O Bravo Velho Mundo
Agora, você engole duas ou três pílulas de meio grama, e pronto! Qualquer um pode ser virtuoso agora. Você pode levar pelo menos metade de sua moral num vidro. Cristianismo sem lágrimas, é isso que soma é (De um personagem de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley)
Publicado 12/11/2010 - 18h56
No passado, quando se imaginava uma sociedade no futuro século 21, com frequência, como no romance de Aldous Huxley, se descrevia um mundo rigidamente administrado por uma direção implacável, totalitária e centralizadora. Quem diria! Hoje em dia, esse verdadeiro terror da ficção científica foi substituído pela dura realidade de um mundo atomizado, fragmentado, onde tudo é desregulamentado, direitos e até deveres se evaporam de uma hora para outra, e a ferocidade dos mercados financeiros a tudo devora sem nada devolver em troca – a não ser doses diárias de anestésicos para neutralizar a adrenalina desprendida pela insegurança. Parece mentira: é o que se vê quando se olha o mundo a partir das sensações despertas na velha Europa neste começo de milênio.
Em primeiro lugar, nesta altura do campeonato, o que é a Europa? Descontando-se a Rússia europeia, a maior parte da Europa compreende o território da União Europeia, uma associação de 27 países com tratados comuns. Essa associação começou a se constituir em 1957, com a Comunidade Econômica Europeia e a Comunidade Europeia de Energia Atômica, que abrangiam poucos países.
Em 1979 elegeu-se pela primeira vez um Parlamento Europeu pelo voto direto. Em 1985 foi celebrado o Tratado de Schengen, liberando as fronteiras dos países-membros em muitos aspectos. Em 1989-1990 a queda do Muro de Berlim, o fim dos regimes comunistas e a reunificação da Alemanha precipitaram o processo de formação do bloco. Em 1992, o Tratado de Maastricht criou a União Europeia, que passou a existir oficialmente a partir de 1o de novembro de 1993. Em 1999 criou-se o euro, unidade monetária virtual que passou a ser adotada por vários países para transações não numerárias, isto é, não pagas em dinheiro vivo. Em 2002 a moeda euro entrou em circulação, substituindo os francos, marcos, escudos, pesetas etc.
Atualmente, 16 países da União Europeia compõem a chamada Zona do Euro. Outros 11 países da UE não pertencem à Zona do Euro, entre eles o Reino Unido e a Suécia. Alguns estão na fila de espera, como a Bulgária e a Romênia. Outros, em negociação ou pré-negociação, como a Islândia, a Polônia e a Dinamarca. A Turquia é um caso complicado, pois sua entrada na União Europeia abriria as fronteiras do continente para a imigração turca, que já é grande, motivo pelo qual muitos países da UE resistem a essa possibilidade.
Há ainda o caso de países que não pertencem à União Europeia, mas usam o euro, como Vaticano e San Marino, Andorra, Montenegro e Kossovo, ou ainda possessões coloniais fora da Europa. Finalmente, há o caso da Suíça, que é signatária do Tratado de Schengen, mas não pertence à UE nem à Zona do Euro.
Reviravolta
Acontece que a UE foi uma ideia semeada ao tempo em que grande parte das sociedades europeias eram regidas por princípios social-democratas e por Estados voltados para “o bem-estar social”. No entanto, ela cresceu e foi colhida num mundo onde o comunismo ruíra e em seu lugar se instalara o império neoliberal dos mercados, além da filosofia do thatcherismo inglês, literalmente destruindo o poder de barganha dos sindicatos de trabalhadores.
Ao se constituir a União Europeia, cuja comissão tem sede em Bruxelas (o Parlamento Europeu tem sede em Estrasburgo e o Banco Central Europeu, em Frankfurt), grande parte de seu esforço para homogeneizar as relações internas dos países-membros se deu na direção de desregulamentar as economias, num sentido semelhante ao do Consenso de Washington, e de diminuir as características trabalhistas do Estado de bem-estar social.
Ao mesmo tempo, criou-se uma situação esdrúxula, porque a moeda euro tem um Banco Central mas não tem um Tesouro; o lastro da moeda continua a ser definido pelas nações. Entre elas, as mais fortes são a Alemanha, a de economia mais poderosa, a matriarca do conjunto, e a França, a tia rica. Há outras remediadas, como a Holanda e Luxemburgo (que agrega capital, em parte, da evasão fiscal vinda dos outros países). Ou seja, nesses últimos anos a UE, e em particular a Zona do Euro, foi construindo a sua periferia. E isso eclodiu, ou melhor, explodiu a partir da grande crise financeira de 2008. Outro fator de peso na crise foi o endividamento público. No princípio, criou-se um “cordão sanitário”: o déficit público de cada país-membro da Zona do Euro não poderia passar de 3%, e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do seu PIB. Mas isso ficou no papel.
A maior parte dos países foi criando dívidas astronômicas. A da Grécia chegou a mais de 120% do PIB, e a de Portugal passou dos 80%. Mesmo a Alemanha e a França, economias mais poderosas, enfrentam dívidas de 72% e 77%. Com um agravante: países de economia mais fraca, como Grécia, Portugal, Espanha, Itália, não tinham mais moeda própria para desvalorizar e tornar suas exportações competitivas. Passou a crescer o desemprego e a inflação rondou as portas. Quando a Grécia afundou e viu-se sem divisas para honrar pagamentos, nem com poder de barganha para redimensionar suas dívidas, a Zona do Euro inteira, de Arca de Noé que era, se tornou um Titanic. E começou a afundar, em bloco.
As medidas tomadas foram um socorro à Grécia, sob a forma de novos empréstimos com lastro nos países mais fortes e a formação de um fundo de proteção para o euro, da ordem de US$ 1 trilhão. Dos empréstimos à Grécia, 80% vão parar nos bancos credores, sobretudo alemães e franceses, cuja quebra também esburacaria o sistema todo. Mas, junto com as medidas econômicas, vieram novas medidas de esvaziamento do Estado de bem-estar social, ou do que dele resta: cortes em pensões, aposentadorias, programas sociais, investimentos.
É disso que se trata, quando vemos as manifestações que tomaram conta do cenário europeu, primeiro na Grécia, depois na França e amanhã não se sabe onde – só se sabe que vão continuar, porque, como quase sempre, são os trabalhadores que estão pagando o pato, as dívidas nacionais e o lastro do euro. Na França, os protestos recentes tinham por móvel imediato a reforma da previdência, passando de 60 para 62 anos a idade mínima da aposentadoria e de 65 para 67 a da aposentadoria máxima, que é de 75% do último salário. Mas foram além, e tornaram-se protestos contra a política econômica e social do governo de Sarkozy, bem como contra a lista de escândalos financeiros em que o governo acabou se envolvendo.
De modo que, quando se olha para o nosso Bravo Velho Mundo, a impressão que se tem é que a luta não só continua, mas vai continuar por muito tempo e se intensificar. Todos os dias lê-se que a economia está melhorando; mas como disse um sindicalista da CGT francesa, Christian Pilichovski, que encontrei em Stuttgart numa conferência sobre a crise do setor automotivo, “as empresas vão bem, mas os trabalhadores vão mal”. E vão melhor, como no caso da Alemanha, por exemplo, graças às exportações para a China e o Sudeste Asiático. Internamente, o poder aquisitivo caiu. E parece que, ao contrário do Novo Mundo de Huxley, nem soma existe mais para todos.