Governo Bolsonaro

‘Autoritarismo furtivo’ desafia a oposição, avalia Singer. E tucano aponta risco real à democracia

Ex-assessores dos governos Lula e FHC defendem união “ampla” contra Bolsonaro para preservar o sistema político e as instituições

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Analistas não creem em 'golpe', mas alertam que democracia enfraquece a cada dia

São Paulo – Não há um “momento de golpe”: a democracia se perde, em processo transição que o cientista político André Singer define como “deslizamento para o autoritarismo”. Uma transição sem rompimento formal que pode levar muito tempo, décadas, para ser revertida. Ele e seu colega Sergio Fausto concordam que Jair Bolsonaro já ultrapassou os limites democráticos, tensionando os poderes. A questão apresentada à oposição é como lidar com esse “autoritarismo furtivo” e garantir a manutenção do Estado de direito.

Singer é professor da Universidade de São Paulo e ex-secretário de Imprensa e porta-voz da Presidência da República (governo Lula). Fausto, diretor-geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso. Ambos têm visões próximas do fenômeno político. E ambos falam em frente ampla. “O presidente ultrapassou a linha vermelha da Constituição”, diz André Singer, para quem não é momento de pedir “carteirinha” ideológica. “Percebemos um risco real de perda da democracia no Brasil. Se esse é um risco maior, as fronteiras das alianças têm que ser alargadas”, reforça Sergio Fausto, assessor de vários ministérios nos governos FHC.

Os dois participaram ontem (28) à noite de debate sobre “alternativas para o país” promovido pela Escola de Ciências do Trabalho do Dieese. Para Singer, a transição da democracia para o autoritarismo cria “um grande problema” para a oposição. Esta não encontra o que ele chama de “ponto de corte”, aquela parte da película que o diretor corta para dar sequência à filmagem.

Legislativo e Judiciário

“À medida que a democracia vai deslizando para o autoritarismo de maneira imperceptível, a oposição não consegue mobilizar a sociedade para intervir num momento preciso, porque não há um momento preciso. Acho que nós ainda pensamos em termos antigos: o golpe vai ser agora. Não vai ter golpe.”

Para Singer, para tentar frear o Executivo, que busca anulá-los, os outros dois poderes passaram a agir de forma coordenada. Criaram um “sistema de vasos comunicantes”. Ele cita a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de garantir autonomia a estados e municípios no combate ao coronavírus. E a aprovação, pela Câmara, de auxílio às unidades da federação e às prefeituras, contrariando desejo do ministro da Economia, Paulo Guedes.

O cientista político acredita que, ao participar de manifestações favoráveis ao fechamento do Congresso e do STF, o presidente da República “ultrapassou a linha vermelha”. E incorreu no artigo 85 da Constituição, que trata dos crimes de responsabilidade. Os presidentes da Câmara e do Senado deram declarações discretas. O do Supremo não se manifestou, mas depois receberam o então ministro da Saúde para pedir medidas de combate ao coronavírus. Ele identifica na atitude uma estratégia para “isolar o presidente dentro do seu próprio governo. Uma estratégia percebida por Bolsonaro, que reage em “altíssima voltagem”.

Conduta de risco

Três dias depois de demitir Luiz Henrique Mandetta, o presidente foi a novo ato contra as instituições, “se dando ao luxo de fazer na frente do quartel-general do Exército”. Singer acredita que Bolsonaro “forçou a saída” do ministro Sergio Moro, que deixou o governo fazendo acusações graves. Como se já não houvesse motivos anteriores para uma ação de impedimento.

Ele lista possíveis fatores para que Bolsonaro insista em sua “conduta de altíssimo risco”. Militantes “aguerridos” nas redes sociais, mas cujo impacto eleitoral ainda não é possível medir, apoio aparentemente consolidado de 30% do eleitorado e também na área militar. “A maioria da reserva, mas correspondem a um processo novo, importante, que precisamos compreender, de militarização do governo e do Palácio do Planalto”, diz o cientista político, lembrando que até a Casa Civil tem um general.

Diante dessa situação, o sistema político parece “paralisado”, diz o professor. “Caberá à sociedade civil pressionar, (para evitar um) processo cujo retorno custe décadas.”

Descentralização

Sergio Fausto concorda que o “autoritarismo furtivo” é mais difícil de ser combatido. Ao mesmo tempo, considera que algumas características do sistema político brasileiro podem ser favoráveis neste momento. Até certa “bagunça” que o caracteriza.

“O Brasil é uma república federativa com uma grande descentralização do poder político. (Tem) autonomia importante em relação ao poder central, em relação a Hungria, Polônia, Turquia”, diz Fausto, citando países de forte componente autoritário. “Este governo recusou o presidencialismo de coalizão, sequer hoje o presidente da República tem um partido. Aquelas características que tornam a coordenação política um problema maior, isto faz com que a implementação no Brasil de uma estratégica hegemônica autoritária encontre obstáculos que fazem parte da própria natureza do sistema”, analisa.

“Você tem um Poder Judiciário forte, também composto de vários ramos, várias instâncias. Embora a Suprema Corte tenha o poder de avocar a decisão final em algumas matérias, tem também grau de autonomia importante, característica de desconcentração do poder”, lembra o cientista político e diretor da Fundação FHC.

Para ele, Bolsonaro aposta em uma “escalada” autoritária, de maneira permanente. “Os recuos são sempre momentâneos, breves, para o próximo movimento, de afirmação de sua liderança.” O objetivo, acrescenta, é “tensionar os limites colocados pelas outras instituições”.

Direita moderada

Isso teria mudado de patamar com a demissão de Moro, na semana passada. Seria uma aparentemente bem-sucedida estratégia do presidente de controlar o principal braço de investigação dos crimes federais. “Esse é um fato que tem uma gravidade enorme”, afirma, lembrando que uma semana depois de participar de manifestação contra a democracia Bolsonaro tenta “usurpar” um poder.

Força ou fraqueza?, pergunta-se. “Ele perdeu terreno dentro de setores de direita mais moderados, tipicamente encarnados pelo DEM, aliena parte importante da sua candidatura para ter pressão sobre a Polícia Federal. Ele faz isso porque se sente acossado”, lembra, citando a CPMI das Fake News e investigações que envolvem alguns de seus filhos.

Um movimento que tem custo político importante e pode se aprofundar. Bolsonaro “descarta” Morto e sacrifica o principal mote de sua campanha e do próprio governo, que seria o suposto combate à “velha” política. “Vai da antipolítica para o coração da velha política”, o chamado Centrão. Apesar de estar na defensiva, o presidente ainda tem pilar em grupos organizados.

Cerco se fecha

Para Fausto, o cenário mais provável hoje é, se não for o impedimento, de deterioração da governabilidade. Isso porque a pandemia tende a se agravar, a resposta do governo é insuficiente para fazer frente à perda de renda e trabalho, e esses dois vetores complicam a situação política do governo, que terá de ceder mais ao parlamento – à “velha” política que diz combater. “Não é uma armadilha perfeita, mas a situação do Bolsonaro tende a se agravar. O cerco começa a se fechar. Agora, o processo será lento, por várias razões. Estamos no meio de uma emergência sanitária, o que impede desde logo manifestações de rua e dificulta a articulação política.” E o presidente ainda tem apoio mlitar.

“Não acho que as Forças Armadas tenham a intenção de golpear a democracia. Ganhou terreno no Brasil uma velha crença militar, que tem origem no passado histórico, final do Império, República Velha, que a elite política civil brasileira não é patriótica o suficiente para cuidar dos interesses dos país, porque cuida dos próprios interesses. Esse não é um processo consumado, mas é tapar o sol com a peneira não perceber que essa velha crença militar voltou e tem apoio na sociedade.”

Singer questiona como agregar setores que agora estão se descolando do bolsonarismo. “A gente não tem que pedir cartteirinha, atestado ideológico, pra ninguém. Vamos precisar de muitas forças para evitar esse deslizamento. Gostaria de receber todas essas forças em uma frente ampla…. Mas não estou vendo isso se constituir. Há hesitações, dúvidas, confusão”, diz.

Enigma

Para ele, a corporação militar “é o grande enigma” do momento. Um impedimento do presidente significa ter Hamilton Mourão no poder, O grupo que já está lá ficaria praticamente dono do poder, em um país com histórico de ditadura liderada por militares.

Singer concorda com Fausto no sentido de que o bolsonarismo se criou na rejeição anunciada à velha política, mas acrescenta o “antipetismo” ou “antilululismo” como fatores importantes de sustentação. “Eles reinventaram uma ideologia anticomunista que não tem lugar.” Respondendo a uma pergunta, o professor disse que não considera que a esquerda subestimou Bolsonaro, mas talvez não tenha se dado que se trata de um projeto mais profundo: mais do que alterar o sistema político, eles querem mudar a sociedade.

Ao falar em “risco real de perda da democracia”, Fausto criticou certas “comemorações” nas redes sociais com a saída de Moro. “Neste momento não é hora de fazer escrutínio das trajetórias políticas passadas, é saber quem é que se junta para traçar uma risca de giz no chão”, afirma, usando uma imagem de proteção à democracia. “Se passa (da risca), o deslizamento vira terremoto.”

Opção Mourão

Também ele acredita que não se trata de subestimar. A esquerda tem, avalia, certa dificuldade de compreensão, de natureza sociológica, de que o bolsonarismo tem raiz em grupos sociais que normalmente não se vinculam à centro-esquerda, como os evangélicos e a área de segurança (Forças Armadas, polícias militares). “Acho importante a gente se despir de preconceitos seja para conhecer os adversários, seja para estabelecer pontes.”

A ideia de que o “comunismo” voltou a ser ameaçada pode parecer estúpida, mas “calou” em setores da população. A agenda conservadora incluiu ainda ideias de degeneração política (corrupção) e moral (costumes). O PT foi retratado como “síntese” desses males, mas isso agora se estende a tudo que esteja fora dos limites do mundo bolsonarista.

Por isso, emenda, é necessário formar uma “grande, ampla e heterogênea frente democrática”. “Disputa eleitoral nós vamos fazer, mas é lá na frente. Agora é momento de unidade politica para fazer frente às ameaças à democracia e conservar um mínimo da capacidade organizativa.” É só há um caminho constitucional legal, que é a posse do vice. “Então, não há o que discutir. Acho que é inegável que haveria um ganho de racionalidade no manejo das políticas de Estado. É modesto dizer isso, mas não é pouco, porque a situação é dramática.”