A voz e a vez do sertão

Secretário da Cultura da Paraíba, o compositor Chico César quer uma gestão que privilegie as manifestações artísticas populares e combata o 'cosmopolitismo servil', que só dá valor ao que vem de fora

Em Monteiro, interior da pequena Paraíba, vive Zabé da Loca, “pifeira” de 86 anos anos reconhecida apenas há pouco por sua música e história. (Foto:João Correia/ Revista do Brasil)

Uma das primeiras brigas compradas pelo novo secretário da Cultura da Paraíba trata de um tema que ele conhece a fundo: a música. Recém-nomeado pelo governador Ricardo Coutinho (PSB), o compositor e cantor paraibano Chico César, autor de hits como Mama África e À Primeira Vista, assume a pasta em meio a várias polêmicas. Uma delas, a escolha do novo regente da Orquestra Sinfônica da Paraíba, João Linhares, também paraibano, amigo de Chico e arranjador de alguns de seus discos.

Em jornais e blogs da cidade, as opiniões se dividem. Para alguns, a escolha foi tida como um erro, considerando-se que Linhares não teria formação adequada para assumir o posto, ou mero privilégio dado ao amigo, muito mais conhecido por sua atuação como músico popular. Para outros, reflete positivamente a valorização de músicos paraibanos, “que conhecem as necessidades e a realidade de nossa música, da popular à erudita”, como descreve um influente site de notícias da capital João Pessoa.

A polêmica é apenas parte do desafio que Chico César se põe a enfrentar em sua gestão: valorizar a cultura popular sem ferir os tradicionais poderes culturais do estado. “Existe um cosmopolitismo servil, no qual o que é bom é o que vem de fora. João saiu daqui já compositor de música erudita, com reconhecimento, chegou a reger a própria orquestra da Paraíba num momento de crise, depois foi para São Paulo, regeu a Jazz Sinfônica, foi maestro-assistente da Sinfônica Jovem, fez arranjo para várias orquestras, para vários artistas”, defende o secretário.

“Mas se vier um cara com uma história semelhante à dele e tiver sotaque de São Paulo, ou do Rio de Janeiro, ou de Santa Catarina, aí rola um ‘sim senhor'”, ataca Chico, que considera uma “quase aberração” a orquestra há muitos anos não ter um regente paraibano. “A escolha é parte de uma política de valorização; afinal, os músicos paraibanos são referência no país, e é justo que o regente titular seja um artista com formação musical paraibana.”

A luta por valorizar músicos de seu estado encontra eco em sua história de vida. Nascido em Catolé do Rocha, no sertão paraibano, o menino Francisco César Gonçalves viveu com muitas dificuldades, embora sempre rodeado de dança e música. Seu pai dançava reisado e ele começou a aprender música muito jovem, num colégio de freiras, uma das poucas opções em Catolé, hoje com cerca de 30 mil habitantes.

Vanilson Crispim se lembra do amigo de infância esboçando acordes de canções de Raul Seixas, aos 9 anos. “Chico passava a maior parte do tempo no colégio Francisca Mendes, pois os pais não tinham condições de criá-lo adequadamente, devido a uma vida muito dura que o sertão impunha naquele tempo”, recorda o amigo. Crispim conta que nessa mesma época formaram um grupo musical chamado Super Sônico Mirim. “Emprestava minha camisa pra ele na hora de se apresentar”, recorda orgulhoso.

Em 2001, depois de se mudar para São Paulo e conquistar as rádios da capital paulista, Chico criou em sua cidade natal o Instituto Cultural Casa de Béradêro, uma ONG que atua na formação de jovens e adolescentes por meio da música. A ideia nasceu de uma parceria com a irmã Iracy, sua primeira professora de música, e hoje possui, além de outros projetos ligados a arte, uma pequena orquestra e uma luteria, onde os jovens aprendem a construir instrumentos. Foi também em Catolé do Rocha que Chico César gravou o clipe de Mama África, seu primeiro grande sucesso.

De autor a gestor

ChicoCesar_Secretaria_JoaoCorreiaTer sido escolhido como vitrine do governo por ser famoso nacionalmente é outra polêmica local levantada. Questionamento parecido já havia sido feito quando o músico assumiu, em 2009, a presidência da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope), órgão que exerce o papel de secretaria municipal de Cultura. Permaneceu no cargo por 18 meses, durante a gestão de Ricardo Coutinho como prefeito da capital. “As pessoas esquecem que fui um dos fundadores do Musiclube da Paraíba, do Movimento Fala Bairros, que faziam cultura comunitária, sem governo, sem nada”, observa Chico.

Ele cita como referência outro famoso que virou gestor público: Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura. “Até entendo esse tipo de desconfiança, pois no começo da gestão de Gil eu era bastante desconfiado. Achava que era um gesto por parte de Lula de criar um simbolismo, porque Gil tinha uma representação como artista bem-sucedido da indústria cultural, um cara que não ia propor mudanças num sistema que não funcionava para a maioria, mas funcionava pra ele”, admite. “No entanto, Gil me surpreendeu e mudou vários paradigmas da cultura do Brasil.” Para ele, a grande mudança foi deslocar os investimentos para projetos e regiões menos favorecidos. Hoje, são mais de 2.500 Pontos de Cultura espalhados pelo país, 54 deles no estado da Paraíba.

Outro grande nome que serve de inspiração para Chico César é o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, secretário de Cultura de Pernambuco de 1994 a 1998, durante o governo de Miguel Arraes (PSB). Suassuna teria conseguido equalizar a valorização da cultura popular e erudita de seu estado, tornando ambas conhecidas nacional e internacionalmente. A ideia do músico é seguir os passos do autor de O Auto da Compadecida e fazer nos próximos meses um grande levantamento das manifestações culturais do interior paraibano.

O projeto, no entanto, ainda esbarra na falta de verbas e de estrutura da recém-criada secretaria, pois até então a cultura estava ligada à Secretaria da Educação. A precariedade e o improviso ficam explícitos quando se visita o Casarão dos Azulejos, no centro histórico da capital, onde se encontra provisoriamente instalada a nova secretaria. Faltam computadores, cadeiras e mesas, e o que mais se comenta nos corredores é como arranjar parceiros para suprir a falta de verba para os projetos.

Quem chega ao Casarão se surpreende com a quantidade de jovens em cargos de gerência de várias áreas. “São criativos, antenados, representam sangue novo”, defende Chico. Pedro Santos, assessor de imprensa da secretaria, tem apenas 23 anos e demonstra que suas referências estão em movimentos culturais da Paraíba na década de 1980, quando ainda era criança. Uma delas é o grupo Jaguaribe Carne, que contava com a participação de artistas de várias áreas. “Foi um coletivo que deu muitos frutos, e ainda hoje vários dos integrantes estão bastante envolvidos com cultura, como Gustavo Moura (fotógrafo), Bráulio Tavares (músico e compositor) e os músicos Lula Queiroga e Pedro Osmar, entre outros”, diz o assessor.

Dessa época, uma das histórias mais emblemáticas da vida de Chico César foi ter participado de uma greve de fome, em 1984, com mais sete amigos da faculdade, com o intuito de conseguir melhorias e gratuidade no refeitório da Universidade Federal da Paraíba. “Foram nove dias sem comer nada, com acompanhamento psicológico, médico, algo muito pesado para nós, mas deu resultado”, conta Vilma Cazé, namorada de Chico à época e hoje responsável pela área de teatro na secretaria.  

Da capital para o interior

Em poucas semanas à frente da secretaria, Chico César esteve nas principais cidades do sertão paraibano, como Monteiro, Souza, Guarabira, Cajazeiras, Patos, e procura administrar o tempo para também visitar locais estratégicos na capital, como a Fundação Casa de José Américo, um dos mais importantes centros culturais da cidade. Recebido pelos diretores, o secretário parece não estar totalmente à vontade enquanto é levado a conhecer os vários cômodos da grande casa onde viveu o imortal autor de A Bagaceira, construída de frente para o mar, e totalmente restaurada, símbolo da riqueza de uma elite intelectual e política do início do século 20, à qual pertenceu o escritor.

Em uma das salas, onde estão fotos e edições traduzidas da obra do ilustre paraibano, Chico é convidado a ouvir gravações de uma longa entrevista feita com José Américo na época em que foi candidato ao governo da Paraíba – estado do qual foi interventor em 1930 e governador eleito em 1951. Em seguida, ouve um tanto impaciente um jingle da campanha política  – “candidato da pobreza e da religião”, exaltava a marchinha. O som sai de um antigo rádio, adaptado para reproduzir as palavras do conterrâneo imortal.

Todos os demais acompanham o discurso solenemente. Chico fixa o olhar num cofre, onde talvez fosse guardado o dinheiro de José Américo. Visivelmente incomodado, desvia a atenção e pergunta: “Será que ele não deixou aqui dentro alguma botija com dinheiro pra tirarmos a cultura do buraco, alguma coisa além de palavras…?” Em meio ao sorriso amarelo dos presentes, a visita continua sob a voz de José Américo, que ecoa por toda a casa.

No dia seguinte, Chico vai a Monteiro, a 300 quilômetros da capital, uma das principais cidades do Cariri paraibano, região rica culturalmente, mas ainda carente de recursos. Dali saiu, por exemplo, Zabé da Loca, “pifeira” de 86 anos reconhecida apenas recentemente por sua música e sua história. Zabé ganhou esse apelido por ter vivido por mais de 20 anos numa gruta (conhecida na Paraíba como maloca, ou loca), após a perda de sua casa numa chuva. Começou a tocar pífano aos 6 anos e só foi revelada oito décadas depois, com uma premiação de nível nacional, por seu único trabalho em CD. “Dona Zabé da Loca é uma veia muito loca/ que toca pife muderno numa caverna do sertão”, diz a letra da canção Zabé, composta por Chico César em sua homenagem.

Em Monteiro, ele se reúne com os prefeitos durante o Fórum de Cultura de Turismo do Cariri. Está mais à vontade, vestindo camiseta com o rosto de Zabé. Em seu discurso ressalta a necessidade de um modelo de cultura ligado mais às questões sociais: “A cultura é vista dentro deste governo por um viés que tem muito mais a ver com os direitos humanos, com a formação do cidadão, não como algo de artistas, de poucos privilegiados. A cultura precisa ser vista como um modo de transformar a sociedade”. Na plateia, os atentos olhos sertanejos parecem nutrir uma esperança. O músico fala com propriedade de quem é do sertão e exemplo de como a arte pode transformar a vida do sertanejo. Resta saber se sua administração como gestor público vai deixar marcas tão fortes quanto sua obra. Sem desafinar.