pátria em chuteiras

Seleção da CBF tem duas torcidas: uma contra, outra a favor

Para muitos torcedores, se tornou inevitável a associação entre a camisa amarela e os 'coxinhas' e a Copa tira país do foco. Para cientista político Vitor Marchetti, gostar de futebol e torcer pela seleção não é incompatível com debate político

Ismael Arroyo/Brazil Photo Press/Folhapress

Craque de futebol e personalidade polêmica, Neymar angaria antipatias crescentes e decide partidas

São Paulo – Embora ainda não haja dados sobre o tema, provavelmente nunca aconteceu de tantos amantes do futebol, no Brasil, torcerem contra a seleção de seu país numa Copa do Mundo como em 2018. Após o golpe que derrubou Dilma Rousseff, as políticas antissociais do governo Michel Temer, a venda do pré-sal e do petróleo brasileiros às multinacionais, entre outras mazelas, para muita gente se tornou inevitável a associação entre a camisa amarela e os “coxinhas”.

Esse é o caso da jornalista e palmeirense Erika Mazon. “Eu não torço para o Brasil na Copa porque acredito que o evento tira os brasileiros do foco naquilo que é realmente importante: a grave crise política, econômica, moral e ética que atravessamos. Como nos versos de Chico Buarque: ‘Dormia/ A nossa pátria mãe/ Tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações’”, diz.

Para Erika, “enquanto os brasileiros estão gritando e soprando vuvuzelas, foram anunciados novos aumentos nos preços da gasolina e do gás de cozinha e o Congresso Nacional aprova o projeto que libera agrotóxicos nos alimentos. Não temos o que comemorar, mas sim muito pelo que lutar”.

O cientista político Vitor Marchetti, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), discorda da torcida contra. “Gostar de futebol e torcer pela seleção não é incompatível com acompanhar o debate político”, avalia. “Não creio que uma vitória da seleção brasileira na Copa vá favorecer Temer. Em 2002, o Brasil foi campeão do mundo e o Fernando Henrique perdeu as eleições.”

Corintiano e habituado a ver seu time no estádio, Marchetti acredita que o campo da esquerda ficou muito marcado pelo uso que a ditadura (1964-1985) fez do futebol. “Nós transportamos isso, que vem dos anos 70, de maneira meio automática, aos dias de hoje. Uma coisa é criticar a CBF, a política da gestão do futebol no Brasil. Outra é acompanhar os jogos como torcedor, como quem gosta de futebol. Torcer pela seleção não tem a ver com uma apatia em relação à política. Se as pessoas estão adormecidas em relação ao debate público, estariam da mesma maneira se não estivéssemos numa Copa do Mundo. O governo estaria votando sua agenda a toque de caixa e a população com pouca possibilidade de intervenção.”

Embora torça pela seleção brasileira, o professor da UFABC faz uma ressalva: “também estou com dificuldade de vestir a camisa verde e amarela. O símbolo da CBF não vai no meu peito”.

Sobre as críticas dirigidas ao principal jogador do Brasil, Neymar, Marchetti acredita que, em um aspecto, o craque brasileiro não pode ser comparado, por exemplo, ao astro Edinson Cavani, do Uruguai comandado por El Maestro Óscar Tabárez. “Os uruguaios têm muita consciência das questões sociais e políticas. Mas, apesar de concordar com as críticas que se fazem sobre Neymar, símbolo máximo de um consumismo vazio, o fato é que ele é diferenciado para jogar bola. Não é qualquer hora que aparece um igual.”

Na opinião de Erika, “os heróis de chuteira não ganhavam 36 milhões de euros por ano na época da ditadura”. “É indecente um brasileiro receber essa bolada e conseguir dormir bem, vindo de um país que acaba de voltar para o mapa da fome.”

Apesar do inegável talento, Neymar angaria antipatias crescentes. Na segunda-feira (2), o jornal norte-americano USA Today fez duras críticas ao jogador, por suas simulações e tentativas de cavar faltas e pênaltis. “Neymar é um dos melhores jogadores do mundo, um herói nacional, um ícone cultural, um potencial campeão da Copa do Mundo e um absoluto constrangimento”, escreveu o jornalista Martin Rogers. “Ele é um farsante, um mergulhador, um simulador, um ator de teatro ou qualquer outra palavra que o futebol usa para encobrir o fato de que alguém está tentando descaradamente trapacear ao convencer o árbitro a punir um oponente.”

Boa parte da torcida contra o time brasileiro é consequência da Copa de 2014, quando havia o mote “não vai ter Copa” e a presidenta Dilma Rousseff foi hostilizada e ofendida com palavrões na abertura da competição, em 12 de junho daquele ano, em São Paulo.

“Apesar do mote ‘não vai ter Copa’, teve Copa. E tanto a esquerda como a direita fizeram críticas contundentes à Copa do Mundo no Brasil, seja por conta das desapropriações e intervenções urbanas (como no caso da Aldeia Maracanã), pela esquerda, seja porque a direita não queria reforçar o sucesso do governo Dilma”, lembra Marchetti.

Em sua opinião, há ainda outro fator a se considerar, além da herança do regime militar na relação torcida-seleção. “Pesquisa do Datafolha sobre preferências dos brasileiros mostrou que a maior torcida no Brasil é a que declara que não torce por time nenhum.”

Segundo levantamento do instituto, divulgado em abril de 2018, Flamengo (18%) e Corinthians (14%) são torcidas mais numerosas do país. Entretanto, os que declaram não torcer para nenhum clube de futebol somam mais de um quinto dos brasileiros: 22%. “Existe uma massa muito grande que não se envolve com futebol. Acredito que essa massa é a que fica mais crítica numa Copa do Mundo.”