Gana de brasileiros. E vice-versa

Além da paixão pelo futebol e do passado marcado pela escravidão, Brasil e Gana resistiram igualmente ao tempo. Eles estão na comunidade Tabom, fundada por escravos da Bahia que regressaram à terra natal

(Foto: Carlos Fonseca)

“Meus antepassados construíram Gana a partir do que aprenderam no Brasil. Acho que eles foram grandes empreendedores porque tiveram a chance de recomeçar, já que uma parte da vida havia se perdido. Eu já gostava da terra brasileira mesmo antes de saber que estou ligado a ela”, conta o estudante Theodore Tello Nelson, 20 anos, um dos 900 afro-brasileiros que vivem em Acra, capital de Gana. A família Nelson compõe uma das sete primeiras de escravos libertados que deixaram o estado da Bahia e se instalaram na capital ganense, em 1836. Até hoje é comum encontrar famílias com sobrenomes como Vialla (Vieira), Zuzer (Souza), Manuel, Gomez, Peregrino, Costa e Ribeiro. Todas fazem parte da chamada comunidade Tabom.

“Eu sempre torcia para o Brasil quando passava jogos de futebol na televisão. Quando soube que também sou brasileiro passei a me interessar ainda mais”, diz Theodore. A mãe dele, Catherine Oforiwa Nelson, conta que quando o Brasil perde um jogo todo mundo fica mal-humorado: “Só eu que lembro das refeições quando o Brasil perde. Acho que isso acontece porque aqui em casa nos consideramos brasileiros, inclusive eu, que não sou da comunidade Tabom, mas me sinto parte desde que casei com alguém da família Nelson”, destaca.

Catherine relembra que há 24 anos, quando conheceu seu marido em Acra, sua família era contra o casamento por ele não ser de sua cidade, Ada. “O meu pai mandou alguém se informar sobre a vida do meu pretendente. Quando soube que ele era dos Tabom e não havia nenhuma lembrança ruim dessa comunidade, permitiu o casamento. Para mim foi muito bom, porque alguns ganenses não dão valor à mulher e aos filhos. Já meu marido é responsável, sempre se preocupa e me ajuda em tudo. Que mulher não gosta disso?”, questiona.

Mãe de três filhos, Catherine conta com orgulho que o mais novo, Theodore, pretende fazer um estágio no Brasil. Ele provavelmente será o primeiro da família Nelson a conhecer o país: “Há várias empresas internacionais em Gana, mas nada brasileiro que possamos experimentar, como a culinária ou produtos. Tudo vem dos Estados Unidos, da China ou da Inglaterra. É preciso que alguém vá para lá e traga novidades.”

Theodore vem tendo aulas de português quando não está envolvido com o curso de Geografia na Universidade de Legon ou com a entidade pela qual pretende fazer o intercâmbio. “Eu acredito que morar um tempo no Brasil será um grande desafio por causa da língua e, ao mesmo tempo, fácil porque as pessoas devem ser amigáveis e os lugares, muito bonitos. Essa será uma grande oportunidade para ajudar a sociedade brasileira, através do meu futuro trabalho voluntário. Eu também gostaria de conhecer a floresta amazônica e, mais tarde, ter uma empresa de turismo para levar as pessoas à América do Sul e à Ásia”, revela.

República islâmica

O objetivo de conhecer outros países e ter uma melhor oportunidade de trabalho faz com que outros jovens em Gana frequentem as aulas de português, como o auxiliar de produção Ahmed Nii Ayi Ankrah, 24 anos, que adora músicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil. “Como sou Tabom, resolvi me aproximar mais das minhas origens, pela língua portuguesa. Vejo nos livros que temos aqui os mesmos nomes próprios que são usados no Brasil. E também praias lindas e limpas. Além de adquirir mais conhecimento, estou tendo uma possibilidade de crescer. Se não puder ir ao Brasil, porque o acesso é difícil, poderei trabalhar para empresas brasileiras na África”, planeja Ahmed.

As aulas são uma iniciativa da embaixada brasileira, no Instituto de Línguas de Gana e na Brazil House (ou Casa Brasil), onde são gratuitas. No total, são 20 alunos. O local abrigou, no passado, a família de ex-escravos Nassu, uma das primeiras que chegaram a Acra. Segundo o embaixador Luís Fernando Serra, a antiga casa desses Tabom foi reinaugurada em 2007, depois de passar por uma reforma. Hoje tem um arquivo histórico sobre as relações entre esses dois países, salas de aulas e biblioteca. Apesar das mudanças, a arquitetura na Brazil House, permanece a mesma, destacando-se como uma das habilidades dos Tabom desde sua chegada a Gana – ocorrida por motivos ainda controversos.

Segundo o atual chefe da comunidade, Nii Azumah V, não existem relatos escritos sobre a razão que impulsionou ex-escravos a voltar da Bahia para o Oeste Africano. É possível que tenham comprado a liberdade e imediatamente decidido recomeçar a vida na mesma terra de onde foram arrancados. Ou, ainda, que tenham sido deportados depois da Revolta dos Malês, em 1835, quando já eram trabalhadores libertos. Malê, do dialeto Iorubá, significa muçulmano. O movimento, deflagrado em Salvador e rapidamente reprimido, reagia à imposição do catolicismo, ao tratamento dado aos negros, mesmo os já libertos, e defendia uma república islâmica.

“O que se sabe é que em Gana foram tão bem recebidos pelo antigo povo Ga, formado por pescadores do litoral de Acra, que resolveram ficar. Apesar das dificuldades de comunicação, por falarem apenas a língua portuguesa, logo foram conquistando os novos compatriotas, trabalhando como carpinteiros, alfaiates, agricultores, pedreiros e ourives – ocupações que eram novidade. E receberam lugares privilegiados da cidade para morar e para abrir o próprio negócio. A Brazil House, por exemplo, fica em frente ao antigo porto de Acra”, diz o chefe.

Tá bom?

Nii Azumah V conta que a comunidade se chama Tabom porque, como os afro-brasileiros só sabiam falar em português, usavam muito a expressão “Tá bom?” para se cumprimentar e ao se referir à qualidade dos produtos com os quais trabalhavam. “Ignorando o significado desse termo, a comunidade local, que falava a língua Ga, logo passou a chamá-los de Tabon People”, relata. Chefiando a comunidade há dez anos, ele afirma que, mais do que reviver a história e celebrar a conquista dos antepassados, é importante observar as contribuições da comunidade para o desenvolvimento de Gana.

“As primeiras casas de dois pisos, de estrutura forte, construídas em Acra foram obras dos moradores de Tabom. Além da Brazil House, onde recebi o presidente Lula na sua segunda visita a Gana, em 2008, tivemos a primeira Scissors House (casa de tesoura, alfaiataria), inaugurada em 1854 pelo terceiro chefe Tabom, George Aruna Nelson. George fez cursos na Inglaterra e na Alemanha, patrocinados pelo primeiro presidente de Gana, Kuwame Nkrumah, foi o alfaiate-mestre do Exército ganense e depois ensinou um dos mais famosos de Gana, Dan Morton, a exercer o mesmo ofício”, relata o chefe, enquanto olha a fotografia em que cumprimenta o presidente do Brasil, durante sua visita em 2005, que mandou enquadrar.

“Para mim foi um orgulho conhecer o primeiro presidente brasileiro que veio para Gana e, claro, contar sobre a nossa comunidade afro-brasileira, além dos nossos projetos, como implantar uma fábrica de algodão, dando mais oportunidades de trabalho aos jovens”, vibra. O empreendedorismo é uma marca dos Tabom e, em muitas oportunidades, passada de geração em geração. É o caso do ateliê de Dan Morton, hoje administrado pelos seus filhos. “Meu avô veio do Brasil como alfaiate e, quando eu tinha 11 anos, minha avó teve um sonho: que eu seria um grande profissional desse ramo. E não é que ela estava certa?”, emociona-se Morton.

Ele conta que, como outros famosos costureiros da época, também foi para a Inglaterra, em 1952. Depois de três anos em Londres, onde fez cursos de alta-costura, resolveu abrir o próprio negócio: “É muito importante viajar e ver as coisas com outros olhos. Se eu não tivesse ido para a Europa, até hoje teria um pequeno ateliê. Sou muito grato à insistência da minha avó. Eu até conheci o Brasil. Durante a Copa do Mundo de 2002, estava lá em São Paulo”, lembra.

Notável diferença

O alfaiate, hoje com 87 anos, comenta que nunca viu tanta gente nas ruas como na capital paulista, além da notável diferença social entre brancos e negros. “Ninguém me disse nada, eu evitava falar porque eles iam perceber que meu sotaque era de estrangeiro, mas era fácil perceber a diferença entre pessoas brancas e negras. Apesar disso, gostei das paisagens, de conhecer grandes mercados e das praias”, destaca.

No bairro Asylum Down, uma das regiões da cidade doada aos Tabom pelo povo Ga, o ateliê Dan Morton funciona no mesmo grande prédio onde ele tem uma lavanderia. Três dos seus filhos administram o negócio, enquanto os outros cinco estão em diferentes áreas. Uma filha trabalha nos Estados Unidos. “Joyce é enfermeira e graduada em três cursos. É a que está mais longe da família, mas não deixo de dizer a ela também o quanto temos de lutar e trabalhar. Sinto muito orgulho dos meus ancestrais, que foram escravos e hoje se tornaram alguém na sociedade, muitos deles em Gana e outros fazendo parte do Brasil, como o Pelé, que já veio para Acra”, ressalta Morton.

Ele também sente orgulho da Copa do Mundo na África do Sul, em que o time de Gana foi o que melhor representou todo o continente. Os ganenses chegaram às quartas de final diante do Uruguai. O jogo estava 1 x 1 e Gana teve duas chances de desempatar para avançar à semifinal. No último minuto da prorrogação, o uruguaio Suárez impediu com a mão o gol que daria a vitória aos africanos; acabou expulso, mas, na cobrança da penalidade, Gyan, de Gana, mandou a bola no travessão. A decisão foi para os pênaltis e os sul-americanos venceram. Apesar da eliminação, a paixão dos ganenses pelo esporte só aumentou. É fácil encontrar camisetas da seleção nacional expostas nas ruas e adesivos da bandeira nos carros.

Antes do futebol, a febre foi o boxe, tendo como ícone Azumah Professor Nelson. Tio de Theodore, aos 9 anos o lutador já desafiava outros meninos e insistia para entrar num ringue: “Era o que eu queria. Hoje, um dos meus seis filhos está praticando a luta. Eu mantenho a academia para incentivar esses jovens a ter um objetivo na vida”. Assim como Professor, que já foi campeão de boxe africano, outros afro-brasileiros fizeram e seguem fazendo suas histórias na antiga Costa de Ouro, como era chamado o país. Muito além de um triste passado de escravidão, eles superam as más lembranças, olham adiante e sonham com uma vida nova. “Se eu conheço o Brasil? Não, mas gostaria de ir lá e ver como as coisas estão. Conhecer meus irmãos brasileiros e comer um waakye (feijão com arroz). Afinal, somos todos filhos do mesmo Deus, podemos fazer isso juntos.” 

De volta para a casa
Por Carlos Fonseca

Bumba meu boi Famílias de origem brasileira dançam a “burrinha”, em Porto Novo, Benin

Durante todo o século 19, em especial entre 1830 e 1890, grande contingente de escravos libertos brasileiros – cerca de 8 mil, segundo as fontes mais confiáveis – tomou o rumo do continente africano, em um movimento que se convencionou chamar de “fenômeno dos retornados”. Essas pessoas construíram uma comunidade homogênea, que hoje se espalha pelos países que constituem a antiga “Costa dos Escravos”: Nigéria, Benin, Togo e Gana. Sobrenomes como Almeida, Pio, Santos, Rocha, da Silva, Gomes, Souza, Martins, Assunção, Gonçalo, Monteiro, Santana, Pereira, Domingos e Gonçalves são comuns ainda hoje nas cidades de Uidá, Cotonou, Acra, Lagos e Porto Novo. Africanos de origem brasileira, eles descendem dos escravos que alcançaram a liberdade e voltaram a seu continente, fechando assim o ciclo de sua diáspora.
Levaram consigo marcas culturais brasileiras que ainda hoje se podem ver na arquitetura das casas, igrejas e mesquitas; nos hábitos do comer e do vestir; bem como em um vocabulário português que se incorporou ao dia a dia de idiomas como o Mina, o Fon e o Iorubá. Em Lagos, Uidá ou Porto Novo, essa comunidade, que se faz chamar “agudá”, “brésilienne” ou “Brazilian”, cumprimenta-se em português, celebra a festa do Nosso Senhor do Bonfim, come feijoada, cocada, pirão, moqueca e arroz doce e, nas ocasiões festivas, dança a “burrinha”, folguedo popular parecido com bumba meu boi. Em Lagos, maior cidade da Nigéria, existe, inclusive, um bairro inteiro chamado Brazilian Quarter (quarteirão brasileiro).
Esses brasileiros de além-mar demonstram possuir, ainda hoje, grande afinidade com o Brasil. Aqui, no entanto, seu fenômeno é pouco ou nada conhecido, inclusive entre a comunidade de origem africana. Com a distância e a escassez de contatos, essa comunidade vai perdendo a memória e os laços que a une ao Brasil.