Volta ao mundo em sete sabores

Pessoas que encontraram refúgio no Brasil trocam receitas de pratos tradicionais de seu país de origem e celebram sua acolhida compartilhando sua cultura

O peruano Carlos: a gastronomia é linguagem universal, facilita o entendimento e faz lembrar “histórias bonitas e emocionantes” (Foto: Jailton Garcia)

Carlos Ernesto Durand Llanos lembra-se nitidamente das sensações que o invadiram quando saboreou pela primeira vez um prato brasileiro, em um restaurante no Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo. Era 1989, e o prato, um tutu à mineira. “Eu sempre me lembro desse prato. Muy rico, um sabor que representa o Brasil”, diz o peruano de sotaque carregado.

Para ele, a gastronomia é uma poderosa arma para unir as pessoas, independentemente de classe social, gênero, raça ou país de origem. E foi a comida que reuniu, de agosto a outubro, 50 refugiados no projeto Encontro de Sabores, organizado pelo Sesc São Paulo, com apoio da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) e da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo.

Peruanos, colombianos, iraquianos, sérvios, congoleses, angolanos e nepaleses revisitaram em quatro oficinas receitas tradicionais de seu país de origem, além de histórias, aspectos sociais e culturais de cada grupo. Está previsto para o início de 2012 o lançamento de um livro com as receitas e informações sobre proteção a refugiados.

Maria Cristina Morelli, coordenadora do Centro de Acolhida para Refugiados da Cáritas São Paulo, acredita que esses encontros promovem a desmistificação do refúgio e a integração dos que chegam. “A palavra refugiado causa estranheza e até medo nas pessoas, pois está relacionada a alguém que está fugindo e, na compreensão delas, se fugiu é porque deve – o que em nada corresponde à verdade. Os encontros de gastronomia aproximam a população em geral da cultura de outros países.”

Lembranças à mesa

Na oficina sobre a culinária peruana, Carlos preparou o tradicional ají de gallina – um frango apimentado –, prato saboreado no Peru, geralmente, em ocasiões especiais. “Foi uma forma de oferecer aos outros refugiados um presente do meu país, para que a gente se entenda nessa linguagem universal que é a gastronomia.”

O ají de gallina ainda faz parte da vida de Carlos mesmo depois de 22 anos no Brasil. Das memórias mais remotas das festas de família no Peru às reuniões em seu apartamento no bairro da Saúde, zona sul da capital paulista. “Aqui no Brasil sempre o fazemos, para comer e conversar, lembrar das coisas que aconteceram na minha terra. Penso que a gastronomia facilita contar histórias bonitas e emocionantes.”

É certo que violência não é assunto que caia bem durante a refeição, mas era isso que o peruano e os outros refugiados tinham em comum nos encontros gastronômicos: todos passaram por situações tão ameaçadoras no próprio país que foram obrigados a procurar fora de casa um porto mais seguro para viver.

Carlos morava e trabalhava no distrito de Capiri, na província de Satipo. Era chefe de produção de uma multinacional fumageira e vivia bem com sua mulher e quatro filhas, até que um grupo terrorista passou a ameaçar, matar e esquartejar moradores da região. Deixaram tudo e vieram para o Brasil. “Há 15 anos, eu não poderia falar disso porque as minhas experiências ruins estavam muito vivas. Eu trabalhava numa empresa grande, ganhava muito bem no Peru, minha família estava bem, só que a violência me tirou de lá. Mas agora posso ver o lado positivo. Hoje, eu e a minha família temos uma vida maravilhosa aqui”, diz o professor de espanhol.

Sua única reclamação é não encontrar no Brasil os temperos típicos de seu país. Na receita do ají, por exemplo, a pimenta amarela e o leite evaporado tiveram de ser substituídos por páprica e leite comum. “Aqui não tem os condimentos peruanos. Gostaria que vocês conhecessem minha terra pela gastronomia, que fossem vendidos produtos num lugar público, de forma não elitizada. O que vocês sabem do Peru? Que tem narcotráfico e muita violência? É preciso quebrar esses estereótipos, e foi isso que nós, refugiados, fizemos nas oficinas.”

E com muita cor e sabor. Os iraquianos prepararam o quibe de arroz (kibe halab); os angolanos, feijão com óleo de palma; os sérvios, chucrute recheado (sarma); os nepaleses, frango ao curry (morg korma); os refugiados da República Democrática do Congo, bacalhau frito com folha de mandioca (pondu); e os colombianos, uma sopa que chamam de ajiaco.

Depois dos encontros, Carlos afirma que se aproximou mais dos africanos e colombianos. “Fomos unidos pelas receitas. Um prato de comida é um caminho para aprender. Antigamente era costume se reunir em torno da mesa, e isso está se acabando. A comida pode fazer esse link entre as pessoas, para que se unam e façam coisas maiores.”