Fé faz bem

Pesquisas relacionam a espiritualidade à melhor recuperação das pessoas durante uma doença. No entanto, ainda não há preparo para esse abordagem no Brasil

Numa época em que o contato com doentes e soldados era inadmissível para damas da corte, a inglesa Florence Nigthingale (1820-1910) foi para a Guerra da Crimeia, na Turquia, em 1854, e levou junto 38 enfermeiras voluntárias. Superou a hierarquia dos hospitais militares, que proibia mulheres e a assistência a soldados rasos, e introduziu métodos de higiene. Mais que referência para a enfermagem, Florence tornou-se conhecida por percorrer os leitos dos feridos, para os quais sempre tinha palavras de conforto e mensagens de fé, e por reduzir notavelmente a mortalidade.

Daquela era de desafios aos costumes até os dias de hoje, a medicina evoluiu muito, e a dimensão espiritual dos cuidados aos enfermos também. Esta, antes atrelada à religião, está hoje inserida numa perspectiva de atendimento voltada para a compreensão da relação entre saúde e espiritualidade. Tal elo, aliás, é cada vez mais investigado pela ciência. E há pouco mais de duas décadas a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o aspecto espiritual ao conceito de saúde, que já englobava a dimensão psíquica e a social.

“De fato, a fé é um dos milagres da natureza humana”, afirma o médico geriatra Giancarlo Lucchetti, da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Pesquisador da espiritualidade na prática clínica, Lucchetti conta que há diversos estudos nessa direção, concluídos e em andamento. Num banco de dados mantido pelos institutos de saúde do governo norte-americano, com pesquisas de várias partes do mundo, há mais de 41 mil referências ao termo espiritualidade na saúde – número equivalente às encontradas para atividade física.

Segundo o pesquisador, a maioria dos trabalhos aponta menor incidência de depressão, ansiedade e suicídio e melhor qualidade de vida e bem-estar geral entre aqueles que, de alguma maneira, adicionam ao receituário de suas terapias o sentimento de fé.

“Alguns pesquisadores encontraram menos casos de pressão alta e de mortes por causas cardiovasculares entre aqueles que praticam sua fé”, afirma Lucchetti. A explicação seria a redução do estresse mental, que atua no sistema cardiovascular, imunológico e endocrinológico, ativando as proteínas produzidas por células do sistema de defesa do organismo e substâncias envolvidas no processo inflamatório. Ou seja, as preces e meditações em busca do sagrado e da força interior diminuiriam o estresse e aumentariam o controle dos sintomas.

Um estudo do Programa de Reabilitação Cardíaca da Faculdade de Medicina de South Western, na Carolina do Norte (EUA), entre outros, constatou que pessoas mais espiritualizadas estariam menos sujeitas a inflamação e doença coronariana. E outros semelhantes concluíram que a fé estaria relacionada a um sistema imunológico mais alerta contra o câncer de mama. Entre os pacientes de cirurgia cardíaca, os pesquisadores identificaram menor estresse e melhor saúde mental.

As pesquisas sinalizam ainda o desejo das pessoas, sobretudo as hospitalizadas, de uma abordagem espiritual associada ao tratamento médico. Uma delas, do Centro de Espiritualidade, Teologia e Saúde da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, revela que, dos 230 pacientes com câncer avançado entrevistados, 88% afirmaram que a religião foi, pelo menos de alguma forma, importante em sua vida.

Fisioterapeuta Jaqueline Diniz (Foto: Regina de Grammont)
Fisioterapeuta Jaqueline Diniz (Foto: Regina de Grammont)

“Os pacientes hospitalares têm necessidades espirituais. Assim como tratamos a dor física, temos de tratar a espiritual”, defende o geriatra Franklin Santana Santos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Para a fisioterapeuta Jaqueline Diniz, pacientes respondem melhor ao tratamento quando há uma abordagem espiritual

Segundo ele, há trabalhos que mostram que cerca de 80% dos pacientes declaram se sentir mais confiantes se o médico fizer uma prece com eles, por exemplo. “Poucos profissionais de saúde abordam o paciente pelo viés da espiritualidade por falta de capacitação”, diz.

Perguntas sem resposta

O que ainda não se sabe ao certo é o momento considerado ideal para questionar, com naturalidade, o histórico espiritual do doente. Há ainda desconforto com relação ao tema, receio de impor pontos de vista religiosos e suposição de que o conhecimento sobre fé é irrelevante ao tratamento, e por isso não é papel do médico. Essas barreiras, segundo o geriatra, são quebradas assim que o médico se aprofunda no tema e se desvencilha dos próprios preconceitos. “No caso de pacientes não religiosos, em vez de direcionar o foco para a espiritualidade, o médico pode perguntar como convivem com a doença, o que lhes dá significado e propósito à vida e sondar quais crenças culturais podem ter impacto no tratamento”, afirma Santana Santos.

Enquanto no Brasil apenas 6% dos cerca de 150 cursos de Medicina têm a disciplina Espiritualidade na grade curricular, nos Estados Unidos o número é crescente. De menos de cinco escolas médicas em 1993, saltou para mais de 100 nos últimos 15 anos. A disciplina é vinculada inclusive aos programas de residência médica.

Em algumas, como na Universidade de Massachusetts, é compulsória. Por meio de aulas teóricas e práticas, o residente aprende, entre outras coisas, princípios básicos das religiões e a participar de atendimentos com líderes da pastoral local. Seguindo a tendência, 59% das faculdades de Medicina britânicas já oferecem disciplinas relacionadas.

Autor de livros sobre cuidados paliativos, Santana Santos é de opinião que os profissionais, em especial da enfermagem, devem ajudar também a aliviar o sofrimento espiritual de pessoas com doença incurável e em estado terminal. “Aqui não estamos mais falando de doenças, e sim da morte. É preciso repensar os cuidados paliativos sob a ótica da espiritualidade”, afirma, lembrando que há males que não causam dor, como o Alzheimer, mas trazem sofrimento psicológico e espiritual. “É como se isso não tivesse importância nenhuma”, aponta.

Entretanto, nem sempre a saúde é beneficiada pela fé. A professora Érika de Cássia Lopes Chaves, da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alfenas (MG), argumenta que a religiosidade – e não a espiritualidade – pode ter efeitos adversos quando usada para justificar comportamentos negativos. “É o caso do paciente que é levado a crer que sua doença é uma possessão demoníaca ou castigo divino; de práticas religiosas usadas para substituir cuidados médicos tradicionais ou para induzir a culpa, vergonha, medo ou para justificar raiva e agressão”, explica. “Ou quando é excessivamente restritiva e limitante, causando o afastamento daqueles cujo comportamento conflita com os padrões religiosos seguidos.”

Apesar dos avanços no estudo da relação entre espiritualidade e saúde, há ainda muitas perguntas sem resposta. Falta, por exemplo, explicar em detalhes os mecanismos biológicos que envolvem o fenômeno e, sobretudo, mensurar seu efeito terapêutico.

De leito em leito

Uma vez por semana, a paulistana Edna Maria Molnar, 54 anos, passa o dia no Hospital São Paulo, na capital paulista. Percorre quartos, enfermarias, corredores, berçários, emergências e unidades de terapia intensiva. Voluntária há 15 anos da capelania evangélica que atua no hospital, Edna leva aos doentes e acompanhantes palavras de confiança e consolo, um abraço, um toque, ou faz preces com quem lhe pede. “Convivi com pacientes que se recuperaram de comas e também com aqueles que não sobreviveram, mas viveram seus últimos dias de maneira serena”, conta Edna.

O pastor batista Antonino Pinho Ribeiro, autor do livro Há Graça no Sofrimento?, coordena a Capelania Evangélica do Hospital São Paulo desde sua criação, há 21 anos. O serviço atua em conjunto com a direção médica da instituição, prestando assistência espiritual, emocional e social a pacientes, familiares e funcionários, respeitando a individualidade de cada um, sem distinção de credo, raça, sexo ou classe social. “Os voluntários são treinados e não podem ter posição religiosa extremada, que possa comprometer o trabalho”, destaca o capelão. “Graças ao acompanhamento e atenção dos voluntários, muitos pacientes ficam mais tranquilos e respondem melhor ao tratamento”, atesta a fisioterapeuta Jaqueline Spoldari Diniz.

No Instituto de Infectologia Emílio Ribas, de São Paulo, as capelanias católica, evangélica e espírita conduzem atendimento semelhante. Diariamente os voluntários visitam pacientes nos leitos e dão apoio a familiares. Morador de Boituva (SP), o aposentado Sílvio Ribas Sobrinho integra o grupo há 21 anos. “Quem não tem espírito de família, de cuidar do outro, não permanece no serviço, em que mais de 70% das pessoas internadas são portadoras de HIV, condição ainda carregada de estigma e preconceito”, conta.

Coordenador dos três serviços de assistência religiosa oferecidos no Emílio Ribas, que inclui participação nos comitês de ética em pesquisa, humanização e cuidados paliativos, o padre João Inácio Mildner explica que a missão é dar força ao doente para enfrentar seu problema de saúde. “Por meio da amizade que desenvolvemos, trabalhamos para ajudá-lo a se recompor e para conscientizá-lo de que é agente de seu tratamento”, ressalta o religioso, que admite muitas vezes sentar-se ao lado dos voluntários para chorar a perda dos amigos que fizeram ao longo da jornada no hospital.

A assistência religiosa é assegurada pela Constituição e pela Lei 9.982/2000, que garantem aos religiosos o acesso aos hospitais públicos e privados. Suas atividades devem obedecer a normas internas de cada instituição. A capelania hospitalar no Brasil começou em 1858, com os católicos, para atendimento a feridos de guerra. Estima-se que o serviço seja mantido em apenas 30 hospitais brasileiros.