Estado para o que é preciso

BB, Caixa, BNDES e Petrobras: de candidatas à perda de espaço para o “mercado” a personagens estratégicos no enfrentamento da crise e na indução do crescimento

Funcionários da Petrobras na plataforma Garoupa (RJ)

É possível existirem empresas estrategicamente importantes para a economia do país, competitivas no mercado, que distribuam dividendos aos seus acionistas e tenham o Estado como controlador? Há três décadas dizia-se que não. As empresas estatais eram demonizadas como símbolos de ineficiência, cabides de emprego, e o Estado moderno deveria se desfazer delas, porque ter empresas lucrativas é prerrogativa do livre mercado. A política de privatizações começou a ser posta em prática no primeiro ano do governo Collor, com seu Programa Nacional de Desestatização (PND), de 1990. Liderado pela ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, o PND tinha uma lista de 68 empresas a serem vendidas.

Antes de ser destronado, Collor conseguiu privatizar 18, entre elas as siderúrgicas Usiminas e CSN. Depois do impeachment, tomou posse o vice Itamar Franco, contrário ao plano. A ofensiva seria retomada pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que se caracterizou pela interrupção de investimentos nas estatais, com objetivo de fragilizá-las e repassá-las ao setor privado. Para satisfazer seus compromissos com o mercado, o governo colocou o Estado a serviço das privatizações: a transferência do controle das empresas para o setor privado foi viabilizada com a participação dos fundos de pensão dos funcionários das empresas públicas, e o principal financiador foi o BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

Um lembrete histórico: a diretora de Desestatização do BNDES era a economista Elena Landau, que atuou no governo Collor e nos anos 1990 formou – ao lado de nomes como Persio Arida, Gustavo Franco, André Lara Resende, Francisco Lopes, Edmar Bacha e Luiz Carlos Mendonça de Barros – o time que tomou conta da economia do país. Elena casou-se com Persio Arida, que foi presidente do próprio BNDES e do Banco Central e sócio de Daniel Dantas no Opportunity. O banco criado em 1997 tornou-se rapidamente um dos campeões de compras de estatais. São coincidências interessantes de ser lembradas nos dias atuais, em que os simpatizantes desse time de economistas costumam encher a boca para acusar o atual governo de “aparelhar” o Estado.

Entre os argumentos mais favoráveis, o próprio ex-presidente costuma dizer que graças à privatização o número de telefones fixos mais que dobrou em dez anos e que hoje o Brasil está próximo da média de um celular por habitante. Outro argumento corrente é de que o lucro da mineradora Vale era de R$ 1 bilhão em 1998 e chegou a R$ 10,2 bilhões no ano passado. A fatia da União na emroresa foi vendida em 1997 por US$ 3,3 bilhões; hoje a empresa está avaliada em mais de US$ 100 bilhões. Especialistas atribuem grande parte do desempenho da companhia à expressiva valorização do minério de ferro no mercado mundial em meados desta década.

As privatizações deixaram um saldo de US$ 78 bilhões em oito anos de governo FHC. A dívida pública, porém, não deixou de crescer: era de US$ 60 bilhões em 1994 e passou a mais de US$ 240 bilhões em 1998. E justamente a dívida pública era um dos pilares da mentalidade macroeconômica, segundo a qual o Estado não podia “gastar”, devia “economizar” e honrar seus compromissos com os credores para que a “marca Brasil” não fosse desvalorizada e não afugentasse investidores.

Ao final da era FHC, a mudança de mentalidade em relação ao papel do Estado refletiu na relação da União com as estatais que restaram sob seu controle. As empresas públicas participaram diretamente da opção do governo Lula por estimular o crescimento econômico. A manutenção do controle de empresas como a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica e a revisão das atribuições do BNDES em nada atrapalhou o desempenho dessa empresas. Pelo contrário.

Resultado recorde

O Banco do Brasil fechou 1994 com lucro líquido de R$ 108 milhões e movimentando R$ 33 bilhões em operações de crédito. Em 2009, o lucro foi de R$ 10 bilhões e as operações de crédito chegaram a R$ 266 bilhões. A Caixa Econômica Federal, de um lucro de R$ 213 milhões em 1994 e R$ 39 bilhões em volume de crédito, lucrou R$ 3 bilhões em 2009 e movimentou em empréstimos R$ 115 bilhões.

A Petrobras, por sua vez, que lucrava R$ 1,1 bilhão em 1998, registrou em 2009 resultado de R$ 29 bilhões, o segundo maior lucro entre empresas da América Latina e Estados Unidos. A empresa, que não entrou no antigo PND, mas teve o seu monopólio de exploração quebrado nos anos 1990, retém apenas 40% de seus lucros no país. Mas não é só nos resultados contábeis que a companhia evoluiu durante a atual gestão. A partir de 2003, o governo passou privilegiar o mercado nacional nas suas encomendas. Em 2003, a empresa consumia 57% das despesas com bens e serviços com fornecedores locais. Essa movimentação cresceu 400% e chegou ao final da década em mais de 77%. Os pagamentos junto ao mercado interno passaram de US$ 5,2 bilhões em 2003, para US$ 25,9 bilhões em 2009.

Ou seja, mais que resultar em dividendos para a União, essas três gigantes estatais tiveram papel estratégico no fortalecimento da economia e da indução do crescimento. O BNDES, por exemplo, com lucro de R$ 810 milhões em 1998 e de R$ 6,7 bilhões em 2009, ampliou no mesmo período em mais de 600% o volume de recursos oferecidos,  atingindo a marca de R$ 137 bilhões de desembolsos no ano passado.

O contraste entre os papéis do BNDES – de indutor das privatizações da era Collor/FHC e de propulsor da produção interna na era Lula – é, talvez, um dos maiores símbolos das diferenças de visão em relação às responsabilidades do Estado.

Carlos Lessa, que presidiu o banco no começo do governo Lula, afirmou em entrevista recente ao portal Terra Magazine que, assim que chegou ao BNDES, verificou que “queriam convertê-lo em banco de investimento, para depois dizerem: ‘não precisamos de um banco de investimento’. Expliquei tudo isso a Lula, que me deu carta branca. Demiti todos os quadros, não sobrou um. Fiz logo uma hecatombe! Demiti cento e tantos”, relatou ao repórter Claudio Leal.

 


Presente para banqueiro

A privatização de bancos estaduais começou dois dias antes da posse de FHC em seu primeiro mandato. A intervenção do Banco Central em vários deles, como Banespa e Banerj, em 30 de dezembro de 1994, foi o ponto de partida.

Oito bancos passaram para o controle da União para ser vendidos. Outros foram liquidados, outros negociados pelos estados controladores. De 35 antes de 1995, restam quatro.

O BC gastou R$ 62 bilhões com o Proer, programa de “saneamento” empregado em dez instituições, e arrecadou R$ 11,6 bilhões. O Banerj foi o primeiro a ser vendido, ao Itaú, em junho de 1997. Em setembro do ano seguinte, o Itaú absorveu também o Bemge. Outro mineiro, o Credireal, foi comprado pelo ex-BCN, banco depois incorporado pelo Bradesco. No Paraná, o Banestado foi abocanhado pelo Itaú em outubro de 2000.

Mais da metade da “arrecadação” do BC correspondeu à oferta feita pelo espanhol Santander ao Banespa, em 20 de novembro de 2000, após seis anos de resistência. Dos R$ 7,1 milhões oferecidos, foi permitido ao Santander lançar 73% como créditos tributários. Ou seja, dos R$ 5,2 bilhões de ágio em relação ao lance mínimo, os espanhóis não precisaram desembolsar nenhum tostão. O lucro previsto pelo Santander só em 2010 é de R$ 8 bilhões.

No ano passado, o governo paulista teria privatizado seu segundo grande banco, a Nossa Caixa, não fosse a aquisição pelo BB mantê-lo sob controle público.

Colaborou Maurício Thuswohl

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