O melhor ataque é a defesa

O argentino Rubén Magnano ensinou nosso basquete masculino a defender e vencer

“O esporte tem de ser um agente da educação” (foto: © divulgação/CBB)

São 15h10 e o técnico da seleção brasileira de basquete, Rubén Magnano, se desculpa com a reportagem. Eram 13h30 quando calculou que poderia “pagar umas contas” numa agência bancária ali perto e voltar às 14h, como combinado. Com a simplicidade de um “caipira”, como se define, não quis mandar um portador fazer o serviço, tampouco pleitear atendimento VIP. Não imaginava que ir a um banco fosse tarefa mais árdua do que devolver o basquete masculino do Brasil à Olimpíada, algo que o país não conseguia desde 1996. Natural da província de Córdoba, na Argentina, Magnano desistiu de ser um jogador medíocre, segundo ele mesmo, para tentar ser professor. Acabou virando técnico, e dos bons. Dirigiu por várias temporadas o time do Atenas de Córdoba e o Boca Juniors, comandou equipes da Itália e da Espanha, o país mais competitivo depois da NBA. Em 2002, à frente da seleção de seu país, conseguiu um trunfo inédito sobre o dream team norte-americano e terminou o Mundial com a prata. Dois anos depois, alcançou o ouro nos Jogos de Atenas. E desde janeiro de 2010 é o técnico da seleção masculina do Brasil.

Sob seu comando, o time carimbou o passaporte para Londres 2012 – e até lá, afirma, nenhum jogador está garantido nem vetado. Ou seja, as portas para as estrelas Leandrinho e Nenê, que não quiseram jogar o Pré-Olímpico, não serão fechadas por antecipação. Na hora certa, vai chamar quem julgar melhor para o time. A vaga foi conquistada em setembro, em Mar del Plata, e 40 dias depois, com apenas parte do grupo, Magnano embarcou para o Pan-Americano de Guadalajara, onde o Brasil jogou quatro partidas em quatro dias e terminou em quinto. Um dia antes de viajar, concedeu esta entrevista. Fala de sua paixão pelo Belgrano, time de Córdoba que mandou o tradicional River Plate para a segunda divisão do futebol argentino, de seu desejo de recuperar o prestígio do basquete brasileiro entre os jovens e sobre a importância de o país, mais que preparar sua estrutura física para a Copa de 2014 e os Jogos de 2016, aproveitar essas oportunidades para deixar um legado humano, que faça do esporte um agente da educação.

Você já se sente completamente adaptado ao jeito brasileiro de jogar?

Não tive tanta dificuldade na preparação do time para jogar, e isso se deve ao fato de que muitos jogadores atuam foram do país, com filosofia diferente, política diferente, muito mais próxima do que gosto no basquete, principalmente o europeu.

A força na defesa nunca foi o forte do basquete do Brasil. É preocupação sua criar a mentalidade de que é preciso marcar, não só atacar?

Eu tenho 100% de preocupação: 50% no aspecto defensivo e 50% no ofensivo (risos). Meu foco está muito mais no aspecto defensivo. Isso dá uma personalidade ao time, uma solidariedade, um companheirismo que depois se transmite à parte ofensiva. Não podemos esquecer esse aspecto do jogo. Principalmente na base. Porque existe uma lei de oposição. Quanto maior oposição você sofre, maior crescimento ofensivo você vai ter de aprender, e quanto maior é o poder ofensivo mais você tem de melhorar sua defesa para poder melhorar seu poder ofensivo. E assim, constantemente, vamos crescendo: ante uma maior oposição, melhor será sua qualidade competitiva. É uma equação lógica.

E uma boa defesa desequilibra o adversário…

Nenhum jogador ou treinador está acima da seleção. Ninguém tem vaga garantida em Londres nem há vetos por antecipação. Vai quem for melhor para o time. Vou me apegar a essa decisão

Sem dúvida, a ideia é não deixá-lo jogar como ele gosta, é retirar-lhe o timing do jogo. Em vez de pegá-lo a seis metros, pegá-lo a nove metros da cesta; em vez de ter 180 graus para jogar, fique só com 90 graus. Isso vai diminuir sua quantidade de passes e a qualidade ofensiva.

Quando você foi convidado para dirigir a seleção brasileira, tinha noção de como o basquete estava desorganizado, politicamente e tecnicamente?

Eu tinha outra avaliação. Fiquei bastante surpreso quando percebi que ia precisar andar, viajar pelos estaduais, para a liga, para as olimpíadas escolares. Fiquei um pouco assustado, acho que o Brasil tem de trabalhar muito sua estrutura para melhorar o esporte. E espero que essa vaga olímpica desperte maior vontade pela seleção. E não falo somente dos meninos. Acho importante que os dirigentes, que são os que abrem as portas dos clubes, deixem fluir o basquete. Isso vai proporcionar maior quantidade de meninos, de garotos jogando basquete, e nessa base podemos encontrar mais gente de qualidade. É matemática. Agora, devemos aproveitar, e não ficar acomodados. Devagarzinho se pode continuar olhando para a frente, com muito comprometimento de todos os departamentos do basquete.

Você é detalhista, se preocupa com números desde o primeiro segundo até o final do jogo? É obcecado em tirar o máximo de cada um?

Eu me considero muito detalhista. Acho que não obcecado, porque a obsessão tira a criatividade. Devemos caminhar pelo limite, na linha que separa o perfeccionista do obcecado. Você entende quando digo isso? O jogador tem de usar a inteligência para administrar esse tipo de coisa. O basquete é um esporte em que nos detalhes, nas coisas benfeitas, você encontra as vitórias. Estou cobrando sempre muita, muita concentração, muita atenção. Eu fico bravo quando tenho de repetir duas vezes uma coisa, porque, se você está concentrado, motivado e tem comprometimento, só preciso falar uma vez. Agora, eu não tenho nenhum problema em repetir se um jogador me diz: “Eu não entendi, Rubén”. Não tem problema explicar várias vezes. Mas preciso saber que ele não entendeu. Não gosto que digam que sim se não entenderam, porque depois vão errar no jogo. Essa sinceridade, essa confiança é o que eu busco transmitir, para poderem falar quando devem, e serem corajosos em tomar decisões sem ter medo de errar. Errar é parte da aprendizagem.

Você formou um grupo disposto, dedicado e concentrado. Tem receio de tirar alguém para encaixar o Nenê, o Leandrinho? Mexer no grupo pode desestruturá-lo?

Primeiro: acho que é muito importante ter um grupo. Para mim, o grupo tem a ver com os gostos, com as pessoas se darem bem umas com as outras, saírem junto. Mas isso não quer dizer que atuem como uma grande equipe. Já houve grandes grupos que não atuaram como grandes equipes e grandes equipes que não atuaram como grupos. Ótimo seria ter um grupo que dê certo dentro de uma equipe… Você me falou de nomes específicos. Nenhum jogador e nenhum treinador estão acima da seleção brasileira. Eu, como treinador, os dirigentes, como dirigentes, vamos fazer o melhor possível para a seleção do Brasil. Ninguém tem vaga garantida nos Jogos. Quem entra é porque é o melhor para o time. Eu vou me apegar a essa decisão. E não estou falando de nomes.

Ninguém está garantido nem vetado em 2012?

"Sou detalhista. Obsessão tira a criatividade" (foto: Gerardo Lazzari)

Isso. É certo que estamos em outubro, eu não me pus a pensar nem na próxima convocação. Já vivi com outras seleções casos em que um cara teve de ficar pelo caminho para que outro ingressasse. Infelizmente, um treinador não pode lidar com sentimentalismo. Tem de ser objetivo, tomar decisões e arcar com as consequências dessas decisões. Senão, não pode ser treinador. Há muita polêmica antecipada. Horas depois de termos conseguido a vaga para Londres já se estava polemizando em relação a jogadores que haviam pedido dispensa, em vez de nos concentrarmos na conquista da vaga. Não acreditava que estavam me perguntando aquilo. Num momento especial, em que você vê que a semente está germinando bem, em vez de dar atenção a essa germinação, se dá a outra coisa. Se tem de ir um cara, vai; algum irá e outro não. E ponto.

Nenhum sul-americano jamais chegou à posição em que a Argentina se encontra na Federação Internacional de Basquete, terceira no ranking. O que levou o país a esse patamar?

Foram muitas variáveis. Na estrutura argentina, é enorme o número de clubes que jogam basquete. Existem milhares, de infantil a adulto. Então se constitui uma plataforma de quantidade de meninos e jovens que jogam basquete, de onde saíram Scola, Ginóbili, Oberto, Sánchez… Tantos talentos. Outra variável importante foi a criação da liga nacional, há mais de 27 anos (a liga no Brasil tem menos de três), que desde o início foi muito federal, equipes do norte, do sul, do leste, do oeste, criando um bom espelho para toda a garotada. E um último passo sem o qual, provavelmente, a Argentina não teria se tornado o que se tornou foi o passaporte comunitário, jogadores migraram para as melhores ligas do mundo. Então, jogavam semanalmente – e eu falei antes sobre a lei da oposição, da competitividade – contra os melhores jogadores da Fiba (Federação Internacional de Basquete).

O Brasil quer aproveitar a Copa e a Olimpíada para deixar um legado físico para as cidades. E quanto ao legado humano? Você vê algo sendo feito para estimular futuras gerações a praticar esporte?

Não tenho isso claro. Você pode fazer um estádio, uma quadra, um albergue, mas a verdadeira matéria-prima de todas as sociedades são as pessoas. E falo de crianças e adultos que fazem esporte. Oxalá essas estruturas se encham de meninos que joguem diferentes modalidades. Assim como o arquiteto vai planejar um estádio, que os especialistas em educação, em esporte, planejem como levar essa gente a ocupar os espaços. E não falo só de esporte profissional. Falo do esporte como agente da educação. Oxalá tenhamos habilidade para ter praças esportivas cheias de meninos.

Na Argentina, os outros esportes também sofrem com a concorrência com o futebol?

O futebol é outro universo, está em todas as partes, não tem concorrência. É um universo à parte de outras questões – sociais, psicológicas, financeiras –, do qual a gente vive, necessita. Mas, se formos inteligentes, podemos aproveitar o futebol dentro do eixo formador também, porque é um esporte belíssimo.

Você gosta?

Você pode fazer um estádio, uma quadra, um albergue, mas a verdadeira matéria-prima em todas as sociedades são as pessoas. Oxalá essas estruturas se encham de meninos que queiram fazer esporte

Gosto. Belgrano de Córdoba! Esse é o meu time.

É muito popular em Córdoba…

Em Córdoba, não, no país (risos).

Pelé ou Maradona?

Não vi muito o Pelé jogar. Acho que é diferente do Maradona, mas gostei muito do Pelé naquela grande equipe do Brasil no México em 1970. Acho que são tempos diferentes, jogadores diferentes. Eu vi a grande passagem de Maradona pelo Nápoli, quando vivi na Itália, e fiquei surpreso. Dizer que um é melhor que o outro é complicado.

E hoje é o Messi?

Messi é um jogador diferente, assim como, convenhamos, o Neymar é diferente. E temos de aproveitar que são do nosso tempo e ter o prazer de vê-los jogar.

No basquete brasileiro você vê surgindo também jogadores diferenciados? Vê uma fábrica de jogadores no Brasil?

Não gosto de falar de fábrica, é muito material. Digamos escola. Acho que o Brasil está enviando jogadores para diversas partes do mundo, Raulzinho, 19 anos, Rafa Luz, 19, Augusto Lima, 20. Alguns deles jogam na liga espanhola, a segunda mais importante do mundo, depois da NBA. Temos muitos nos Estados Unidos, alguns jogando em grandes universidades. Há jogadores, mas teríamos de ter muito mais.

Você vê a estrutura do basquete brasileiro sendo trabalhada para isso, os clubes estão caminhando para um sistema mais organizado ou ainda está uma bagunça?

Acho que estamos tentando ir devagar e em frente. Ainda falta. Precisa, primeiro, de uma estrutura que dê ao jogador uma qualidade de formação – que está devagar, mas está sendo boa –, e depois uma quantidade de competições por ano, para que ele possa evoluir. Estão tentando fazer alguma coisa, mas precisa mais. É preciso haver mais clubes praticando basquete.

Você consegue identificar se a paixão do jogador é pelo esporte ou pelo sucesso?

Isso é muito difícil, muito difícil, mas o caráter da pessoa se manifesta claramente pelas suas atitudes, ainda mais num jogo. Então você observa pelas atitudes quem tem na sua frente. Não que faça diferença se ele quer virar jogador profissional, ou se quer jogar na NBA, mas a atitude mostra, às vezes, qual é a intenção do jogador. Isso não tem nada que ver com a seleção nacional, mas esse fator também se inclui, querer bem ao seu país, respeitar a sua camisa, a sua bandeira. Quando batem à porta do menino para chamá-lo a servir a seleção, faz parte que ele vá feliz, com comprometimento, orgulhoso por ter sido convocado.

Você queria ser um jogador de basquete…

Você conjugou muito bem o verbo (risos). Eu quis ser, mas não consegui. Era muito apaixonado por jogar, mas era apenas regular. Tem uma anedota pessoal, muito engraçada. Eu era jogador, o número 11 ou 12, e sabem para onde vão os 11 e 12? Para a ponta do banco. Num jogo, o treinador não gosta de um jogador em quadra, troca. O que está ao seu lado no banco entra, e o que sai vai para o fundo (fim da fila). Sai um, e todo mundo se desloca para o lado. Dali a pouco outro, e todos se movem um lugar de novo. No começo do segundo tempo, chegou a vez do Magnano ao lado do treinador. Ele vira para mim, bate a mão aqui na minha perna e diz: “E agora? Quem ponho na quadra?” (risos) Era como se tivessem atirado em mim. E pensei: isso não pode continuar assim… Ou ele não acreditava em mim, como jogador, ou pensava que o meu futuro era virar treinador e já estava me consultando. Eu creio que era a primeira coisa…

Mas você provou que a segunda estava certa.

Isso foi importante, porque não deixei de lutar, outra coisa fundamental no basquete. Minha ideia não era ser treinador. Parei aos 27 anos para ser professor. Depois acabei pegando um clube, depois outro… Ah, tem outra anedota muito curiosa. Num treinamento de arremesso, o técnico pede para cada um arremessar mais ou menos da posição em que joga, e um cara senta-se no banco, pega a bola e “chuta” sentado. Perguntam: “O que está fazendo?” E ele: “Eu não jogo nunca mesmo, sempre estou sentado…” (risos) Meu começo foi assim. Mas tive bastante tranquilidade para tomar decisões em situações importantes da vida. No Pré-Olímpico, muitos argentinos torceram para o Brasil, porque torciam por mim. É incrível essa sensação.

A imprensa brasileira alimenta a rivalidade Brasil x Argentina. Você lida bem com isso?

Mas isso faz parte, desde o futebol, contanto que manejemos com tranquilidade, isso dá cores às coisas… Bem, se me dão licença, agora, como bom caipira que sou, vou fazer uma sesta, porque eu sem a sesta não posso viver.