

De janeiro a julho de 2023, segundo dados da Agência Brasil, foram registrados 34 mil estupros de vulneráveis de meninas e mulheres. Os dados apontam para uma média de um estupro a cada 8 minutos.

Me desculpe, senhor deputado, mas não sei se o senhor tem uma exatidão do que isso representa.

São meninas e mulheres que vão ter nojo de si mesmas, procurando em suas atitudes, ainda que em fases tão precoces da vida, como na infância, o que fizeram de errado para que isso acontecesse com elas.

São meninas e mulheres que não conseguirão colocar suas cabeças no travesseiro e ter uma noite tranquila de sono, porque os pesadelos e o medo as aterrorizarão.

São meninas e mulheres que se questionarão sobre sobreviver, porque a morte pode parecer algo mais reconfortante.

Vidas são preciosas e é nosso dever zelar por elas.

Será que estamos verdadeiramente preocupados com a vida? Vida de quem?

Não conseguimos sequer proteger a vida dessas meninas e mulheres!

Não discuto aqui sobre sermos favoráveis ou contrários ao aborto. Até porque, convenhamos, quando se levanta uma proposta de lei na surdina, às pressas, isso soa muito mais com politicagem e manobras para tirar de foco outras questões que envolvem o governo, disfarçada de bandeiras salvadoras da humanidade – ou quem sabe, salvadora de partidos e bancadas.

Me desculpe a insistência, mas a pergunta ressoa novamente: preocupados com a vida de quem?

Além de tudo o que essas vítimas passam, serem tratadas como criminosas e a pena ser maior que a do seu estuprador, em caso de aborto, é no mínimo falta de compaixão com requintes de tortura.

Já não basta a indiferença que sofrem pelos crimes de estupro arquivados por falta de provas? Já não basta a dor de muitas vezes terem que conviver com o estuprador, quando este é um membro da família? Já não basta a dor do julgamento social sobre suas condutas ou comportamentos que são considerados “justificativas” para essa barbárie?

Reitero, senhor deputado, que desejo firmemente que o senhor nunca experimente a dor de ter uma filha estuprada.

Essas meninas vão ao inferno e ficarão lá se nós não as ajudarmos.

Qual inferno? Esse que está dentro delas mesmas e que elas não escolheram.

Finalizo, como psicóloga e mãe, me solidarizando com todas as vítimas do estupro, essas pessoas que tiveram suas vidas destruídas pela ação de um criminoso cruel que violou o direito mais precioso que pode existir: o respeito aos seus corpos. Que essas meninas e mulheres possam nos perdoar pela incapacidade de protegê-las! Que essas meninas e mulheres possam nos perdoar pela nossa impotência em lutar pela vida, a de cada uma delas, pois ainda somos cruéis, desumanos e temos pressa… porque o “São João” vai começar.

Mas estamos preocupados com a vida… De quem?


*Simone Domingues é psicóloga especialista em neuropsicologia, tem pós-doutorado em neurociências pela Universidade de Lille/França, é uma das fundadoras do canal @dezporcentomais, no YouTube. Escreveu este artigo a convite do Blog do Mílton Jung. @simonedominguespsicologa