Violência: pacificar para combater

Reconhecer as causas da insegurança e incorporar a sociedade no combate ao problema serão heranças da gestão Lula e desafios do próximo governo

O envolvimento da sociedade no debate é o diferencial do governo Lula na área de segurança pública. O resultado é o destaque dado à adoção de medidas de combate às origens da violência, ou seja, as causas sociais da criminalidade. O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), criado em 2007, agrupa iniciativas já existentes, cria outras e prevê dotação orçamentária condizente com a importância do setor. São R$ 6,1 bilhões até o fim de 2011, com a expectativa de beneficiar 3,5 milhões de pessoas, na maioria jovens e suas famílias.

Os brasileiros de 15 a 24 anos são os principais atores e as maiores vítimas da criminalidade. O Mapa da Violência 2010 mostra que a taxa de homicídios nessa faixa etária passou de 30 em cada 100 mil habitantes, em 1980, para 50,1 em 2007, patamar mais de duas vezes superior à média. Alguns dos principais projetos do Pronasci são voltados aos jovens em situação de vulnerabilidade. Há programas de formação profissional, como o Mulheres da Paz, que identifica, orienta e remunera líderes comunitárias para mediar situações de conflito e outro que contrata rapazes que vivem em ambientes violentos como reservistas das Forças Armadas. “O que pretendemos é reconquistar territórios que foram atingidos pela violência e criminalidade, e a melhor maneira de fazer isso é com prevenção, com toda a comunidade envolvida na busca de soluções”, declarou recentemente o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto.

O ex-secretário de Segurança Pública de Minas Gerais Luiz Flávio Sapori considera que o Pronasci é o primeiro programa da área que consegue ser, ao mesmo tempo, abrangente e consistente na aplicação de recursos. “O Brasil não tinha uma tradição de pensar na segurança pública sob a ótica da prevenção social, sempre tivemos um viés excessivamente repressivo e muitas vezes às expensas da lei”, afirma. “O governo Lula incorporou ao debate e aos gestores públicos a importância de se pensar a prevenção social.”

A articulação entre as gestões federal, estaduais e municipais e a participação da sociedade civil ganharam novo – e fundamental – incentivo com a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg). Uma das últimas realizações setoriais do governo Lula, a conferência estabeleceu 40 diretrizes que consagraram a intersetorialidade no campo da segurança, reforçando a necessidade de trabalhar uma política que conecte a população e os agentes, com respeito aos direitos humanos e o fim das discriminações. A intenção é voltar a realizar encontros deste porte a cada dois anos e traçar as linhas da Política Nacional de Segurança Pública a ser apresentada ao Congresso.

Para José Vicente Tavares dos Santos, especialista em segurança do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Conseg coloca o debate sobre segurança pública em um novo patamar. “O importante é ter pela primeira vez uma discussão nacional em que os diferentes lados estão expostos. A aplicabilidade é um processo de longo prazo, mas poderemos, com tempo, ir refinando a percepção social e pública da questão da segurança, sempre valorizando a racionalidade.”

Esteban Benavides Yates, do Centro Internacional para a Prevenção da Criminalidade, defendeu em artigo que a conferência foi um passo importante para que a política brasileira de segurança pública passe a ser de Estado, deixando de depender das oscilações governamentais. “Trata-se de um processo participativo único, no Brasil e em outros lugares. Realmente, não conhecemos outros países que tenham conduzido um processo desta natureza e desta envergadura”, afirma.

O Pronasci, em si, já é visto como uma ruptura do tradicional imediatismo da área de segurança, com planos a longo prazo. O Território de Paz une diferentes iniciativas, indo da sociedade civil ao Judiciário, passando por policiamento comunitário. Além disso, os esforços de formação e capacitação de agentes de segurança são uma herança a longo prazo que pode trazer a redução de velhos problemas do setor, como a corrupção e o abuso de força.

Polícia pacificadora

“É um novo quadro federativo virtuoso”, elogia Tavares. “Em alguns locais, como o Rio Grande do Sul, o estado não aceitou fazer (o convênio), mas os municípios, sim. Eles passam a ser protagonistas na prevenção da violência.”

Em outros casos, à medida que aumentam as articulações entre as diferentes esferas da federação, o intercâmbio torna possível espalhar experiências positivas. O caso mais notório é o do Rio de Janeiro. Em 2007, foram mortos 1.330 civis por policiais no estado, recorde negativo. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Pronasci deram os sinais de que era possível e necessário mudar. O resultado, até aqui altamente elogiado, é a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que conseguiu zerar o número de homicídios em algumas partes da capital fluminense e reduziu drasticamente a criminalidade em geral.

A aposta é de que as forças de segurança devem ser um braço do Estado nas comunidades, mas não o único: depois da pacificação passam a ser feitas melhorias em água, luz e esgoto, e os jovens ganham nova perspectiva social, tornando-se menos suscetíveis a ingressar no mundo do crime. “A mudança é muito importante porque sinaliza que uma outra política é possível, muito mais benéfica em termos de relacionamento de segurança, mas não sabemos até que ponto essa política vai continuar e vai substituir o atual modelo”, aponta Ignácio Cano, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

A dúvida sobre a durabilidade do êxito das UPPs baseia-se, entre outras coisas, na necessidade de reformar profundamente as polícias. Renato Sérgio de Lima, secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entende que o grande desafio para o Brasil como um todo é, nos próximos anos, aprofundar o debate sobre a necessidade de uma força policial democrática, transparente e próxima da população. “O governo federal assumiu a coordenação da política de segurança pública, mas o Congresso não discutiu a reforma das polícias”, pondera. É apenas uma das importantes tarefas que caberão às próximas legislaturas do Senado e da Câmara.