Caminho para o entendimento

As economias mais evoluídas ensinam que trabalhadores com direito a voz constroem ambiente produtivo e menos conflituoso. Mas parte do empresariado brasileiro resiste

Representantes de coletores de lixo, Baixada Santista (Foto: Alexsander Ferraz)

“Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores.” O texto do artigo 11 da Constituição é claro, mas poucos são os casos efetivos de organização no local de trabalho, a chamada OLT. A lentidão em garantir um direito constitucional motivou o Ministério Público do Trabalho (MPT) a lançar um programa nacional nesse sentido. Outra frente será aberta no Congresso. “Um direito social não pode ser letra morta”, diz o promotor Ricardo Macedo, do MPT. “Na prática, o artigo 11 não é cumprido.”

O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, considera que o tema precisa ser encaminhado com precisão para não haver riscos de os próprios empregadores escolherem os representantes dos trabalhadores. “Em muitas empresas, o cipeiro (que deveria enxergar a adequação das condições do ambiente de trabalho do ponto de vista dos empregados) é o técnico de segurança, é o chefe”, afirma. A entidade prepara um projeto a ser proposto neste mês de julho, em meio a comemorações dos 30 anos da primeira comissão de fábrica da base, a da Ford, em São Bernardo. Os metalúrgicos defendem o modelo de comitê sindical de empresa (CSE), que prevê representantes sindicais nos locais de trabalho.

Metalúrgicos Ford 1981 (foto: Arquivo SMABC)

Nas eleições para renovação da diretoria da entidade, em março deste ano, 271 trabalhadores foram eleitos para 88 comitês, além de um de aposentados. No segundo turno, concluído em maio, foram escolhidos o conselho diretivo e a executiva. Os comitês reúnem mais de 80% da base, formada por 107.290 metalúrgicos. A ideia é que o projeto de lei a ser debatido no Congresso Nacional seja de autoria do Poder Executivo, o que já foi discutido dentro do governo e com entidades empresariais. Um dos articuladores da proposta é o ex-presidente do sindicato e ex-vice da CUT José Lopez Feijóo, hoje assessor da Secretaria-Geral da Presidência da República – ele, aliás, é um dos pioneiros da comissão de fábrica da Ford.

Mais espaço

“Você pode ter um CSE num banco, na fazenda, no comércio”, diz Nobre, ressalvando que é preciso respeitar as particularidades de cada categoria. “Se a negociação coletiva funcionasse, não precisaria de toda essa estrutura da Justiça do Trabalho. Aqueles prédios todos são a falência do diálogo.” O principal papel do comitê sindical, assim, seria a fiscalização dos acordos coletivos e da legislação trabalhista.

O gerente-executivo de Relações do Trabalho e Desenvolvimento Associativo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Emerson Casali, diz que a representação no local de trabalho deve ser resultado do “amadurecimento” das relações trabalhistas e do diálogo entre empresas e sindicatos, “e não de uma imposição de um marco legal que desconsidere a diversificada variedade de situações no país”. A entidade patronal vê com receio a presença de comitês ou comissões de fábrica. “Caso não haja muita maturidade e qualificação das partes, pode haver uma ampliação dos conflitos que ponha em risco a gestão das empresas. Isso desestimularia os investimentos produtivos e a criação de empregos”, argumenta Casali. A CNI está analisando o projeto dos metalúrgicos.

Para o presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNM-CUT), Paulo Cayres, as empresas precisam parar de ver assombrações nesse tipo de organização. “Queremos construir a negociação. Não vamos tocar as fábricas. Onde você não tem OLT, o patrão humilha mesmo. O verdadeiro enfrentamento é no local de trabalho. É lá que se dá a exploração, onde acontece o assédio”, diz.

Em Taubaté (SP), atuam 107 dirigentes em 20 comitês sindicais de empresas e mais um de aposentados, abrangendo 80% da base, formada por 22 mil metalúrgicos. O conselho (27 integrantes) e a executiva (9) são também eleitos numa etapa seguinte. “É um caminho sem volta. Sindicato precisa estar dentro da fábrica para discutir os problemas do dia a dia”, afirma o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Isaac do Carmo.

Um dos que mais exigiram esforço para que virasse realidade foi o CSE da LG Eletronics (foto abaixo). “Normalmente, há um certo problema com as gestões orientais. Lá na Coreia é sindicato por empresa. A relação que eles têm é muito diferente”, diz Fábio Godoy, do comitê da LG de Taubaté. “Por vezes, a nossa entrada na empresa era impedida. Isso tem melhorado.”

Comitê sindical da LG (foto: Netnews.com Soluções)

Com o atual modelo, o número de representantes sindicais na LG passou de dois para 12, distribuídos em três turnos. “Hoje, nossa PLR (participação nos lucros ou resultados) é a melhor do Brasil no setor eletroeletrônico. E temos conseguido várias soluções sobre desvios de função”, afirma Fábio.

No ramo químico, a experiência permitiu expandir a troca de informações pelo continente, lembra Vilobaldo Machado, da intersindical dos trabalhadores da Basf em Camaçari (BA). “Por meio da rede de trabalhadores na América do Sul conseguimos construir um espaço chamado Diálogo Social, com reuniões com a empresa a cada oito meses”, conta. Um dos acertos diz respeito à formação de comissões de fábrica nas unidades da Basf. “A comissão é uma extensão do sindicato dentro da fábrica”, afirma Vilobaldo. “A rede, por sua vez, avança em aspectos que porventura não estejam na convenção coletiva.”

Já a comissão de fábrica da Bayer em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, tem 20 anos. A unidade inaugurada em 1958, pelo presidente Juscelino Kubitschek, foi a primeira da multinacional alemã no Brasil. Um dos trabalhadores interpreta desta maneira a função da CF: “Você é o primeiro filtro dentro da fábrica. Tem de estar no fio da navalha, não pode fechar portas”.

Bicho-papão

Organização por local de trabalho é um bicho-papão no sistema financeiro. Entre os bancos públicos federais até existe um sistema, mas a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban), em que predomina a influência do sistema bancário privado, não quer nem ouvir falar em OLT.

Depois de dizimada na gestão FHC, quando se eliminou a figura do delegado sindical e dos representantes dos empregados nos conselhos de administração das empresas, a representação foi reestruturada no governo Lula. No Banco do Brasil, o acordo coletivo nacional prevê a presença de um delegado sindical a cada 80 funcionários. Na Caixa Federal, um a cada 100. O delegado é eleito com mandato de um ano e estabilidade de mais um.

Nos setores de comércio e de serviços as dificuldades são maiores, mas há algumas experiências em andamento, como no segmento de limpeza urbana da Baixada Santista. Por enquanto, são comissões de negociação, formadas para discutir acordos coletivos ou temas específicos, como a participação nos lucros e resultados. “É um caminho para o trabalhador receber a informação”, afirma o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Asseio e Conservação, Djalma Sutero da Silva. 

 

Alemanha, sistema consolidado

Fritz Hofmann Basf Alemanha

Na Alemanha, os primeiros conselhos de empresa foram criados nas lutas de classe do século 20, depois da Primeira Guerra Mundial. 

Uma lei de 1952 determina que as empresas têm de aceitar as comissões, quando os trabalhadores votam por sua criação. 

Quase todas as empresas as têm. “Na Basf não houve conflito quanto a isso, mas, é claro, até hoje permanecem as discussões sobre as atribuições e o alcance de sua autoridade”, conta Fritz Hofmann, da comissão de fábrica da empresa em Ludwigshafen (na foto acima, o segundo da esquerda para a direita).

Outro desafio é o relacionamento com o sindicato, observa Hofmann. “Segundo a lei, a comissão deve representar todos os empregados de uma empresa. E ser escolhida pelo voto de todos, mesmo dos que não são filiados ao sindicato.” Formalmente, a comissão é autônoma. Em uma eleição, por exemplo, o sindicato apresenta uma lista de candidatos. Se eles conseguem maioria, podem determinar a política a ser implementada na fábrica.

“Na Basf de Ludwigshafen, 85% dos membros da lista do IG BCE (o sindicato do setor químico da Alemanha) foram eleitos. Comissão e sindicato trabalham em conjunto na maioria das vezes. Mas nem sempre. Isso pode levar a confrontos.”

Embora a lei obrigue a empresa a aceitar a instalação das comissões, há limites, como o veto a participar de decisões importantes na gestão econômica. “Também na Alemanha não existe uma democracia nas empresas”, afirma. No Brasil, isso é possível em algumas estatais (leia quadro na página anterior).

Pela lei, parte dos representantes é liberada do trabalho e concentra o dia a dia nas atividades da comissão. Na Basf, com 34 mil empregados votantes, a comissão tem 50 integrantes e metade não exerce as funções originais. Todos têm garantia no emprego até um ano depois do mandato.

“Os países que conseguiram conciliar desenvolvimento econômico e social têm essa característica. A distribuição de renda só ocorre quando o sindicato é forte”, diz o presidente dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre. Ele, porém, vê muitos “fantasmas” no debate do assunto no Brasil, já que a organização no local de trabalho implica redução do poder absoluto praticado por determinadas chefias.

Na Espanha, são eleitos delegados e comitês de empresa, conforme o número de funcionários. Normalmente, os comitês têm maior representatividade nas empresas de menor porte, enquanto as seções sindicais ficam à frente nas grandes empresas.  

“Para que o convênio tenha eficácia, tem de ser aprovado pela metade mais um de cada uma das representações (empresa e trabalhadores)”, lembra Francisco González, da Secretaria de Ação Sindical da Comisiones Obreras (CCOO). Os acordos setoriais são negociados pelas centrais (CCOO e UGT) e pelas entidades que tenham mais de 10% dos eleitos. Segundo Miguel Sánchez, também da CCOO, “salvo exceções, a relação (entre comitês e seções sindicais) costuma ser harmoniosa”.

Democracia na gestão

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou em dezembro passado a Lei 12.353, sobre participação de representante dos empregados nos conselhos de administração das empresas públicas e sociedades de economia mista, subsidiárias e demais empresas em que a União seja a controladora.
Pela lei, a eleição deve ser organizada em conjunto com as entidades sindicais. O conselheiro não deve participar de discussões de assuntos “que envolvam relações sindicais, remuneração, benefícios e vantagens, inclusive matérias de previdência complementar e assistenciais, hipóteses em que fica configurado o conflito de interesse”.
Em março, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, assinou a Portaria 26, regulamentando a lei, que vale para companhias com mais de 200 funcionários. Isso deverá contemplar aproximadamente 60 estatais. Foi fixado prazo de 180 dias para que as empresas adéquem seus estatutos.
Na Petrobras, o conselho de administração tem nove integrantes – sete representantes do acionista controlador, um dos detentores de ações ordinárias (com poder de voto) e um dos detentores de ações preferenciais (com preferência na distribuição de resultados). “A nossa expectativa é que isso (a eleição do representante dos trabalhadores) seja implementado no segundo semestre”, diz o coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP), João Antônio de Moraes. “É uma briga antiga nossa.”