O juramento

Era um general de quatro estrelas; pela primeira vez, um general de Exército estava disposto a ouvir a sua história. O encontro fora articulado por um dirigente da comunidade judaica […]

Era um general de quatro estrelas; pela primeira vez, um general de Exército estava disposto a ouvir a sua história. O encontro fora articulado por um dirigente da comunidade judaica do Rio de Janeiro, pessoa importante, no entanto discreta, quase invisível, provavelmente o homem dos tratos espinhosos junto às autoridades, dos acordos inconfessáveis, das emergências. Tradição desse povo escaldado por inquisições milenares.

Seja como for, graças a ele um general estava disposto a ouvir e, quiçá, a dar alguma informação. Não haviam prometido nada, apenas que ele ouviria. A oportunidade não deveria ser desperdiçada, advertiram. No velho judeu reavivaram-se esperanças, embora magras, depois de tanto engodo e do tempo já tão longo do desaparecimento da filha. Ou era autoengano? Tinha esperanças, sim. Afinal, o general não o receberia se não tivesse nada a dizer, ou para dizer o que um pai não pudesse ouvir.

Combalido, mas determinado, apoiando-se na parede, o velho comerciante judeu foi vencendo, um a um, os degraus de mármore branco talhados em curvas suaves como pétalas, que conduziam ao andar superior do Clube Militar onde o esperava o general de quatro estrelas. Seu acompanhante aguardou junto ao umbral que se elevava a partir do quinto degrau. Fora combinado receber a sós, e uma só pessoa; se era o pai, que fosse apenas o pai.

Era um palácio, não há dúvidas, esse Clube Militar. Imponente em suas linhas neoclássicas. Lembrou-se subitamente o velho judeu de outra escadaria em outros tempos, em Varsóvia, igualmente de mármore e também no estilo neoclássico. Degraus que ele galgara aos saltos, ainda jovem e valente, para indagar o paradeiro de sua irmã Guita, presa num comício sionista. Surpreendeu-se, apreensivo, pela emergência da lembrança, que julgava soterrada nos escaninhos da memória.

O velho comerciante judeu não era estranho a exércitos nem neófito em política. Tinha 12 anos, a idade da observação arguta, quando sua cidade foi tomada primeiro pelo Exército alemão, depois pelo russo. Mais tarde, já crescido, ele próprio seria arrastado pelas ruas, acusado de subversão pela polícia polaca. Por isso, emigrou às pressas, deixando mulher e filho, que só se juntariam a ele no Brasil passados três anos. A polícia polaca o soltou na condição de emigrar, além, é claro, da propina coletada pelos amigos de militância. Guita, cinco anos mais velha, não tivera a mesma sorte. Morreu tuberculosa no frio da prisão.

O velho judeu prosseguia em sua lenta escalada rumo ao encontro com o general de quatro estrelas. A imagem repentina de Guita puxou a do delegado de Varsóvia que jurara que sua irmã nunca fora presa e que ante sua insistência o expulsara da sala e ainda gritara do topo da escadaria que ela teria fugido para Berlim, isso sim, com algum amante. Esse episódio o velho judeu nunca revelou a ninguém, ele que era também escritor e jornalista, um apreciado contador de histórias, que publicava em jornais de língua iídiche de Buenos Aires e de Nova York. Tinha faro de escritor para o caráter das pessoas. Como será esse general de quatro estrelas?

…Passaram-se 15 minutos. O velho judeu reaparece no topo da escadaria; desce devagar, seu rosto por natureza róseo está branco como o mármore leitoso em que pisa. Por fim chega ao final da escada, mas não fala; joga os dois braços para cima e murmura apenas. “O general jurou pela sua honra que ela não foi presa.” Baixou as mãos e as levou ao rosto, “jurou pela sua honra”, repetiu, já então tomado por choro convulso, e pela certeza de que sua filha estava morta.