Música que liberta

Bia Ferreira põe sua arte a serviço da luta contra o ‘sistema opressor’

Artista utiliza até técnicas de neurolinguística para compor e facilitar a compreensão da sua mensagem pelo público

Leandro Godoi
Leandro Godoi
Com música sendo leitura obrigatória em vestibulares, Bia Ferreira se dedicou muito na sonoridade do álbum de estreia. “Se a pessoa não concorda com o que estou dizendo, ela vai ouvir porque a música é boa”

São Paulo — Depois de estourar com Cota não é esmola, canção que a colocou como uma das grandes revelações da música brasileira e da luta antirracista, Bia Ferreira lançou em setembro seu primeiro álbum, Igreja Lesbiteriana, Um Chamado. São oito músicas e um poema, formando um conjunto de forte crítica social e alta qualidade sonora.   

Cantora, compositora, multi-instrumentista, ativista, Bia Ferreira prefere mesmo se definir como “artivista”. “Gosto de usar várias ferramentas. Minha pretensão de vida é conseguir viver, até o fim, de arte, independente de ser cantando, compondo, produzindo, arranjando ou sendo musicista. Eu quero viver de arte”, afirmou, durante o programa Hora do Rango na última terça-feira (3), a artivista, que no momento está aprendendo a tocar saxofone.

O álbum de estreia inicialmente era pra ter saído no primeiro semestre, mas as dificuldades inerentes a uma produção independente atrasaram um pouco o processo. Nada que altere o conteúdo apresentado, pelo contrário. O disco confirma a expectativa formada em torno de Bia Ferreira e seu modo de cantar e dar o recado que lhe é caro.

Com guitarra, baixo e bateria gravadas num único dia, graças a horas de gravação que o baixista Vinícius Leslo tinha com o estúdio, o álbum reuniu artistas que se dispuseram a colaborar com a causa expressada nas canções compostas por Bia Ferreira, entre eles, a parceira Doralyce. “Todas as pessoas que participaram desse disco, nenhuma delas cobrou financeiramente para trabalhar nele, mas todas se comprometeram a não se calar diante do sistema opressor. Construímos coletivamente o disco”, enfatiza a cantora, que no teatro encarna Elza Soares no musical Elza, substituindo a atriz Larissa Luz nas apresentações em São Paulo.

O esmero com o álbum de estreia, a preocupação com os detalhes e a qualidade do som, segundo Bia, também é resultado da intenção de agradar até mesmo quem não se identificar com suas letras engajadas. “Se a pessoa não concorda com o que estou dizendo, ela vai ouvir porque a música é boa.”

Compreensão

Cota não é esmola, Não precisa ser Amelia e De dentro do AP, entre outras canções, revelam uma característica peculiar no modo de Bia Ferreira cantar. Para além do ritmo dançante e as influências do reggae, jazz, blues, soul, funk e R&B, há a característica de pronunciar determinadas palavras acentuando a separação por sílabas.

Segundo ela, estudiosa em programação neurolinguística, tal técnica ajuda o cérebro a assimilar melhor a mensagem. “É uma forma de se comunicar com as pessoas, fazer com que te entendam e prestem atenção naquilo que você está falando, absorvam melhor.”

Bia explica que constrói sua poesia pensando nas técnicas de neurolinguística, pois o álbum de estreia foi planejado para ser “didático”. “Ele foi pensado para quando você chegar na última música, você não falar que ‘não sabia’ ou ‘não entendeu’. Ele foi feito com esse propósito”, afirma. De forma simples e direta, o disco trata com vigor de questões raciais e sociais, do movimento LGBT e a intolerância religiosa.

Segundo Bia Ferreira, o álbum nasce da convicção de que a fala “cura, educa e liberta”. A cantora e compositora enfatiza a necessidade de mais pessoas serem “libertadas” e despertadas para o desejo de “revolução”. A música, ela acredita, tem a força para proporcionar a mudança de mentes.

Indicada ao prêmio de “Cantora Revelação” no Women Music Events, em 2018, a autora de Cota não é esmola hoje vê sua canção de maior sucesso ser leitura obrigatória para os vestibulares da Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR), além de estar nos livros para alunos do sistema Sesi-SP.

“Isso é um avanço muito grande. Há muitas pessoas comprometidas em falar a respeito disso, passar informação. Não estamos sós”, analisa Bia.

Luta contínua

Ainda que novembro seja o Mês da Consciência Negra, Bia Ferreira avalia que há falta de interesse das pessoas em entender os verdadeiros motivos do trás da data, assim como da importância e pregar práticas antirracistas o ano todo.

Em suas letras, a crítica ferrenha ao racismo estrutural do Brasil é uma temática constante. Para ela, apesar do país ter lei que determina o estudo da cultura negra nas escolas, o não cumprimento da legislação é consequência do “bombardeio” que as instituições de ensino sofrem do conservadorismo, especialmente as pessoas que estão em cargos de direção e de supervisão. “Essas pessoas bloqueiam qualquer tipo de educação afrobrasileira por demonizar essa cultura”, afirma.

Por outro lado, ela enfatiza avanços obtidos recentemente, como a eleição de mulheres negras para o parlamento, entre elas, Erica Malunguinho (Psol-SP), Érika Hilton (uma das nove integrantes da Bancada Ativista do Psol na Assembleia de São Paulo), Talíria Petrone (Psol-RJ), Dani Monteiro (Psol-RJ), Renata da Silva Souza (Psol-RJ), Mônica Francisco (Psol-RJ) e Áurea Carolina (Psol-MG). “Conseguimos eleger muitas mulheres pretas para falar por nós”, comemora.

Bia costuma enfatizar que o racismo não é apenas um comportamento da elite brasileira.  A situação, para ela, é ainda pior devido as classes menos favorecidas “comprarem” a ideia da elite e reproduzi-la. “A classe que não é elite, o pobre, o proletário, também reproduz o racismo de forma automática. Por isso estamos vivendo o que estamos vivendo”, afirma. Para ela, o poder da elite advém justamente da reprodução do pensamento elitista por quem não é elite. “São com essas pessoas que a gente tem que conversar pra explicar pra elas: ‘você não é elite, amigo, cola com nós’. É o famoso ‘pobre de direita’. Eu tenho dó.”

Em seguida, Bia Ferreira emendou no Hora do Rango a canção inédita Deixa que eu conto. Uma música que diz estar “experimentando” e cujo ideia-síntese é um aviso: “Ninguém mais vai falar pela gente”, afirma.

Turnê

A repercussão do seu trabalho no Brasil a levou para uma turnê na Europa em 2019, com shows na Alemanha, França e Portugal, todos com ingressos esgotados. A artivista conta ter se surpreendido com a receptividade em países que não falam português. “O show foi incrível, as pessoas sabiam cantar as músicas, foram tocadas pela mensagem. Isso me deu um ‘quentinho’ no coração, ao entender que aquelas pessoas sentem o poder da música que você está cantando. Foi muito bonito fazer essa troca, independente do idioma.”

Em Portugal, se o idioma não é outro, a diferença foi o recado em sua perspectiva histórica. “Tocar em Portugal é uma coisa diferente. É conversar com pessoas que não entendem a cota…é explicar que eles não repararam a gente depois que nos trouxeram de África”, pondera.

Se definindo como “meia analógica”, Bia é uma compositora capaz de sair pedindo pedaço de papel e caneta pelo metrô quando bate uma ideia. Escrever direto no celular só em último caso. “Prefiro papel e caneta, posso riscar. Acho esquisito ficar olhando pro celular e pensando pra escrever”, explica a cantora inquieta, que reconhece sentir-se satisfeita cada vez que percebe a sua mensagem indo adiante e sendo compreendida.

“Quanto mais pessoas ouvindo, são mais pessoas tendo acesso à informação que a gente se disponibilizou a passar. É gratificante.”

Ouça o programa completo

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