Apagão de memória

14 anos depois de privatização em SP, prejuízos afetam trabalhadores e população

(Foto: Rodrigo Zanotto)

Um assunto continua meio apagado em discursos e debates eleitorais: energia. Tema que só costuma render pauta quando ocorrem apagões e ameaças de racionamento. Só é notícia quando falta. Mas a realidade no estado de São Paulo é que os moradores de muitas cidades sofrem com constantes “apaguinhos”, apesar de pagar em dia contas cada vez mais altas. Já os empregados no setor convivem com demissões, piora das condições de trabalho e terceirização de atividades-fim. É esse o cenário após 14 anos da privatização no único estado que repassou para controladores privados, inclusive estrangeiros, quase todo o patrimônio público de um setor estratégico para o crescimento.  

As empresas privatizadas, em detrimento de seu papel de concessionárias de um serviço público, adotaram lógica de mercado. São campeãs de rentabilidade entre as empresas de capital aberto no Brasil, aponta levantamento da empresa de informação financeira Economática, divulgado em maio. O estudo constatou que nos últimos cinco anos as energéticas lideraram um grupo de nove companhias que conseguiram lucro anual do tamanho de 30% do patrimônio.

Tarifas“É preciso pensar o sistema elétrico nacional como serviço público e não como uma questão econômica e de mercado”, observa Luiz Pinguelli Rosa, diretor de Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).  “A privatização trouxe prejuízo econômico ao país e, do ponto de vista técnico, os investimentos foram menores se comparados ao aumento da demanda, o que levou à crise em 2001”, afirma. Na época, Pinguelli participava de grupo de estudos que alertou o presidente Fernando Henrique Cardoso antes de o Brasil sofrer seu maior apagão.

O especialista ressalta ainda que a privatização provocou tarifas altas. “O Brasil tem uma energia muito cara, apesar de seu potencial hidrelétrico, que é mais barato. Outros países que usam a hidreletricidade em larga escala, como Canadá, Noruega e alguns estados norte-americanos, têm tarifas mais baixas.” Para ele, o governo Lula deveria ter corrigido os contratos do governo FHC.

Geraldo Alckmin comandou a operação de negociar as estatais, primeiro como presidente do Programa Estadual de Desestatização (PED) do governo Covas e depois como governador. O estado perdeu Banespa, Fepasa, Ceagesp, estradas e quase todas as empresas de energia, incluindo a Comgás. Uma a uma, as três empresas de energia elétrica foram fatiadas, leiloadas e transformadas nas atuais distribuidoras CPFL Energia, AES Eletropaulo, Elektro e Bandeirante, nas geradoras AES Tietê e Duke Energy e na transmissora CTEEP, que incorporou a EPTE e agora é controlada pela estatal colombiana ISA.

A exceção do PED era a CTEEP, com a alegação de que a empresa de transmissão continuaria sob controle estatal para garantir a eficiência e o controle do sistema elétrico. Mas frustradas as três tentativas de leiloar a Cesp, o governo tucano acionou novamente o rolo compressor na Assembleia e aprovou a Lei 11.930/2005, que autorizou a privatização da CTEEP, em junho de 2006. Em apenas quatro anos, a transmissora só rivaliza com a CPFL Energia em volume de denúncias na Justiça do Trabalho e Ministério Público por ilegalidades trabalhistas e práticas anti-sindicais, além da demissão de profissionais qualificados. O quadro, reduzido em 45%, hoje tem 2.500 trabalhadores – metade é de terceirizados. A RdB entrou em contato com a CPFL e a CTEEP, que afirmaram pelas assessorias de imprensa que não iriam se manifestar.  

No total, segundo a liderança do PT na Assembleia, as privatizações renderam R$ 32,9 bilhões ao governo. “Mas a dívida consolidada cresceu e passou de R$ 34 bilhões em 1994 para R$ 138 bilhões em 2004”, afirma Jesus Francisco Garcia, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado (Sinergia-CUT). “Alckmin vendeu dois terços das estatais, mas a dívida cresceu 33,5% em dez anos. Pior é que não há nenhuma comprovação de que o dinheiro foi para investimentos em saúde, educação e segurança. Basta dizer que esses ainda são os maiores problemas da população paulista até hoje.”

Passados 14 anos, desde a madrugada de 26 de junho de 1996, quando a bancada de maioria tucana aprovou a Lei 9.361/96, que autorizou na Assembleia Legislativa o PED, uma audiência pública realizada em maio reuniu naquela Casa lideranças sindicais, trabalhadores da ativa e aposentados, parlamentares e representantes do movimento social. As empresas não compareceram.

Documentos reunidos pelo Sinergia-CUT apontam irregularidades em várias empresas, como condições precárias de trabalho, aumento de acidentes graves e fatais, assédio moral, falta de manutenção, descumprimento de contratos de concessão e acordos coletivos, sucateamento do sistema que interliga geração, transmissão e distribuição de energia, além de pressões para restringir a atividade sindical. As denúncias foram o motivo da realização da audiência pública. O deputado petista Rui Falcão criticou o descaso com o atendimento do serviço público: “São inúmeros os problemas que afetam os trabalhadores diretos, os terceirizados e a população. O papel do Estado desapareceu e as fiscalizações do Legislativo e até da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) têm força reduzida diante da pressão das empresas privatizadas”. Procurada, a Aneel não quis se manifestar.

A Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) garante, por sua vez, que a fiscalização é transparente, feita por avaliação de resultados e não pela gerência dos negócios. “As regras são rígidas e boa parte delas foi e vem sendo assimilada pelas empresas”, diz Aderbal de Arruda Penteado Junior, diretor de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Energia. Para Penteado Junior, “o grande buraco negro da energia elétrica é a informação, e informar o consumidor é mais obrigação do Estado do que das concessionárias”.

A principal decisão da audiência pública foi cobrar do governo paulista que continue no controle acionário das empresas ainda não vendidas – a  Companhia Energética de São Paulo (Cesp), maior geradora do estado e terceira do Brasil, e a Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae). É o que propõe o PL 563/2010, que entrou na pauta da Assembleia e tramita pelas comissões de Constituição e Justiça e de Serviços e Obras Públicas desde 11 de agosto.

Consumidor paga o custo da privatização

A família Sanchez seguiu à risca o que toda concessionária de energia elétrica recomenda: trocar a geladeira por um modelo econômico, adotar lâmpadas eletrônicas, controlar o banho e o ferro de passar. Foi em vão. O valor da conta, em torno de R$ 65 em janeiro de 2009, estava próximo de R$ 120 um ano depois. Assistente administrativa-financeira, Rita de Cássia – que mora com o filho adolescente e os pais na Vila Boa Vista, em Campinas – reclamou: “O consumidor é refém da empresa (CPFL), que não sabe explicar um preço tão fora da realidade”.

A CPFL Paulista atende 234 municípios e teve reajuste médio de 21% da tarifa em 2009. O Procon moveu ação civil pública contra a concessionária. A iniciativa é inédita e envolve também a Aneel, responsável por autorizar o reajuste. O índice proposto pela CPFL – quatro vezes maior que a inflação e o triplo da média dos reajustes salariais do mesmo período – não atendia aos princípios da energia a preços suportáveis a todos os consumidores. 

“O consumidor, sozinho, pouco consegue das concessionárias”, diz Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da Pro Teste (Associação Brasileira de Consumidores). Ela diz que é preciso avançar para ter maior participação e mobilização da sociedade sobre um setor no qual, ela própria diz, erros acontecem. É o caso dos R$ 7 bilhões pagos a mais pelos consumidores de todo o país nos últimos sete anos por conta de um erro na fórmula de reajuste das tarifas.

Há uma ação civil pública da Pro Teste em tramitação na Justiça para que os consumidores sejam ressarcidos. A associação encaminhou ao Ministério de Minas e Energia, à Aneel e aos candidatos à Presidência uma lista de reivindicações. Entre elas, um espaço para que o consumidor possa participar na elaboração de políticas públicas para o setor. A lista inclui a atualização periódica dos mecanismos de revisão tarifária, que leve também em conta os ganhos das distribuidoras, além da redução da carga tributária sobre o consumo. Os impostos são uma pedra no calcanhar do empresariado. A indústria, que responde por 50% do consumo, reivindica redução da carga tributária. Carlos Cavalcanti, da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), diz que o custo da energia elétrica é fundamental para a competitividade do setor