Sob fogo cruzado

Para muitos estudantes de baixa renda, o Enem é um meio justo de avaliação e uma ponte para a universidade. Avançado e democrático, é alvo de ataques repletos de interesses políticos e econômicos ameaçados

Mineiro de Alto Jequitibá, Wesley Henrique Godoy, 21 anos, cursou o ensino fundamental na rede estadual e o médio em colégio de aplicação da Universidade Federal de Viçosa. Nem seu pai, funcionário público municipal, nem sua mãe, auxiliar de enfermagem, chegaram à universidade. Thabata Pinho Müller, 18 anos, de Americana (SP), é filha de um gerente de vendas e de uma dona de casa, que também não cursaram faculdade. Até a 8ª série, ela estudou em escola particular de bairro porque seus pais queriam a garantia de aulas todos os dias. No colegial, foi para uma escola técnica mantida pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). João Laio Paz de Melo, 20 anos, fez o ensino básico na rede particular de Cubatão (SP), com bolsa integral conseguida por seus pais, um professor de matemática da rede estadual e uma teóloga.

Estudantes do campus Santo André da Universidade Federal do ABC (UFABC), na Grande São Paulo, eles cursam o primeiro ano do bacharelado em Ciências e Tecnologia. A partir do terceiro, João cursará disciplinas que o formarão engenheiro de instrumentação, automação e robótica. Wesley quer ser cientista da computação e aliar conhecimentos da área à neurociência. E Thabata seguirá pela engenharia de gestão, algo que vai além da engenharia de produção. Longe de casa, dividem espaço nas repúblicas com colegas de Rondônia, Acre, Pernambuco, Rio de Janeiro, Bahia, Goiás. É gente de todos os lugares, com a cara do Brasil, dizem. João, Wesley, Thabata e os mais de 4 mil alunos hoje matriculados na UFABC têm as notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2009 como porta de entrada à tão sonhada – e disputada – universidade pública e gratuita.

Criada em 2005, a instituição, que tem 100% de seus professores com título de doutorado, usa o Enem como processo seletivo e destina metade de suas vagas a estudantes que cursaram escolas públicas. É o símbolo da universidade pública no melhor sentido da palavra e do projeto de educação superior que está na mira do estardalhaço desproporcional e parcial de alguns setores da imprensa por causa das falhas do teste realizado nos dias 6 e 7 de novembro. Erros de impressão em menos de 2% dos cadernos de questões de cor amarela ganharam as manchetes dos jornais, revistas, programas de TV e internet. Até o Senado convocou o ministro Fernando Haddad para prestar esclarecimentos.

“Se não fosse o Enem, as vagas da Federal do ABC seriam disputadas por alunos de classes mais favorecidas, que além de terem estudado em escolas privadas podem pagar até R$ 2 mil em cursinhos particulares para aprender a fazer as provas que assustam tantos alunos da escola pública”, diz o educador popular Sérgio José Custódio, presidente do Movimento dos Sem Universidade (MSU). “Não é de estranhar que esses cursinhos estivessem por trás das manifestações de estudantes contra o Enem realizadas no Rio de Janeiro, em Pernambuco e no Ceará. Porque movimento social sério, que luta pela democratização do acesso à educação superior de qualidade, apoia o exame.”

Ele conta que a entidade entrou com representação na Advocacia Geral da União para que todo o exame não fosse cancelado em função de erros isolados. A confusão, que tinha começado no domingo, não o surpreendeu. “Já desconfiávamos do que viria por aí. Em 2009, houve um movimento mafioso contra o Enem que até agora não foi esclarecido. Digo mafioso porque nenhum trabalhador de chão de fábrica de gráfica seria capaz de bolar um esquema de venda da prova”, dispara.

Ah, os negócios

Para Custódio, o Enem é significativo para a cidadania brasileira também porque garante o acesso ao Programa Universidade para Todos (ProUni), que oferece cerca de 150 mil vagas nas faculdades particulares. O programa, aliás, é contestado na Justiça pelos democratas e setores que têm o ensino privado como negócio. Em 2004, quando o ProUni foi criado pelo governo Lula, o DEM entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade. Em 2008, já no Supremo Tribunal Federal, o relator, ministro Carlos Ayres Britto, apresentou parecer contrário à ação. O ministro Joaquim Barbosa pediu vista do processo, o que sustou o julgamento, ainda sem data para prosseguir.
Outros educadores e analistas da área concordam com Custódio quanto aos interesses ameaçados por um teste que deixou para trás seu caráter basicamente classificatório – que beneficiava instituições privadas que escolhiam e preparavam os melhores alunos com finalidade de propaganda –e deve se tornar ferramenta nacional e democrática para o ingresso no ensino superior.

Quando foi criado, em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, o exame apenas avaliava o desempenho do estudante ao fim do ensino médio ou mesmo daqueles que o concluíram em anos anteriores. Com a criação do ProUni, em 2004, as notas passaram a contar para a concessão de bolsas parciais ou integrais, o que aumentou o interesse pela avaliação. Atualmente cerca de 500 universidades já usam o resultado como critério de seleção, seja complementando ou substituindo o vestibular. Em 2009, seu formato foi reformulado. Passou de 63 para 200 questões de múltipla escolha, com a manutenção da redação. A aplicação passou a ser feita em dois dias seguidos, e 59 universidades federais a adotaram em substituição ao sistema tradicional.

“Isso tudo explica o barulho por falhas em 21 mil provas num universo de 3,3 milhões”, afirma frei David Raimundo Santos, presidente da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro). O franciscano, que criou a rede comunitária de cursinhos pré-vestibulares no começo dos anos 1990, num núcleo de estudos em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, diz que são vários os interessados em desacreditar a prova, mas destaca a manutenção do privilégio dos ricos garantida pelo vestibular. A decoreba consolidada nas aulas dos cursinhos particulares e o alto poder aquisitivo para pagar taxas de inscrições e viagens para os exames em outros estados estão fora do alcance da maioria dos brasileiros. Embora não corrija a qualidade da educação básica pública, o Enem, segundo ele, reduz a distância entre as chances de todos por ser uma prova única, em âmbito nacional, de custo reduzido para o estudante e classificatória para universidades localizadas em diversas regiões.

Concorda com frei David o educador Márcio da Costa, do grupo de estudos das políticas educacionais da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O vestibular é uma barreira social também pela exigência de maior apuração do discurso escrito, o que está mais presente no aluno com melhor formação. Quando o aluno da escola pública consegue rompê-la, tem potencial para ser, no mínimo, igual aos demais. Isso porque há um nivelamento na faculdade, quando as disciplinas retomam muitos conteúdos do ensino médio.”

Como ele lembra, antes de adotar o Enem a instituição onde trabalha e muitas outras faziam um vestibular completamente discursivo. “Como corrigir 400 mil provas nessa modalidade? Como garantir uma correção justa e transparente? Ninguém até hoje me respondeu isso”, assinala. “Mesmo com as falhas, o Enem está num patamar superior ao que tínhamos antes. E temos de compará-lo com o que tínhamos, que não era bom, e não com algo abstrato que não temos”, afirma Costa.

“Apesar da sua importância para o nosso ingresso na universidade, a prova não causa todo aquele estresse do vestibular. As questões exigem raciocínio sobre tudo aquilo que aprendemos no colegial”, ressalta o estudante Wesley. “E os temas da redação são muito mais fáceis”, completa Thabata.

Interesses

A economia que gira em torno da realização dos concursos vestibulares é destacada pelo sociólogo Rudá Ricci, professor da pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais. Ele diz que principalmente as faculdades isoladas, com 300 a 600 alunos, espalhadas pelo interior do país, têm nessas provas um reforço de caixa. “Entre outubro e março, suas contas são pagas apenas com as taxas de inscrição”, diz. Nas grandes universidades, como muitas públicas de São Paulo, segundo ele, são os professores que engordam a conta bancária. Chegam a receber das comissões de vestibulares R$ 5 mil para elaborar as provas e os gabaritos. E, se corrigirem a prova, podem ganhar R$ 7 mil num mês. Isso sem contar que muitos deles são convidados a dar palestras. “É um bônus que causa grande disputa na universidade.”

Os donos de cursinhos são outros grandes interessados, segundo Ricci. Os maiores, especializados em preparar candidatos para se dar bem nos grandes concursos, como o da Fuvest, por exemplo, ganham com as mensalidades, a publicidade pelo sucesso dos alunos que preparam e também com serviços gráficos e editoriais. Esse último segmento, aliás, sustenta muitos estabelecimentos que editam e imprimem apostilas, fôlderes, livros, banners e tantos outros materiais usados pelo aluno, como divulgação das empresas envolvidas.

Mestre em Gestão de Políticas Públicas, o educador e deputado federal Carlos Abicalil (PT-MT) diz que os ataques se devem também à disputa comercial pela impressão das provas do exame.

“Temos no país duas gráficas que atendem às exigências do processo licitatório, uma delas ligada a um grupo de comunicação”, conta Abicalil, referindo-se à Plural, pertencente à empresa que publica o jornal Folha de S.Paulo – que em 2009 imprimiu as provas. E destaca outros pontos no mínimo suspeitos desse episódio, como a decisão da juíza cearense de proibir a divulgação do gabarito, um direito de mais de 3 milhões de estudantes. “Há uma sucessão de fatos que realmente têm de ser investigados, mas a falha é pequena frente à magnitude desse exame. Há necessidade de fortalecê-lo, e não enfraquecê-lo.”

“É preciso que o governo seja mais rigoroso com a realização do exame e terceirize o mínimo possível”, afirma o estudante João Laio, da UFABC. Para especialistas, sem que muitos percebam, o Enem está reformando também o currículo do ensino médio. Mas nem por isso é perfeito. Para melhorar, deve incluir disciplinas ligadas à formação para a cidadania e ter todas as suas etapas submetidas ao controle social.