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O Brasil suportou a turbulência de 2008 com mercado interno forte e crescimento e mostrou ao mundo que proteger empregos e salários é vacina contra efeitos da crise

A exemplo da Petrobras, mercado tem se mostrado promissor para os mais diversos setores da economia (foto: © Agência Petrobras)

Bancários, metalúrgicos, petroleiros e químicos, categorias que reúnem mais de 2 milhões de trabalhadores e são consideradas referências nas negociações, abriram as campanhas salariais em um ambiente econômico desconfiado da situação internacional. Mas o cenário interno, apesar da desaceleração da economia, e os resultados obtidos recentemente pelas empresas animam os dirigentes sindicais a continuar reivindicando ganhos acima da inflação. A expectativa é superar, no segundo semestre, o ritmo das campanhas do primeiro.

De janeiro a junho, de um total de 353 acordos coletivos de trabalho estudados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), 93% foram celebrados com reajustes que não perderam para a inflação e a maioria deles com aumentos reais.

Esse desempenho duradouro das campanhas salariais na última década e a política de valorização do salário mínimo têm algo em comum: contribuem para proteger o poder de compra dos consumidores. E, por extensão, o mercado interno, sem com isso ter representado qualquer ameaça ao controle da inflação. Para os setores da imprensa e do mercado que costumam praguejar contra a renda sob a alegação de ser uma ameaça à estabilidade de preços – uma conversa do século passado –, o professor Claudio Dedecca, do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), rebate.

Afirma que, a não ser para algumas pessoas “mal intencionadas”, não há nenhum sinal de que o crescimento do consumo esteja na raiz do processo inflacionário. O ambiente, aliás, favorece as batalhas por percentuais de reajuste acima da inflação.

O coordenador de Relações Sindicais do Dieese, José Silvestre Prado de Oliveira, observa que, embora nos acordos salariais tenham superado a inflação, os ganhos reais conquistados estão abaixo dos ganhos de produção, das vendas e dos resultados alcançados pelas empresas. Em 2010, por exemplo, o aumento real médio dos assalariados foi de 1,7%, enquanto o PIB do país alcançou 7,5%.

Para Dedecca, o aumento real de salário deve ser visto não apenas como fator de justiça social, mas instrumento para garantir o desenvolvimento econômico – considerando que a economia brasileira vem se sustentando via mercado interno. “Os aumentos reais no segundo semestre podem ser um fator importante na busca pela manutenção do crescimento de 4%”, afirma. O governo agora trabalha internamente com uma previsão de 3,7%.

O diretor-técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, afirma que o atual momento é favorável a que se busque bem mais do que o “empate” com a inflação. “Se estivéssemos no início dos anos 2000, diria que no quesito de negociação salarial estaríamos na série C do campeonato com a perspectiva de empatar em alguns jogos”, compara.

Para ele, um dos desafios para o futuro das negociações coletivas é justamente debater o crescimento dos salários em harmonia com a melhora da produtividade. Ou seja, o trabalhador tem motivos concretos para pleitear o aumento da renda sem que precise para isso acumular funções e tempo de trabalho. “É uma batalha que os sindicatos têm de travar”, adverte.

De vento em popa

Economia - montadoras (© Nacho Doce/Reuters)Ainda que não seja possível calcular o tamanho, para o Brasil, de um impacto da crise nos Estados Unidos e na Europa, na avaliação do diretor do Dieese o país está “bem”. Mantidos os padrões outrora usados para o enfrentamento de crises, segundo ele, a instabilidade deixaria muitos desempregados.

 

Montadoras vivem ciclo positivo desde 2005. No ano passado, venderam 3,5 milhões de veículos
(Foto: © Nacho Doce/Reuters)

“Alguém imaginaria nos anos anteriores (referindo-se ao governo Fernando Henrique Cardoso), em plena crise, a gente estar por aqui em negociação salarial?”, argumenta. No país em que se conquistou recorde de estoque de empregos com carteira assinada no último ano, ele defende a disputa pelo aumento real como estratégia de crescimento. “E mais empregos e mais salários são a base para sustentar o mercado interno.”

Mesmo com a previsão de um PIB menor para este ano, o fato é que os bons resultados continuam acontecendo em quase todos os setores da economia. A Petrobras, por exemplo, anunciou lucro líquido de R$ 21,9 bilhões no primeiro semestre, crescimento de 37% sobre igual período de 2010. Seu plano de negócios para o período 2011-2015 vai a US$ 224,7 bilhões, e em um ano o valor de mercado da companhia cresceu 28%, para R$ 328,4 bilhões.

Em julho, o Conselho de Administração da empresa aprovou a segunda parcela de distribuição antecipada de juros sobre o capital próprio aos acionistas, no valor de R$ 2,609 bilhões. “Com relação à atual conjuntura econômica, o cenário mundial apresenta instabilidade, porém ainda sem impacto em nossos negócios em função da concentração de nossas atividades no Brasil, onde o mercado se encontra em expansão, o que vem nos propiciando uma robusta geração de caixa necessária ao desenvolvimento de nossos negócios”, assinala o presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, na apresentação dos resultados.

Com isso, os petroleiros preparam-se para uma negociação que é considerada chave, por seus reflexos na administração pública. A pauta de reivindicações aprovada em congresso da Federação Única dos Petroleiros (FUP) inclui reposição da inflação e 10% de aumento real. De acordo com a entidade, os bons resultados da empresa poderiam indicar uma negociação menos complicada, mas o problema é que até pessoas importantes do governo já manifestaram uma visão conservadora, relacionando aumento real a inflação.

Uma sinalização das prováveis dificuldades veio do setor elétrico – o acordo fechado com a Eletrobrás prevê ganho real de apenas 1%. Em São Paulo, o sindicato estadual dos trabalhadores do setor energético (Sinergia-CUT) já fechou acordos maiores com a Cesp (8,1%), a CPFL Energia (7,8%) e a CPFL Jaguariúna (7,04%). 

As montadoras também vivem ciclo positivo desde 2005, com recordes sucessivos. No ano passado, venderam 3,5 milhões de veículos, e a meta é atingir 6 milhões até 2020. Por enquanto, o ritmo está mantido. De acordo com a Anfavea, a associação das montadoras, 3,7 milhões foram comercializados nos últimos 12 meses. E há 13 projetos em construção ou análise para expandir a capacidade – atualmente o país tem 19 montadoras e 24 fábricas.

Campanha “Bancário não é Máquina”: categoria cobra dos bancos compartilhamento de resultados com a sociedade.
(Foto: © Nacho Doce/Reuters)

Campanha bancários (© Nacho Doce/Reuters)

As negociações com o setor automobilístico começaram em meados de agosto e, no segmento das montadoras, já assegurou índice de 5% acima da inflação. O acordo foi inovador para os padrões brasileiros, ao estabelecer o critério de reajuste e o patamar de ganho real­ por dois anos. Isso abre mais espaço para negociações de cláusulas sociais, com adesão das empresas à licença-maternidade de 180 dias.

O setor financeiro, por sua vez, continua acumulando ganhos bilionários. O Bradesco teve lucro líquido de R$ 5,6 bilhões no primeiro semestre, crescimento de 21% sobre igual período de 2010. Suas ações preferenciais saltaram 28% em 12 meses, ante 2% do Ibovespa. O lucro do Itaú Unibanco atingiu R$ 7,1 bilhões nos primeiros seis meses deste ano, 11,4% sobre o primeiro semestre de 2010. Os bancos públicos não ficam atrás. O Banco do Brasil anunciou lucro líquido de R$ 6,3 bilhões de janeiro a junho, 23% de aumento, com distribuição de R$ 2,5 bilhões aos acionistas; e a Caixa, R$ 2,3 bilhões, alta de 36%, na comparação dos semestres.

Novo cenário

“A crise, na fase atual, parece ser a crise do ‘medo de 2008’, e não algo sistêmico”, declarou ao jornal O Globo, em meados de agosto, o economista-chefe do Bradesco, Octavio de Barros, que apesar disso se alinha aos que consideram não ser ainda o momento de cortar juros.

As projeções para a taxa básica (Selic) também entraram na gangorra. Até pouquíssimo tempo atrás, o mercado – sempre ele – previa (e desejava) pelo menos uma ou duas altas ainda neste ano. Depois, a expectativa passou a ser de manutenção dos juros no alto nível de 12,5% ao ano. Até que começaram os movimentos dentro do próprio governo para que, dada a desaceleração inflacionária e diante do ritmo de crescimento, os juros passem a cair. “Não acredito que o presidente do BC queira ser responsável por um crescimento de 2% ou 3%”, diz Claudio Dedecca, da Unicamp. E acertou.

Com a decisão do governo de se comprometer a ser ainda mais mão-fechada com os gastos públicos, visando criar um clima mais favorável à queda dos juros, não coube outra opção ao Comitê de Política Monetária: em sua mais recente reunião, no final de agosto, tirou 0,5 ponto percentual da Selic, baixando-a para 12%.

“Note-se que o ‘descontrole’ da inflação saiu da agenda. A situação atual, de atenção à crise, deve ser vista como oportunidade. Abre-se espaço para redução dos juros”, afirma o professor do Instituto de Economia da UnicampAndré Biancareli. Segundo ele, as fórmulas macroeconômicas mastigadas pelo mercado podem ser superadas e o Brasil não deve permitir que a agenda conjuntural, de prevenção a eventuais efeitos da crise, se sobreponha aos seus desafios estruturais.

“Temos objetivos permanentes, como preservar o crescimento e os empregos; manter os investimentos em infraestrutura, saúde, educação; defender a indústria, cada vez mais apreensiva diante da concorrência chinesa; promover a integração produtiva, comercial  e de cooperação financeira com a América do Sul”, defende Biancareli.

Colaborou Letícia Cruz

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Joao Antonio Morais (divulgação)“Sempre defendemos que um país só pode ser grande e forte e ter influência no mundo na medida em que tem o mercado interno forte. Isso com bom padrão de rendimento dos trabalhadores, para que possam consumir o que é produzido pela economia nacional. Foi assim que o Brasil superou a crise causada pela quebra do banco Lehman Brothers em 2008.”
João Antonio Moraes, coordenador-geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP)

Juvandia Moreira (© Jailton Garcia)“Vivemos em um país de muita desigualdade e concentração de renda. Temos de corrigir isso. O aumento real, além de fortalecer o mercado e nossa economia, distribui renda. Nosso setor tem um ganho de produtividade altíssimo e uma rentabilidade em torno de 25%, fora do comum. Esse resultado precisa ser partilhado com os trabalhadores e a sociedade.”
Juvandia Moreira, presidenta do Sindicato dos Bancários de S.Paulo, Osasco e Região

Jesus Garcia (© Div/Sinergia)“Economia em alta, previsão de 4% de crescimento do PIB. Nunca se ganhou neste país como as empresas ganham vendendo energia elétrica. O consumo aumentou muito e as empresas pagam uma capela pelo processo de privatização. O importante é dar sequência à retomada do crescimento. O argumento da crise não se sustenta.”
Jesus Garcia, presidente do Sindicato dos Energéticos de SP

Raimundo Lima (© Div/Fetquim)“Nosso setor tem superávit de 12 mil postos de trabalho entre contratações e demissões. Então, está visivelmente em muito bom momento. Pelas pesquisas que temos feito com o Dieese, o setor químico cresceu, nos últimos anos, de 7% a 15%. Então, cenário de crise não prospera na mesa de negociação. E é a questão do aumento real que vamos discutir.
Raimundo Lima, da Federação dos Químicos (Fetquim-CUT/SP)

Sérgio Nobre Acordo de longo prazo permite ao trabalhador prever investimentos ou gastos futuros. Ganho real proporciona poder de consumo e de poupança, mais produção e mais empregos. O aumento da ajuda o crescimento. Na crise de 2008, países como Alemanha ou Brasil, que sustentaram empregos e políticas públicas, saíram da situação com maior facilidade.
Sérgio Nobre, presidente do Sindicato
dos Metalúrgicos do ABC