Aprender a aprender

Os ginásios vocacionais, criados no início da década de 1960 no estado de São Paulo, foram uma experiência de escola pública tão bem-sucedida que irritou até o regime militar

(Foto: Rodrigo Queiroz)

Jornais da época anunciavam a instalação em caráter experimental de uma escola ginasial pública com características bem diferentes das tradicionais. Atraídos pelo anúncio, os pais de Claudia Alencar, hoje atriz da TV Record, pintora e escritora, a matricularam, mas não sabiam que ela estrearia uma nova pedagogia. Um ano antes de suas aulas começarem, em 1961, foi criado por decreto, em São Paulo, o Serviço do Ensino Vocacional (SEV), subordinado ao gabinete do secretário estadual de Educação, Luciano Vasconcellos de Carvalho, que coordenava as unidades dos novatos ginásios vocacionais.

Numa viagem pela Europa, Carvalho descobriu os métodos de Sèvres (francês) e da Escola Compreensiva inglesa, segundo os quais a formação deveria incentivar a participação ativa e consciente dos alunos numa sociedade democrática. Assim que voltou, o secretário formou uma comissão de educadores e especialistas do ensino secundário e industrial para desenvolver uma escola que atendesse ao que considerava os novos apelos da sociedade. O que ele não sabia é que na cidade de Socorro, no interior do estado, Maria Nilde Mascelani e Olga Bechara já estavam à frente de um projeto chamado Classes Experimentais, bem próximo dos moldes de Sèvres. Assim nasceu o SEV, que não era nem escola ginasial – correspondente às quatro últimas séries do ensino fundamental de hoje – nem industrial, mas um ambiente de descoberta que dava ferramentas para os alunos conhecerem as áreas que poderiam escolher no futuro.

Claudia Alencar, admitida na unidade do bairro paulistano do Brooklin, ajudou, com outros alunos, a preparar a escola para o início das aulas. “O prédio não estava pronto. A gente envernizou as carteiras, limpou tudo, foi muito divertido. Lá fazíamos e aprendíamos coisas que não se viam em nenhum lugar”, afirma a atriz.

Olga Bechara participou de todo o processo de implementação das escolas, foi supervisora de orientação pedagógica e professora. “O que é vocação para uma criança de 12 anos? O que fazíamos era explorar suas aptidões – hoje chamadas de competências – e seus interesses. Para isso, oferecíamos vários campos para eles conhecerem.”

Esméria Rovai, então professora de recursos audiovisuais, explica que a proposta surgiu em um momento histórico em que era revista a concepção de ciências sociais. “Estava surgindo uma nova antropologia, com a visão de um homem que sofria a influência de seu meio e devia tornar-se consciente e engajado. Nisso se baseavam os ginásios vocacionais.”

Diversidade

Antes de inaugurar as escolas, a coordenação do SEV fazia uma profunda pesquisa na comunidade para descobrir o perfil da região, os tipos de comércio e empresa, as classes sociais dos moradores, entre outras características. O resultado subsidiava o processo de seleção e eram promovidas entrevistas com pais e filhos interessados. As unidades da capital e do município de Batatais foram inauguradas em 1962, no ano seguinte vieram as de Rio Claro e Barretos e, por fim, em 1968, entrou em funcionamento a de São Caetano do Sul.

O ex-aluno Luiz Carlos Marques afirma que a pesquisa na comunidade fazia com que houvesse heterogeneidade entre os selecionados. “Eu estudava na unidade do Brooklin. Se lá 10% dos moradores fossem da classe A, 50% da classe B e 40% da C, por exemplo, essa seria a composição das turmas. Na época a gente nem sabia disso”, lembra Luigy, como é conhecido o atual presidente da GVive, Associação dos Ex-Alunos e Amigos do Vocacional.

Outra inovação foi o conteúdo curricular, também desenvolvido de acordo com as características locais. As disciplinas eram estudadas a partir de um tema central (geralmente na área dos estudos sociais), decidido em uma espécie de assembleia de professores e alunos. Havia aulas de estudos sociais – uma mistura de geografia, história e sociologia –, português, matemática, ciências, inglês, francês, além das matérias técnicas, como artes industriais, práticas comerciais, práticas agrícolas (em algumas unidades), artes plásticas, educação doméstica, educação musical, educação física, teatro, orientação religiosa ecumênica e sexual.

“Se o tema era Olimpíada, em matemática tirávamos as medidas de quadras, em português pesquisávamos textos sobre o assunto, nas artes plásticas desenhávamos os temas, em educação musical, pesquisávamos e tocávamos os hinos. Era um processo cíclico. Todas as disciplinas dialogavam e se complementavam”, recorda Luigy. No primeiro ano do Ginásio Vocacional estudava-se o bairro, depois, passava-se para as cidades próximas, o estado, o país, e no quarto ano ampliavam para temas relacionados com o resto do mundo.

O astro do programa era o que chamavam de estudos do meio, em que os grupos saíam das escolas para conhecer a realidade da cidade, viajavam para os municípios vizinhos e para outros estados. “Teve uma turma que chegou a ir para a Bolívia!”, diz Luigy. Eles visitavam os comércios, indústrias, iam para fazendas aprender de perto noções de agricultura e pecuária. O aprendizado era complementado pelas atividades na cooperativa, no banco, no escritório contábil e no governo estudantil.

Podia até parecer brincadeira, mas tudo fazia parte do método de ensino: nas viagens e na cantina, os alunos usavam cheques emitidos por banco próprio, vendiam material escolar na cooperativa, faziam o balanço financeiro no escritório de contabilidade e ainda votavam para governador e deputados, tal qual em regimes democráticos de gente grande. Marco Otávio Baruffaldi, que estudou na mesma turma de Luigy, lembra: “Os pais que podiam depositavam dinheiro na conta do filho e era com isso que ele ia viajar nos estudos do meio, comprava alguma coisa na cantina… E os filhos dos pais que não podiam também faziam tudo isso porque os outros pais, em segredo, depositavam para eles também”.

Apesar de sua família ser pobre, Elisete Greve Tedesco nunca deixou de fazer atividades nem de viajar com sua turma, em Barretos, por falta de dinheiro. Filha de uma viúva – a cozinheira da unidade – e com outros dois irmãos, ela garante ter sido essa escola que a ajudou a tornar-se o que é hoje: historiadora, artista plástica, administradora de empresas e presidente da Academia de Letras e Artes de Barretos. “Como eu teria acesso às artes plásticas, à decoração, à pintura? Tocávamos Chiquinha Gonzaga, Donga, fazíamos xilogravuras, óleos sobre tela, mosaicos. Também tínhamos torno, práticas agrícolas… Plantávamos, colhíamos e preparávamos os alimentos nas aulas de economia doméstica. Meninos e meninas juntos. E tudo com a maior naturalidade”, lembra Elisete, hoje com 53 anos.

 

Juntos e iguais

Os garotos participavam das aulas de educação doméstica, iam para a cozinha, aprendiam a pregar botão, assim como as meninas iam para o torno, a marcenaria e a horta. O respeito à individualidade era o mesmo para ambos os sexos. Elisete destaca como marcantes de seus quatro anos de estudo ginasial não apenas o conteúdo das aulas, mas a forma como eram dadas. Liberdade era palavra de ordem, sempre acompanhada de outra de igual importância: responsabilidade. “Se quiséssemos sair, saíamos, éramos livres e responsabilizados pelos nossos atos. A educação do Vocacional formava para a liderança, para aprendermos a viver com as diferenças e respeitá-las. Os alunos eram contestadores. Os professores estimulavam o pensamento, que buscássemos as respostas. Eles sempre nos devolviam as perguntas”, emociona-se.

A liderança era incentivada por meio de uma técnica chamada sociograma. Os jovens elegiam três pessoas que queriam ter em seus grupos e os mais votados eram os líderes. Claudia e Elisete foram escolhidas. Pérsio Ebner foi além. Candidatou-se pelo partido União Vocacional Democrática e foi eleito para o cargo de deputado. “Fui eleito pela cota do partido. A gente estudava as leis e adaptava para a escola. Tinha eleição mesmo – mesário, título de eleitor, campanha”, conta o biomédico de 57 anos, selecionado em 1965 para estudar na unidade de Batatais.

“Inicialmente conhecíamos os aspectos da cidade e íamos estudando tudo dentro do contexto dos estudos sociais. Conhecemos indústria de leite, de calçados, fomos a museus, descobrimos os tipos de vegetação. Fizemos muitas viagens. Fomos para Belo Horizonte, São Paulo, acampamos numa fazenda de alho em Batatais. Eu me desenvolvi muito”, garante Pérsio.

Aos 78 anos e cheia de lucidez, a ex-coordenadora de orientação pedagógica Olga Bechara conhece como poucos a história de todas as unidades do Vocacional e lembra a alegria dos que lá estudavam. “Acabava a aula e eles não queriam ir embora. Nessa idade, isso não é muito comum, né? Os pais me perguntavam: ‘Que escola é essa que, quando quero castigar meu filho, digo que ele não vai à aula?’ Eles não entendiam”, ri.

O engenheiro e empresário Nelson Freire teve três dos quatro filhos na unidade do Brooklin. Seu entusiasmo com a escola foi tão grande que se tornou presidente da Federação das Associações de Pais e Amigos do Vocacional. “Foi uma experiência maravilhosa, porque víamos que o processo educacional era inovador e criativo. Havia envolvimento profundo dos alunos na vida da comunidade e da sociedade. Como pai e cidadão, passei por um aprendizado fabuloso”, diz, saudoso.

A maior dificuldade do SEV sempre foi o orçamento, proveniente da Secretaria de Educação e considerado baixo para o tamanho do investimento. O coordenador financeiro do serviço, Manoel Maia, lembra que suas visitas à sede do governo e à secretaria eram frequentes. “Fui várias vezes ao gabinete do (governador) Abreu Sodré em busca de verbas para suportar o projeto. Sempre conseguia alguma coisa, apesar da má vontade. No geral, havia desinteresse do estado.” O contador afirma que parte dos recursos era arrecadada pelas associações de pais. “Mesmo assim, a verba não cobria nunca. Era um ensino diferenciado, mas valia a pena, era um celeiro de inteligência.”

Início do fim

Foi essa mesma percepção que levou o governo militar – ainda mais arbitrário em 1968 devido à promulgação do Ato Institucional número 5 – a apertar cada vez mais o cerco àquela nova forma de ensinar que formava cidadãos críticos e contestadores. Afastamentos, ameaças e até prisões aconteceram. Por fim, em 1969, foi oficialmente extinto pela ditadura – permitindo apenas aos alunos que tinham iniciado seus cursos e aos que entraram no ano seguinte concluir seus estudos. Foi por esse contexto que Manoel Maia ficou preso por três meses, Elisete viu pais de amigos indo para a prisão, Nelson Freire teve de prestar depoimento na Polícia Federal e Olga Bechara, no DOI-Codi. Se o problema até então era a falta de recursos, agora era também a perseguição à coordenação, ao corpo docente e até mesmo aos pais dos alunos.

Olga sofreu ameaças. A situação que viveu numa salinha daquele centro de tortura ficou gravada na memória. “O cabo me perguntou como eu podia levar um menino de 12 anos para conhecer uma favela. Eu respondi que não precisava esconder a favela dele, que era preciso conhecer o problema habitacional. ‘O senhor precisa ver, cabo, o que eles dizem quando voltam. Eles querem consertar o país, fazem projetos. Se a gente esconde isso agora, quando descobrirem a realidade na universidade, ficarão revoltados e será pior.’ E o cabo ficou ali, me olhando”, lembra a ex-coordenadora pedagógica.

Além das ameaças da ditadura, a experiência dos vocacionais sofreu com os desencontros pessoais que começaram a surgir nas equipes. Olga e a ex-professora Esméria afirmam que hoje várias escolas particulares utilizam conceitos do ginásio vocacional, mas nunca mais a iniciativa aproximou-se das públicas.

“Conhecer a realidade, e não ficar apenas com o ‘estudo livresco’, levou o Vocacional a ser considerado um projeto subversivo. Ainda hoje seus princípios básicos são atualíssimos e acho que ele pode e deve ser levado à educação pública”, opina Esméria, autora do livro Ensino Vocacional: uma Pedagogia Atual.

O ex-aluno Marco Buruffaldi não deixa de pensar: “Imagine se metade da população brasileira tivesse acesso ao que tivemos no Vocacional! Tenho certeza de que não estaríamos na situação em que estamos hoje”.