Alerta vermelho

O assassinato de um cacique dos Guarani-Kaiowá, maior grupo indígena do país, é só um prenúncio de tragédias maiores, caso o Estado não tome providências urgentes

Além do assassinato de Nísio, três crianças continuam desaparecidas. (Foto: Maria Pena)

Era uma tarde de domingo, e a comitiva seguia pela estrada vicinal, em Iguatemi (MS). À frente, os carros da Fundação Nacional do Índio (Funai). Em seguida, convidados da sociedade civil. Mais atrás, dois ônibus com quase cem lideranças indígenas. Os homens nas caminhonetes portavam câmeras e fotografavam tudo e todos, alucinadamente. E, segundo relatos dos indígenas, gritavam: “Vamos queimar esses ônibus com índios! Índios vagabundos! Ficam invadindo fazendas”. “Ninguém pode com a gente! Nós mandamos aqui. Vai acontecer do jeito que nós queremos, nunca vamos deixar os índios nem a Funai invadir fazendas!”

No cruzamento da estrada vicinal com a rodovia, a equipe da Força Nacional de Segurança Pública que acompanhava a comitiva abordou os homens, identificou-os e revistou as caminhonetes. Eles seguiram arrogantes. Um deles falava de dedo em riste com uma pessoa da comitiva. Isso até descobrir de quem se tratava. Era o secretário de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, Paulo Maldos. Depois de saber, os homens se contiveram.

A cena aconteceu em 27 de novembro, quando Maldos visitou o acampamento indígena de Pyelito Kue-Mbarakay. Desde agosto, os Guarani-Kaiowá do grupo resistem à beira de uma estrada vicinal, perto de onde suas famílias foram expulsas décadas atrás. Hoje, esses tekoha (em guarani, algo como “o lugar onde se pode viver do nosso jeito”) são fazendas que pertencem a gente como os homens das caminhonetes – entre os quais estavam, segundo os membros da comitiva, o prefeito, José Roberto Arcoverde (PSDB), e o presidente do sindicato rural da cidade, Márcio Margatto.

Os indígenas do acampamento têm sido alvo de constantes ataques de homens armados com carabinas calibre 12, com balas de borracha. Idosos e crianças já saíram feridos. No mesmo local, em tentativa anterior de retomada, em 2009, além de várias pessoas terem ficado com braços e pernas fraturados, desapareceu um adolescente do grupo. Maldos chegou a dizer aos fazendeiros que eles poderiam ser responsabilizados caso ocorresse novamente qualquer problema com os indígenas. Mas a presença de um representante do mais alto órgão do Estado brasileiro não bastou para frear as agressões.

Fazendeiro é a lei

Um dia depois da visita, chegava às lideranças da Aty Guasu, o movimento político guarani-kaiowá, a denúncia de que homens de motocicleta tinham voltado ao local, disparando tiros e ameaçando-os. “Os fazendeiros são a lei nessa região. O Estado brasileiro não é soberano nesse território”, diz o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Buzatto. Ele não usa meias palavras para descrever a situação no sul do estado: “Esses senhores controlam forças paramilitares, passam por cima do Estado de Direito”.

O método de repressão contra o grupo em Iguatemi é o mesmo que vem sendo aplicado em toda a região dos Guarani-Kaiowá. Em 18 de novembro, na área conhecida como Guaiviry, em Aral Moreira, foi morto o líder político e religioso Nísio Gomes. Também foram levadas três crianças, que seguem desaparecidas. Segundo a comunidade, o ataque foi feito nos mesmos moldes: dezenas de homens em caminhonetes usando armas pesadas e balas de borracha (além de projéteis comuns). “O método deles lembra o da Ku Klux Klan”, compara um profissional que atua em ações indigenistas na região, mas prefere não se identificar.

O caso de Guaiviry, no entanto, é apenas um entre dezenas. Só a ponta de algo muito maior. Quase metade do 1 milhão de indígenas brasileiros está fora da Amazônia, espremidos em pequenas porções de terra no Nordeste, Sul e Centro-Oeste, que somam pouco mais de 2 milhões de hectares. Entre esses povos, os Guarani-Kaiowá são os que vivem, hoje, a situação mais desesperadora. Não que seus problemas sejam muito diferentes dos enfrentados pelos demais povos, mas sim pela escala.

Iguatemi-MS (Foto: Maria Pena)
Iguatemi-MS (Foto: Maria Pena)

A presença de Maldos na região se devia ao anúncio da criação de um comitê interministerial que vai coordenar as políticas públicas aplicadas aos Guarani-Kaiowá, cuja situação é reconhecida pelo governo como um dos mais graves casos de violação de direitos humanos no país. O grupo hoje chega a 45 mil pessoas, confinadas em somente 42 mil hectares de terra. As demarcações estão atrasadas em função da resistência dos fazendeiros.

Terra manchada
Entre 2003 e 2010, foram assassinados mais indígenas em Mato Grosso do Sul do que em todo o resto do país: 250, contra 202. Em outras mazelas, essa desproporção se repete e às vezes se amplia: 190 tentativas de assassinato (111 no resto do Brasil), 49 atropelamentos (ante 50), 176 suicídios (30). Os dados são de uma recente pesquisa do Cimi.

O próprio governo brasileiro incentivou a ida de colonos não indígenas para a região, sobretudo entre os anos 1940 e 1970, de modo que boa parte dos atuais ocupantes alega ter documentos de suas terras.

A situação é tão enrolada que uma comissão do Conselho Nacional de Justiça estuda uma saída para possibilitar a indenização dos fazendeiros pela terra, e não somente pelas benfeitorias, como é praxe. A Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul também está discutindo a criação de um fundo para possibilitar esse tipo de pagamento.

Para que não se repitam tragédias como a de Nísio, espera-se celeridade em todas essas discussões. Por enquanto, o público segue com a impressão de estar vendo mais uma reprise do longa-metragem Terra Vermelha (2008), seguindo um roteiro que já completou 28 anos, com a morte de Marçal de Souza, em 1983.

Já em Guaiviry, a família de Nísio é mais uma que luta para encontrar ao menos o corpo. “O que sempre chamou a atenção em Nísio e Odúlia (sua mulher, morta há cerca de três anos) foi a persistência deles”, conta o antropólogo Rubem Thomaz Almeida, que conhecia Nísio desde 1976. Já é a terceira vez que a família deles tenta retornar para aquele local. Quando o corpo aparecer, a tendência é que, como tem acontecido em vários casos recentes, os Kaiowá peçam para enterrar Nísio ali mesmo, no local pelo qual ele deu a vida.