O Bravo Velho Mundo

Agora, você engole duas ou três pílulas de meio grama, e pronto! Qualquer um pode ser virtuoso agora. Você pode levar pelo menos metade de sua moral num vidro. Cristianismo sem lágrimas, é isso que soma é (De um personagem de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley)

No passado, quando se imaginava uma sociedade no futuro século 21, com frequência­, como no romance de Aldous Huxley, se descrevia um mundo rigidamente administrado por uma direção implacável, totalitária e centralizadora. Quem diria! Hoje em dia, esse verdadeiro terror da ficção científica foi substituído pela dura realidade de um mundo atomizado, fragmentado, onde tudo é desregulamentado, direitos e até deveres se evaporam de uma hora para outra, e a ferocidade dos mercados financeiros a tudo devora sem nada devolver em troca – a não ser doses diárias de anestésicos para neutralizar a adrenalina desprendida pela insegurança. Parece mentira: é o que se vê quando se olha o mundo a partir das sensações despertas na velha Europa neste começo de milênio.

Em primeiro lugar, nesta altura do campeonato, o que é a Europa? Descontando-se a Rússia europeia, a maior parte da Europa compreende o território da União Europeia, uma associação de 27 países com tratados comuns. Essa associação começou a se constituir em 1957, com a Comunidade Econômica Europeia e a Comunidade Europeia de Energia Atômica, que abrangiam poucos países.

Em 1979 elegeu-se pela primeira vez um Parlamento Europeu pelo voto direto. Em 1985 foi celebrado o Tratado de Schengen, liberando as fronteiras dos países-membros em muitos aspectos. Em 1989-1990 a queda do Muro de Berlim, o fim dos regimes comunistas e a reunificação da Alemanha precipitaram o processo de formação do bloco. Em 1992, o Tratado de Maastricht criou a União Europeia, que passou a existir oficialmente a partir de 1o de novembro de 1993. Em 1999 criou-se o euro, unidade monetária virtual que passou a ser adotada por vários países para transações não numerárias, isto é, não pagas em dinheiro vivo. Em 2002 a moeda euro entrou em circulação, substituindo os francos, marcos, escudos, pesetas etc.

Atualmente, 16 países da União Europeia compõem a chamada Zona do Euro. Outros 11 países da UE não pertencem à Zona do Euro, entre eles o Reino Unido e a Suécia. Alguns estão na fila de espera, como a Bulgária e a Romênia. Outros, em negociação ou pré-negociação, como a Islândia, a Polônia e a Dinamarca. A Turquia é um caso complicado, pois sua entrada na União Europeia abriria as fronteiras do continente para a imigração turca, que já é grande, motivo pelo qual muitos países da UE resistem a essa possibilidade.

Há ainda o caso de países que não pertencem à União Europeia, mas usam o euro, como Vaticano e San Marino, Andorra, Montenegro e Kossovo, ou ainda possessões coloniais fora da Europa. Finalmente, há o caso da Suíça, que é signatária do Tratado de Schengen, mas não pertence à UE nem à Zona do Euro.

Reviravolta

Acontece que a UE foi uma ideia semeada ao tempo em que grande parte das sociedades europeias eram regidas por princípios social-democratas e por Estados voltados para “o bem-estar social”. No entanto, ela cresceu e foi colhida num mundo onde o comunismo ruíra e em seu lugar se instalara o império neoliberal dos mercados, além da filosofia do thatcherismo inglês, literalmente destruindo o poder de barganha dos sindicatos de trabalhadores.
Ao se constituir a União Europeia, cuja comissão tem sede em Bruxelas (o Parlamento Europeu tem sede em Estrasburgo e o Banco Central Europeu, em Frankfurt), grande parte de seu esforço para homogeneizar as relações internas dos países-membros se deu na direção de desregulamentar as economias, num sentido semelhante ao do Consenso de Washington­, e de diminuir as características trabalhistas do Estado de bem-estar social.

Ao mesmo tempo, criou-se uma situação esdrúxula, porque a moeda­ euro tem um Banco Central mas não tem um Tesouro; o lastro da moeda continua a ser definido pelas nações. Entre elas, as mais fortes são a Alemanha, a de economia mais poderosa, a matriarca do conjunto, e a França, a tia rica. Há outras remediadas, como a Holanda e Luxemburgo (que agrega capital, em parte, da evasão fiscal vinda dos outros países). Ou seja, nesses últimos anos a UE, e em particular a Zona do Euro, foi construindo a sua periferia. E isso eclodiu, ou melhor, explodiu a partir da grande crise financeira de 2008. Outro fator de peso na crise foi o endividamento público. No princípio, criou-se um “cordão sanitário”: o déficit público de cada país-membro da Zona do Euro não poderia passar de 3%, e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do seu PIB. Mas isso ficou no papel.

A maior parte dos países foi criando dívidas astronômicas. A da Grécia chegou a mais de 120% do PIB, e a de Portugal passou dos 80%. Mesmo a Alemanha e a França, economias mais poderosas, enfrentam dívidas de 72% e 77%. Com um agravante: países­ de economia mais fraca, como Grécia, Portugal, Espanha, Itália, não tinham mais moeda própria para desvalorizar e tornar suas exportações competitivas. Passou a crescer o desemprego e a inflação rondou as portas. Quando a Grécia afundou e viu-se sem divisas para honrar pagamentos, nem com poder de barganha para redimensionar suas dívidas, a Zona do Euro inteira, de Arca de Noé que era, se tornou um Titanic. E começou a afundar, em bloco.

As medidas tomadas foram um socorro à Grécia, sob a forma de novos empréstimos com lastro nos países mais fortes e a formação de um fundo de proteção para o euro, da ordem de US$ 1 trilhão. Dos empréstimos à Grécia, 80% vão parar nos bancos credores, sobretudo alemães e franceses, cuja quebra também esburacaria o sistema todo. Mas, junto com as medidas econômicas, vieram novas medidas de esvaziamento do Estado de bem-estar social, ou do que dele resta: cortes em pensões, aposentadorias, programas sociais, investimentos.

É disso que se trata, quando vemos as manifestações que tomaram conta do cenário europeu, primeiro na Grécia, depois na França e amanhã não se sabe onde – só se sabe que vão continuar, porque, como quase sempre, são os trabalhadores que estão pagando o pato, as dívidas nacionais e o lastro do euro. Na França, os protestos recentes tinham por móvel imediato a reforma da previdência, passando de 60 para 62 anos a idade mínima da aposentadoria e de 65 para 67 a da aposentadoria máxima, que é de 75% do último salário. Mas foram além, e tornaram-se protestos contra a política econômica e social do governo de Sarkozy, bem como contra a lista de escândalos financeiros em que o governo acabou se envolvendo.

De modo que, quando se olha para o nosso Bravo Velho Mundo, a impressão que se tem é que a luta não só continua, mas vai continuar por muito tempo e se intensificar. Todos os dias lê-se que a economia está melhorando; mas como disse um sindicalista da CGT francesa, Christian Pilichovski­, que encontrei em Stuttgart numa conferência sobre a crise do setor automotivo, “as empresas vão bem, mas os trabalhadores vão mal”. E vão melhor, como no caso da Alemanha, por exemplo, graças às exportações para a China e o Sudeste Asiático. Internamente, o poder aquisitivo caiu. E parece que, ao contrário do Novo Mundo de Huxley, nem soma existe mais para todos.