O povo perde a paciência

No campo e nas cidades, os mexicanos se organizam para enfrentar a deterioração social trazida pela “guerra ao narco”, de Calderón e Obama

Mulher caminha durante marcha em Morelos (foto: Prometeo Lucero)

“Para vocês nos parecemos com baixas colaterais, números estatísticos?” A pergunta, que familiares das 50 mil vítimas da violência no México desde 2007 gostariam de fazer ao presidente­ Felipe Calderón, foi enunciada pelo poeta e ativista Javier Sicilia, principal porta-voz do Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade (MPJD).

Um fórum que marcou o primeiro diá­logo público do movimento com o presidente, em junho, deixou evidente a falta de vontade do governo Calderón de repensar a estratégia de encarar o combate ao narcotráfico como uma guerra – iniciada assim que tomou posse, em 2006. Por meio do acordo intitulado Iniciativa Mérida, o país tem recebido apoio financeiro e militar dos Estados Unidos para implementá-la. Incitado a pedir perdão à nação e às vítimas pela guerra que lançou, a postura do presidente foi impiedosa ao se desculpar por não haver protegido a vida das vítimas, dizendo-se “arrependido” por não ter enviado antes as forças federais e concluindo, taxativo: “Vou continuar combatendo os criminosos com as forças federais”.

O MPJD foi puxado por Javier Sicilia depois que, no último 28 de março, seu filho de 24 anos foi executado pelo narcotráfico, com outras seis pessoas – em crime com indícios de corrupção do aparato policial militar do país, já que a mensagem deixada junto aos corpos indicava uma retaliação por contatos feitos pelas vítimas com um disque-denúncia do governo. Desde janeiro aparecem nas cidades mexicanas manifestações de rua contra a guerra, além da campanha “No + Sangre” (chega de sangue), lançada por artistas e intelectuais. Mas foi a partir do envolvimento de Sicilia que se viu um rápido crescimento da mobilização popular.Javier Sicília México (foto: Marcela Sallas Cassani)

Em maio, uma marcha liderada por Sicilia, desde Morelos, seu estado natal, reuniu mais de 200 mil pessoas na Cidade­ do México
(foto: Marcela Salas Cassani)

Em maio, uma marcha liderada por Sicilia, desde Morelos, seu estado natal, reuniu mais de 200 mil pessoas na Cidade­ do México. Foi a maior manifestação política de rua no país desde os protestos contra a fraude nas eleições de 2006, quando Calderón venceu Lopez Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD), líder de uma coalizão de centro-esquerda, por 0,58 ponto percentual. Em apoio ao movimento encabeçado pelo poeta, milhares de indígenas zapatistas também marcharam em Chiapas, pela primeira vez em cinco anos. A situação chegou a tal ponto que as esquerdas, e até parte da direita do país, sublimaram suas diferenças e se uniram contra a violência da “guerra ao narco”.

Segundo dados de 2011, no México estão 12 das 49 cidades mais violentas do mundo – a maioria no norte do país. Ciudad Juárez, na fronteira com a cidade­ americana de El Paso, Texas, está no topo da lista pelo terceiro ano consecutivo, com 229 assassinatos para cada 100 mil habitantes. “Tudo piorou desde que chegaram o Exército e a Polícia Federal, porque eles também estão envolvidos nos crimes, nos sequestros, nos roubos”, afirma Guadalupe Apodaca, tia de Patricia Jazmín Ibarra, desaparecida em Ciudad Juárez quando se dirigia a uma entrevista de emprego. Guadalupe esteve entre milhares de pessoas que receberam caravana do MPJD em junho. A manifestação percorreu algumas das regiões mais críticas do país, a fim de compor um pacto nacional para combater a violência.

Manifestação México (foto: Clayton Conn)Campo armado

Não é só nas grandes cidades que o povo mexicano se mobiliza contra as consequências da militarização. Em Michoacán, um dos estados de atuação mais forte do narcotráfico, no sudoeste do país­, onde predomina o conhecido cartel Família Michoacana, comunidades indígenas e camponesas estão se organizando para enfrentar a violência.

No campo, as manifestações contra a violência têm de ser anônimas. O povo teme o narcotráfico e os militares
(fotos: Clayton Conn)

A demanda popular não é contra o combate ao narcotráfico em si, mas por uma política de segurança eficiente. “O senhor se lançou à guerra com instituições podres, que não dão segurança à nação, com alto grau de impunidade. protesto méxico (clayton conn)

Por que não reconhece humildemente que também podem ser feitas outras coisas, além de alimentar essa máquina policial e militar?”, perguntava Sicilia a Calderón.

Javier Sicilia alertou para o risco de proliferarem pelo país experiências como as da localidade de Cherán. Em 15 de abril, uma comunidade purépecha resolveu em assembleia pegar em armas para enfrentar um grupo de madeireiros que já devastou ilegalmente 80% dos 20 mil hectares de bosque do território indígena, com apoio do crime organizado.

“Já denunciamos sequestros, extorsões e ameaças, e não investigaram nada. Por isso, nossa paciência se esgotou. Cansamos de baixar a cabeça, de apenas ver passar centenas de caminhões carregados com nossas árvores e não dizer nada, por medo. Agora, não mais”, conta um indígena, que teme se identificar. A ronda­ comunitária tem total apoio dos quase 20 mil moradores de Cherán. O custo da resistência é alto: três indígenas foram mortos nos três primeiros meses de mobilização cidadã.

A comunidade de Ostula, no município de Aquila, no mesmo estado, é outra que sofre com as ofensivas de grupos do narcotráfico. São mais de 19 mil hectares, que abrigam 23 povoados de indígenas nahua. Em 2009, eles recuperaram mais de mil hectares de terra ilegalmente ocupados, em mais de 40 anos, por grupos de mestiços.

De lá para cá, resistem aos mais diversos tipos de pressão por habitar um território estratégico não só para o narcotráfico, mas também para o governo, por suas ricas jazidas de ferro e ouro e pelo potencial turístico. A guarda comunitária de Ostula conta com quase 500 integrantes. “A delinquência não está apenas nos ameaçando, está nos assassinando, sequestrando nossa gente, nos roubando. Quanto à presença militar, como não é efetiva para deter esses grupos, passa a ser uma ameaça a mais”, conta um dos membros da guarda, também pedindo anonimato. Nos primeiros sete meses de 2011, chegou a 16 o número de indígenas assassinados­ em Ostula.

Exemplos como os de Cherán e Ostula buscam inspiração em outras comunidades indígenas do país que, há muito tempo, se organizam nesse sentido. É o caso da Polícia Comunitária, no estado de Guerrero, formada por indígenas mixteco e tlapaneco, além de mestiços.

Criada em 1995, a Polícia Comunitária apareceu em um contexto marcado por forte desrespeito aos direitos humanos, entre homicídios, assaltos nas estradas e violações das mulheres na região. Além de criar a própria polícia, na mesma época, as comunidades resolveram montar um sistema de Justiça comunitária. Atual­mente, o corpo policial conta com cerca de 700 membros, com atuação em nove municípios da região, atendendo 65 comunidades e 100 mil habitantes. 

Nesse estado, a principal ameaça vem das forças oficiais do poder público. Não são poucos os casos em que o Exército age para ameaçar defensores dos direitos humanos e romper o tecido social das comunidades. “Ao contrário da Polícia e do Exército, a Polícia Comunitária é bem-vista, porque nasceu do povo, não recebe salários, presta serviço e tem compromisso com o povo. Já o Estado utiliza a força pública para reprimir ou intimidar os movimentos que se formam”, conta Cirino Placido Valerio, um dos fundadores do movimento em Guerrero, estado vizinho a Michoacán.

Mais ao sul, no estado de Chiapas, a “guerra ao narco” não tem espaço, por enquanto, mas a militarização que hoje envolve quase todo o país é mais antiga, vem desde os anos 1990. Ali está o exemplo mais conhecido de governo autônomo e de autodefesa indígena, inspirador dos movimentos sociais do México e de todo o mundo, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). “A guerra (do governo) em Chiapas é uma guerra à parte. É contra os zapatistas”, afirma Hermann Bellinghausen, jornalista do diário La Jornada que acompanha há 17 anos os conflitos na região.

Pré-campanha

Os indígenas e camponeses se viram como podem, o MPJD tenta articular as diversas lutas para frear a violência, e em meio a isso tudo o país está em clima pré-eleitoral – o mandato presidencial no México é de seis anos, e as eleições serão em julho de 2012. O PAN, de Felipe Calderón e de seu antecessor, Vicente Fox, terá muito trabalho para superar o favorito nas pesquisas, Henrique Peña Nieto, do PRI – partido conservador que governou o México por mais de meio século.

Enquanto isso, a sociedade organizada teme um golpe, que pode chegar por meio da Lei de Segurança Nacional, atualmente em discussão no Congresso. A nova legislação, segundo o MPJD, pode legitimar o “estado de guerra” e fragilizar ainda mais o estado de direito e as garantias individuais.

“Legalizar a presença permanente das Forças Armadas em funções policiais teria graves implicações na vida cotidiana de todas as comunidades do país”, aponta comunicado do movimento, lançado em agosto. “A nova lei é repressiva e só ataca os efeitos da delinquência por crer que, ao dar maiores atribuições às Forças Armadas, mais salários, mais armamentos, terminará o problema do crime organizado. Isso é falso, já que em nenhum caso visa às causas que o originam.”

Com informação do site Desinformémonos