A era dos oprimidos

Há quase 30 anos, em entrevista que me concedeu, Alceu Amoroso Lima profetizava que o século 21 seria o da redenção das mulheres e dos negros

A previsão do escritor e pensador, também conhecido como Tristão de Ataíde, era a de que os dois grandes preconceitos históricos, o do racismo contra os africanos e seus descendentes no mundo, e o dos homens contra as mulheres, seriam vencidos no século que se iniciou há uma década. A eleição de Dilma Rousseff é emblemática, como todos estão apontando, por ser a primeira vez que uma mulher chega à chefia do Estado e do governo no Brasil. Nossa época está rompendo com muitos dos tabus históricos. O preconceito contra os negros e mestiços foi quebrado no país que se notabilizara pelo apartheid até 50 anos antes, os Estados Unidos – com a eleição de Obama –, isso sem falar no caso da África do Sul, onde a situação era ainda mais abominável, porque se tratava da odiosa­ opressão de minoria branca contra a imensa maioria negra.

A eleição de Dilma era esperada. Não há governos perfeitos, mas existem aqueles em que os saldos são positivos. O grande segredo de Lula é a sua autenticidade. Seu mérito foi o de, ao chegar ao poder, não esquecer a origem, ainda que obrigado a conviver com representantes das elites econômicas e sociais do país. Tais eram (e ainda continuam sendo) as desigualdades sociais históricas, que Lula percebeu ser necessário contar com o consumo dos mais pobres, a fim de ampliar o mercado interno. Por mais discreta que tenha sido a redistribuição de renda, ela teve efeito multiplicador sobre a economia. O desemprego chegou aos menores níveis históricos no Brasil.

Outro importantíssimo resultado da eleição é o do equilíbrio continental. Mesmo tendo perdido o seu grande orientador, Néstor Kirchner, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, tem todas as condições para manter excelente relacionamento com Dilma, assegurando o entendimento entre as duas nações mais poderosas da América do Sul, no caminho para a unidade continental. Seja mantendo o chanceler Celso Amorim, seja nomeando para o seu lugar homens da mesma visão de mundo (como é o caso de Samuel Pinheiro Guimarães), Dilma deve manter a forte presença de nosso país no mundo.

Mais importante do que a eleição de Dilma, com todos os seus méritos, é a conclusão clara e objetiva de que o povo brasileiro aprovou as grandes mudanças realizadas nos últimos oito anos. Não só aprovou as medidas de caráter interno, na ação econômica, como a nova postura de independência do país no mundo. Chico Buarque de Hollanda a resumiu bem ao dizer que, durante o governo anterior, o Brasil falava grosso com o Uruguai e o Paraguai, e falava mansinho com os Estados Unidos. Hoje o tom de voz é o mesmo, seja com Washington, seja com Assunção.

Quando o candidato José Serra prometeu mudar a política externa brasileira, perdeu milhões de votos. Os brasileiros decidiram, definitivamente, desmentir Nelson Rodrigues, que nos atribuía o complexo de vira-latas. E deram uma resposta varonil a Fernando Henrique Cardoso, que nos considerava um povo de caipiras e de deslumbrados com o mundo desenvolvido. Deslumbrado com as luzes do mundo é ele. A experiência demonstra que, ao associar-se aos países emergentes, e abandonar o alinhamento automático com os Estados Unidos e a União Europeia, o Brasil fez com que os países desenvolvidos nos vissem com outros olhos e nos tratassem com o respeito que nos negavam.

Outra lição eleitoral é a de que o povo brasileiro não engoliu as canhestras explicações para a privatização do patrimônio público, de responsabilidade do governo anterior. As mesmas razões que levaram os mineiros a votar no nacionalista Itamar fizeram com que votassem agora contra Serra. Os mineiros não perdoam a entrega da Vale do Rio Doce. E se riem do argumento de que hoje a empresa paga mais impostos, quando antes, além dos impostos, os dividendos eram do Brasil. A vitória de Dilma é um avanço definitivo no processo de real independência do Brasil.

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