De berço

Filha de grandes atores, Julia Lemmertz persegue o bom trabalho, e não o sucesso. Rejeita botox e plásticas e acha legal envelhecer: “Sempre haverá espaço para os imperfeitos”

Julia Lemmertz tinha apenas 5 anos quando sua mãe, a atriz Lilian Lemmertz, a puxou pelo braço para fazer uma ponta no filme As Amorosas, dirigido por Walter Hugo Khouri. Ela não lembra quase nada, mas há quem diga que Paulo José e Stênio Garcia, atores do filme, enxergaram talento na menina, mesmo que sua atuação tenha se resumido a um levantar de braços. Afinal, filha de quem era – Lilian já era uma das mais talentosas atrizes do país –, não podia dar em outra coisa. Julia faz parte da última geração de atores em que o talento se sobrepõe à estética. Hoje, não há mais tantos Paulos e Stênios por aí. A televisão brasileira e parte do teatro amador são dominadas por ex-modelos e alpinistas saídos diretamente da banheira do Big Brother. Julia diz não se incomodar com isso – continua aprendendo com os melhores. Seu atual mestre é Lima Duarte, com quem faz par na novela Araguaia.

Uma tragédia impediu que mãe e filha trabalhassem juntas – Julia tinha 23 anos em julho de 1986, quando Lilian morreu, aos 48 anos, vítima de um enfarte no miocárdio. Julia está com 47, e ela mesma não consegue evitar comparações. Nos últimos meses, tem assistido a filmes e novelas estrelados pela mãe. “A lembrança que eu tinha era sempre de minha mãe como uma figura mais velha. Hoje, não. Fico vendo as novelas que ela fez e me sentindo um pouco ali. É muito louco isso, né?”, diz emocionada, durante entrevista na sala de imprensa do Projac, o centro de produções da TV Globo.

Lilian e Julia têm estilos diferentes – são unidas apenas pelo DNA e pelo talento. A mãe deixou um legado, que se confunde com a história do teatro e da televisão brasileira. A filha está aí, na batalha, fazendo novela, teatro (a peça O Deus da Carnificina, em cartaz no Rio, estreia no ano que vem em São Paulo) e cinema – acabou de rodar o filme Amor?, de João Jardim, o documentarista de Janela da Alma. “Eu penso como uma atriz das antigas. Persigo bons trabalhos, e não o sucesso.” Mamãe Lilian adoraria isso.

Você é filha de atores (Lineu Dias e Lilian Lemmertz) e estreou como atriz com 5 anos, numa ponta do filme As Amorosas. Em algum momento da vida você pensou em fazer outra coisa?
Não, nunca. Foi algo natural para mim. Não considero a minha participação em As Amorosas como uma estreia. Era uma ponta. Ficou faltando uma criança e como eu estava ali, acompanhando minha mãe, entrei no filme. Em 1971, foi a mesma coisa – uma ponta em Cordélia, Cordélia. Minha estreia mesmo só ocorreu dez anos mais tarde, quando fui fazer a novela Os Adolescentes, da TV Bandeirantes. Ali foi pra valer.

E sua mãe já era uma das grandes atrizes do Brasil. Você carregou o peso de ser filha de quem era?
Nunca me incomodou, mesmo porque fiquei distante da minha mãe. Fui morar sozinha no Rio de Janeiro, longe dela, para estudar teatro. Tinha 20 anos, queria minha independência financeira e emocional. Minha mãe era muito “mãezona”. Nunca me cobrou como atriz, ao contrário: dava a maior força, se emocionava. Chorava toda vez que ia me ver no teatro. Quando ela morreu, a gente estava planejando trabalhar juntas.

Como lidou com a tragédia?
Foi muito duro, mas é algo que hoje eu consegui resolver bem. Não sofro mais como sofria antes. O pessoal da Imprensa Oficial do Estado, que coordena a coleção Aplauso, dedicada a contar a vida de atores brasileiros, até me convidou para escrever um livro sobre minha mãe. Eu recusei. Não sou escritora e também acho que era preciso ter um distanciamento do personagem, que, claro, eu não tinha. Mas aí o Cleodon (Coelho, jornalista e roteirista) se ofereceu para fazer e o livro saiu (Lilian Lemmertz – Sem Rede de Proteção). Fiquei surpresa com o que li. Eu desconhecia toda a carreira de minha mãe como modelo e manequim em Porto Alegre. Ela morreu cedo, mas viveu de forma intensa e muito produtiva.

Sua mãe morreu aos 48 anos, vítima de enfarte. Você tem preocupação com a saúde por causa disso?
Sim, eu me cuido, mas não sou neurótica. São gerações diferentes, né? Minha mãe fumava muito – todos os atores fumavam e bebiam muito naquela época. Hoje a minha diversão é sair pedalando por Ipanema, onde moro. As gravações de novela também exigem muito mais disciplina do que antes. É preciso chegar cedo ao Projac, encarar o trânsito até aqui, ter uma rotina quase operária. Sabe, tenho pensado muito na minha mãe. Estou com 47 anos, no ano que vem estarei com a idade em que ela morreu. A lembrança que eu tinha era sempre de minha mãe como uma figura mais velha. Hoje, não. Fico vendo as novelas que ela fez e me sentindo um pouco ali. É muito louco isso, né?

Você nasceu em Porto Alegre e mora no Rio há mais de 25 anos. Está mais para gaúcha ou para carioca?
Olha, minha família é toda do Rio Grande do Sul. Meus parentes e amigos, todo mundo. E é para lá que vou quando quero descansar. Quer uma prova de que eu continuo tão gaúcha quanto antes? Não troco o meu time, o Internacional, por nada desse mundo.

Dizem que você é torcedora fanática, que inclusive fez de tudo para ver a final do Mundial Interclubes (entre Inter e Barcelona, em dezembro de 2006).
É, fiquei muito chateada por não poder ir. Eu acompanho mesmo. Quando o Inter joga aqui no Rio, não deixo de ir. E o mais importante é que meu filho Miguel, de 10 anos, não é flamenguista nem vascaíno. É colorado. Eu o mataria se não fosse (risos).

Apesar de manter as tradições gaúchas, você viveu intensamente o Rio dos anos 80, as festas no Morro da Urca, a efervescência do Baixo Leblon.
Sim, muito! Cheguei ao Rio no começo dos anos 80. Fui morar no Morro do Vidigal, sozinha. Quando conto isso para amigos, eles se assustam. Mas o Vidigal era um morro maravilhoso, não tinha tráfico, violência. Eu podia dormir com a porta aberta, ou chegar a pé sozinha de madrugada, sem perigo nenhum. Era outro Rio, né? A cidade estava vivendo seus últimos tempos de paz.

E qual era a sua turma?
Eu andava com o pessoal mais legal do Rio de Janeiro, que era a turma do Cazuza, da Bebel Gilberto. Era um pessoal muito despirocado, maluco, mas muito alegre, engraçado, do bem.

Mas que se envolveu pesado com drogas, não?
Não era tão pesado assim, não. A relação com as drogas era outra, não tinha a mesma conotação que tem hoje.

Essa turma do Cazuza, da qual você fazia parte, foi representada no filme Cazuza – O Tempo Não Para. Você viu o filme?

Sim, vi. É um filme bonitinho, bem feito… O Daniel (de Oliveira, ator que faz o papel de Cazuza) está sensacional.

Você parece ter gostado mais da interpretação do Daniel do que do filme…
Olha, o filme é legal, mas eu não me senti ali. A gente era mais legal que aquilo. Ficou meio datado, careta, não sei. Acho que todo filme corre esse risco, de estereotipar um pouco os personagens. Acho que é praticamente impossível reproduzir no cinema o quanto a gente era livre e feliz.

O Rio do Cazuza virou o Rio do Comando Vermelho, do Bope, das milícias. Como você sobreviveu a essa transformação?
Pois é, não sei como sobrevivi nem como a cidade sobreviveu a tanta corrupção, a tanta incompetência administrativa. Os governos César Maia, Garotinho, Rosinha acabaram com o Rio de Janeiro. Desde que moro aqui, o Rio não teve um só governo decente, que quebrasse paradigmas, que tivesse um plano alternativo para a cidade, para a violência. O Brizola foi péssimo. Não teve o menor planejamento urbano. Foi no governo dele que a violência começou a tomar conta da cidade.

Os dois filmes da série Tropa de Elite foram acusados de fascistas por parte da crítica, por alimentar a violência policial e condenar o usuário de drogas como responsável pelo aumento da criminalidade. Qual a sua opinião sobre tudo isso?
É uma questão muito complexa, que não dá para ser respondida com uma frase. Mas é bom que o assunto seja debatido pela sociedade. Tropa de Elite 2 está batendo recordes de bilheteria. O Miguel, meu filho, quer ver no cinema. Ele tem só 10 anos. Não sei como vai ser (risos).

Você está otimista com a retomada do cinema brasileiro?
Que retomada? Tropa de Elite 2 é uma exceção. O cinema brasileiro continua distante de ser uma indústria. A gente se salva como pode. Há muitos filmes sendo feitos, muito por causa das facilidades que a tecnologia propiciou, mas eles não chegam ao grande público. O que adianta? Quando eu falo indústria, não falo em produzir filmes americanizados, para o grande público. Falo de uma indústria capaz de fazer filmes para todos os gostos, para todos os públicos. E isso é um pouco o reflexo de um país que não investe em cultura e educação. Como ter uma indústria que faça filmes mais experimentais, mais pensantes, se o público brasileiro busca um só modelo, o modelo de cinemão americano?

Como foi a experiência de ser proprietária, por dez anos, de um cineclube em São Paulo (o Cine Arte Lilian Lemmertz funcionou no shopping Pompeia e foi fechado este ano por falta de recursos)?
No começo foi ótimo. O pai do Alexandre (Borges, ator e marido de Julia) soube de um cinema na Lapa que estava fechando as portas. Resolvemos reformá-lo e fazer daquele espaço um ponto de resistência do cinema de arte. Homenageamos a minha mãe, que morou muito tempo em São Paulo, e começamos a luta. A gente tinha o apoio financeiro da distribuidora Polifilmes, mas mesmo assim era difícil tocar o cinema, por várias razões. Eu e o Alê moramos no Rio e era complicado acompanhar tudo de perto. Além do mais, o público do shopping queria sempre uma programação mais “comercial”, e a gente tinha dificuldade de lotar os 85 lugares. Na última sessão do último dia de funcionamento do cinema, só 11 pessoas foram ver Ilha do Medo, do Martin Scorsese. E olha que era um filme protagonizado pelo Leonardo DiCaprio (risos).

Em algum momento vocês pediram ajuda ao Ministério da Cultura?
Sim, a gente mandou um edital, fez tudo, lutou. Mas ninguém respondeu. Só depois, quando fechamos e a imprensa fez um certo barulho, alguém do Ministério da Cultura resolveu nos procurar. Acho que o cinema estava no lugar errado e na hora errada. Somos atores, e não empresários. Se o pessoal do Belas Artes, uma das salas mais tradicionais de São Paulo, tem dificuldade de manter o cinema em pé, imagina a gente. Fiquei triste também por ser uma homenagem à minha mãe. Durou tão pouco.

Você já recusou papel importante em novelas em horários nobres da TV Globo para fazer teatro e cinema. Nem todos os atores do país resistem à tentação do sucesso fácil…
Eu não tenho o menor constrangimento em fazer novela. É importante dialogar com o grande público. Mas sempre fui idealista. Acho que, por ser filha e neta de atores, eu tenho essa coisa da interpretação muito forte em mim. Sei que preciso evoluir intelectualmente, procurar novos caminhos. E a novela, mesmo que seja um veículo poderoso de comunicação, tende sempre a repetir as mesmas fórmulas, não por culpa dos autores e diretores, mas por causa do público, que sempre busca as mesmas histórias. No teatro e no cinema eu posso ousar, buscar caminhos mais complexos, sem correr o risco de não ser entendida. Por isso, é importante, para mim, dar uma parada a cada dois anos. Mas gosto de fazer novela e quero continuar fazendo.

Atores mais experientes se queixam da reformulação no elenco das atuais novelas, que dá cada vez mais espaço para os “bonitinhos”, muitos vindos de reality shows, e não das escolas de teatro.
Primeiro, não acho que é preciso necessariamente passar por uma escola de teatro para ser ator. Tem gente que nunca subiu num palco e logo de cara demonstra que tem talento. Já vi vários casos assim. Mas é claro que é preciso preparar melhor os novos atores. Quem sofre com tudo isso não são os atores mais experientes, que sabem tirar tudo de letra, e sim os próprios novatos, que ficam perdidos e inseguros. E quem não tem talento não sobrevive. É uma questão de tempo.

Mas não há uma ditadura da beleza tomando conta da televisão?
Sim, há. Mas é um sinal dos novos tempos. Eu estava revendo cenas da minha mãe em Baila Comigo (1981). Minha mãe foi a primeira Helena do Manoel Carlos. Era uma estética completamente diferente. Não havia o cuidado que há hoje com o cenário, com o figurino, o enquadramento e, naturalmente, com a aparência dos atores.

E o que você faz para se enquadrar aos novos tempos?
Eu tenho uma preocupação com a estética até a página 2. Eu malho, me cuido, mas sou radicalmente contra o botox ou qualquer tipo de plástica. Acho legal envelhecer. E não tem essa de ficar com medo de perder o emprego. A televisão terá sempre espaço para os imperfeitos.

Você mora em Ipanema, o bairro que concentra o maior número de paparazzi por metro quadrado do Rio de Janeiro. Como você vê esse culto a celebridades e a falta de privacidade?
Eu não sofro muito com isso. Se for preciso ir de chinelo e bermuda fazer compras no supermercado eu vou, numa boa. Não tenho o menor medo de ser fotografada assim. O Alê também é um cara que se relaciona muito bem com os fotógrafos, está sempre sorridente, acha até graça. A gente é um casal simples, tão comum que os fotógrafos nunca esperam nada de diferente. Eles querem mesmo é ver alguma discussão na rua, alguém batendo boca com eles, fazendo algo que dê “notícia”. Se bem que uma vez eu quase virei capa de revista de fofoca (risos). Decidi ir até a Gávea de bicicleta, para renovar minha carta de motorista. Quando fui cruzar a Bartolomeu Mitre, uma rua movimentada do Leblon, não percebi que estavam recapeando o asfalto. Estava tudo muito escorregadio. Quando percebi, já tinha voado pelo menos um cinco metros e me esborrachado no chão, em frente à faixa de pedestres.

Foi pega em flagrante por algum paparazzo?
Pois é, essa foi minha primeira preocupação. Eu nem quis saber se tinha quebrado uma costela ou um dente. Fui até o quiosque mais perto e perguntei para o menino que presenciara a minha queda se ele tinha visto algum fotógrafo. Só fiquei aliviada quando perguntei para mais duas pessoas. Ninguém tinha visto paparazzo nenhum. Um milagre. Só em casa, quando coloquei a mão na cabeça, percebi que estava sangrando. Eu podia ter me quebrado toda, só não queria virar matéria de revista de fofoca (risos).