O tigre virou porquinho

Os irlandeses caíram na farra capitalista, tomaram um porre neoliberal e agora amargam uma das ressacas mais brabas da Europa

Orgulho ferido Depois de uma década de sonho neoliberal, os irlandeses acordaram……de mau humor, xingando bancos e políticos e gritando o popular bordão: “Fora FMI”. Foto: Adriana Cardoso

Alguns jornais europeus criaram um neologismo para referir-se à Irlanda: “Direland”, uma junção das palavras dire (muito sério ou muito ruim) e Ireland (Irlanda). Sim, os últimos dois anos não têm sido fáceis para esse pequeno país de 4,5 milhões de habitantes, que viveu seu auge econômico de 1995 a 2007, quando ficou conhecido no mundo como “Tigre Celta”, numa alusão aos países asiáticos cujas economias bombaram nos anos 1990. Hoje, porém, junto com Portugal, Grécia e Espanha, a Irlanda integra o “Pigs” (porcos, em inglês), grupo de países da União Europeia (UE) cujas economias estão em grave crise e põem em xeque o futuro do bloco e do euro.

A crise de 2008 e o colapso dos setores imobiliário e bancário irlandeses, somados aos casos de pedofilia cometidos por padres e bispos católicos por anos a fio, mas só recentemente divulgados, puseram na berlinda valores morais e capitais que pautaram o país durante seu auge. Pela primeira vez, o governo irlandês precisou pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional e à UE, que colocaram à disposição € 85 bilhões para ajudar a cobrir o rombo. A ajuda terá preço: juro de 5,8% ao ano e uma cartilha de corte de custos e reformas no setor bancário.

Bravo por natureza, o povo irlandês, orgulhoso de sua nação construída debaixo de muito sangue e violência durante os séculos de colonização inglesa, está descontente e desconfiado. Sabe que terá de pagar a conta. O frio e a neve pesada, incomuns para um mês de novembro, não impediram que mais de 50 mil irlandeses fossem às ruas protestar, no dia 27 de novembro passado, contra o pacote.

Uma multidão voltou às ruas em 7 de dezembro, bradando palavras de ordem, enquanto o Parlamento aprovava o orçamento de 2011, com corte de gastos de € 6 bilhões. O pacote afeta programas sociais, salários de novos servidores públicos, pensões e amplia as faixas salariais com descontos de imposto de renda na fonte, que vão de 20% a 40%.

Nem o alto escalão do Estado escapou. O primeiro-ministro, Brian Cowen, terá redução de € 14 mil (5%) em seus rendimentos anuais. O futebol também pagará seu preço. A federação irlandesa de futebol propôs e o técnico da equipe, o italiano Giovanni Trapattoni, aceitou reduzir em 5% seu salário que, especula-se, está na casa de R$ 1,8 milhão ao ano.

Capitalismo em xeque

De economia relativamente pobre nos anos 1980, a República da Irlanda viu seu mundo ficar mais colorido quando aderiu à UE. O ingresso no bloco permitiu que o país recebesse investimentos e, com isso, pudesse desenvolver suas bases, devidamente paramentadas no conceito neoliberal, “sem se preocupar com um desenvolvimento sustentável da economia”, avalia Ben Nutty, 39 anos, mestre em História e Estudos Europeus e doutor em Educação.
Ex-membro do Green Party, partido que integra a coalizão do governo irlandês – e, apesar do nome, não tem nada de ecológico –, Nutty diz que um dos grandes erros do governo foi “relaxar nas regras de concessão de crédito pelos bancos”.

Com impostos e taxas para concorrência nenhuma botar defeito, a Irlanda tornou-se atraente e muitas empresas vieram para cá, ampliando o mercado de trabalho. Com emprego, crédito fácil e o guarda-chuva dos inúmeros programas sociais, o Estado virou um paizão, os irlandeses fizeram a festa e se endividaram até não poder mais. “Nos anos 90, os bancos emprestaram dez vezes o capital disponível, enquanto deveriam ter emprestado 2,5”, conta Nutty.

Um dos motores da economia, o setor da construção, provocou o efeito dominó que se viu dois anos atrás. O governo incentivou e os bancos emprestaram muito, aos construtores e aos compradores. O mercado aquecido levou o preço dos imóveis a níveis estratosféricos. Com a crise de 2008, muita gente perdeu o emprego, a bolha do setor estourou e bateu no mercado financeiro, coração da economia capitalista. O setor bancário irlandês, totalmente nas mãos de acionistas privados, precisou recorrer ao governo, que, em troca de ações, injetou recursos e virou quase 100% dono de alguns bancos.

Ao olhar para as máquinas paradas da Gleeson Concrete, uma fornecedora de suprimentos para o setor da construção civil localizada em Donohill, no condado de Tipperary, interior do país, Micheal Gleeson­, de 37 anos, diretor da empresa, lembra quando se viu pela primeira vez completamente perdido, sem saber que passo dar. “Foi um período muito difícil, com a redução no volume de negócios, a queda de preços e a dificuldade para receber de nossos compradores.”

De lá para cá, teve de cortar em 25% o número de empregados e reduzir o volume de horas trabalhadas. Também não adquiriu novos equipamentos e não planeja realizar novos investimentos neste ano. Na opinião de Gleeson, um dos grandes erros do governo foi superestimar o número de unidades residenciais necessárias no período de 2002 a 2007, num país com pouca terra e pouca gente. “O governo falhou muito ao deixar o setor imobiliário sem controle, permitindo que se operassem preços altíssimos. Esse é um legado que o povo irlandês terá de pagar por gerações”, critica o relações públicas Darragh Rea, de 30 anos. “Agora, a Irlanda possui centenas de casas e condomínios fantasmas, que ninguém comprou, ou comprou e não pode terminar de pagar”, completa.

Desemprego

A leis irlandesas permitem redução de salários. Foi o que ocorreu com muita gente. O índice de desemprego triplicou em três anos. Chegou a 13,6% em outubro passado. No mesmo período de 2008, quando a crise comecou, era de 7,6%. Um ano antes, em 2007, estava em 4,7%. Muitos negócios faliram, empresas trocaram o país por outro, lojas estão fechando aos domingos porque não têm dinheiro para pagar os funcionários, situação muito visível quando se caminha pelas ruas da capital. A dificuldade para arranjar um emprego está forçando os cidadãos, especialmente os mais jovens, a aceitar trabalhos antes destinados a imigrantes, como em lojas ou supermercados.
Um dos setores mais sensíveis é o bancário, que conta basicamente com seis instituições: Allied Irish Bank (AIB), Bank of Ireland, Ulster Bank (Irlanda do Norte), Permanent TSB, National Irish Bank e Anglo Irish Bank. Os maiores são AIB e Bank of Ireland. O governo deve adquirir o controle de quase a totalidade de seus papéis. As instituições vão encolher. “Os empregados estão angustiados, sabem que podem perder o emprego”, diz Oliver Gleeson, 32 anos, que trabalha no setor de investimentos do AIB. “Ser bancário na Irlanda é desconfortável hoje em dia. É difícil ficar orgulhoso quando você vê a situação como está.”

Oliver Gleeson: "Ganhar bônus ou participação nos lucros está fora de questão". Foto: Adriana Cardoso

Oliver não teve redução de salário, mas enfatiza que ganhar bônus ou participação nos lucros está fora de questão. “Antigamente, ganhávamos nossa participação nos lucros em ações. Lembro que, uma vez, precisei vendê-las e ganhei um bom dinheiro. Valiam € 23. Hoje valem € 0,40.”

Aine Nolan, 28 anos, gerente financeira de uma empresa,  diz que ainda não teve nenhum corte de salário, mas conta que seus rendimentos estão congelados há dois anos, assim como as possibilidades de ascensão. “Mudar de área ou ser promovida é coisa do passado”, salienta. Para ela, o grande erro do governo na crise foi ser fiador incondicional de todos os débitos dos bancos. “Essa garantia é claramente desastrosa”, avalia. Agora, ela vê que o povo vai pagar a conta.

Imigrante

Na época das vacas gordas, a Irlanda virou eldorado de muita gente. Poloneses, chineses e muitos brasileiros vieram para cá em busca de euros. O ingresso era facilitado pelo governo. Criou-se um boom de escolas de inglês, já que uma das exigências para o ingresso e a permissão de trabalho era estar matriculado em uma. Cláudia Oliveira da Silva, de 37 anos, formada em Comércio Exterior e moradora da zona sul da São Paulo, chegou à capital, Dublin, em 2006, com emprego de babá garantido. Ficou só seis meses no primeiro trabalho. A exemplo dos irlandeses, ela provou o lado bom de ter crédito fácil. “Fiz um empréstimo no Banco da Irlanda assim que cheguei, uma linha destinada  a estudantes, pagando juros de 0,25% ao mês. A moleza, agora, acabou.”

Há dois anos, Cláudia trabalha numa loja de produtos brasileiros e afirma que a crise não chegou a atingi-la diretamente, mas há uma diferença no clima da cidade. “Sinto que há mais gente pedindo dinheiro na rua, mais gente deixando o carro em casa para pegar ônibus. Também vejo mais irlandeses fazendo compras em supermercados populares, onde antes só os imigrantes compravam”, observa. “Vejo mais desemprego entre brasileiros, gente indo embora, comprando menos produtos aqui.” Apesar disso, não pensa em voltar, porque se sente mais segura em Dublin e por achar que aqui administram-se as contas mais facilmente que no Brasil.

O jornalista Márcio Roberto do Prado, de 39 anos, que veio de Jundiaí (SP) e viveu na Irlanda mais de quatro anos, estava voltando para o Brasil em dezembro. Não por causa da crise, mas porque está cansado. Não descarta, porém, voltar. Em Dublin, ele sempre trabalhou muito, muito pesado, e acha que nunca lhe faltou serviço porque “nunca disse não” à chefia. Virou faxineiro, trabalho honestamente recompensado. Chegou a passar noites trabalhando e diz que nunca faltou dinheiro, enquanto no Brasil “sempre andava duro”. Veio para juntar, e juntou. Mas não aconselha ninguém a cair na lábia das agências de intercâmbio e vir para cá pensando em ganhar dinheiro.

A abertura do país para imigrantes trouxe novos elementos para a sociedade irlandesa que, antes, vivia num mundo à parte: o racismo e a xenofobia. Não são incomuns ataques a chineses, coreanos, brasileiros e negros nas ruas da capital.

Uma das vítimas foi o designer Diego Danilo Santana de Souza, de 27 anos. Vindo de Cotia (SP), e há quatro meses na cidade, Danilo foi atacado por um bando de desocupados à procura de encrenca num sábado à noite. Foi surrado duas vezes, próximo de uma das ruas comerciais mais caras do mundo. Estava em seu primeiro dia de trabalho numa pedicab, bicicleta-táxi que aluga por € 80 semanais para conduzir especialmente turistas. “Um casal me socorreu e chamou a polícia, que me levou para casa e prometeu investigar.”

Ao chegar em casa, Danilo teve uma crise de pânico. “Ele teve um apagão e começou a chorar. Não se lembrava de nada, nem de meu nome”, conta Talita Salgado, 24 anos, namorada do rapaz. Foi levado ao hospital e, como não havia médico de plantão na madrugada, as enfermeiras o mandaram para casa. Assustados, ambos não veem a hora de voltar ao Brasil, mas pretendem terminar o curso de inglês.

Futuro

Darragh Rea considera o pacote “um remédio amargo” a ser tomado, mas também atribui aos irlandeses a atual situação. Na opinião de Micheal, “a população tomou emprestado mais do que podia pagar”. Ele critica o comportamento do irlandês, que agiu como um “carneirinho” quando seguiu as recomendações do governo de que teriam de “adquirir logo a casa própria antes de os preços subirem ainda mais”.

Ninguém acredita que o pacote vá funcionar, tampouco aponta outra solução. “O governo não tem condições de pagar esse dinheiro de volta. É necessário que se repense a economia do país, criando bases sólidas para um desenvolvimento sustentável, sem consumo desenfreado e respeitando o planeta”, observa Ben Nutty, um dos membros de um novo partido, o Fis Nua (New Vision), cuja bandeira é ambientalista.

Atualmente, o governo tem a maioria no Parlamento, mas especialistas acreditam que o cenário deve mudar.
Para o bancário Oliver, pode ser a chance de o irlandês recuperar sua autoestima como nação. “Somos um país pequeno e fraco economicamente, pelo qual ninguém se interessa. Precisamos, dentro das dimensões do que somos, que o mundo esteja saudável para que sejamos saudáveis também.”