Civilização de riscos

Diante de eventos naturais cada vez mais intensos – agravados por ações humanas e tragédias –, o poder público reage. Mas riscos podem levar 20 anos para serem eliminados

Bombeiros atuam no deslizamento em Niterói (RJ): barracos erguidos sobre aterro sanitário (Foto: Vladimir Platonow/Agência Brasil)

A família de Adelino Torres de Oliveira viu a casa ir com a lama, na noite de 23 de novembro de 2008, em Blumenau (SC). “O chão está derretendo como sorvete”, descreveu o governador do estado na época, Luiz Henrique. A rua de Adelino no bairro da Velha desapareceu. “Vimos a lama levando tudo: garagens, um pasto, casas, tudo”, conta. Vizinhos morreram dormindo. Outros saíram assustados, com a roupa de dormir, e nunca puderam voltar. Adelino foi salvo pelo “griteiro” da vila. Da atual residência, alugada, ele observa o morro onde morou e planeja a mudança para outra cidade. “Gosto daqui, mas não suporto mais passar por isso.”

A ocupação de áreas que deveriam ser preservadas, como topos de morro e margens de rios, é comum em diversos municípios brasileiros e contribui para a formação de áreas de risco. “Nossa sociedade é responsável por parte do processo ao ocupar as encostas”, diz a professora Claudia Siebert, da Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb) e doutora em desenvolvimento urbano e regional. Esses mesmos fatores causaram mais de 900 mortes na região serrana do estado do Rio, em 2011, e contribuíram para a inundação sem precedentes que atingiu São Luiz do Paraitinga (SP), em 2010, quando Angra dos Reis e Niterói (RJ)também foram vítimas de escorregamentos de terras. A lista de desastres naturais agravados pela ação humana inclui ocorrências em Alagoas, Pernambuco, Piauí, Espírito Santo. São Paulo, a maior cidade brasileira e sexta maior do mundo, não passa uma temporada de chuvas sem enchentes.

Para Claudia, o problema central é desafiar os limites que a natureza impõe ao desenvolvimento. Desde a colonização da região de Blumenau por europeus existe a ideia de que desmatar é desenvolver. “Nas cartas dos colonizadores no século 19 a mata aparece como inimigo a ser vencido pela civilização”, afirma. Hermann Bruno Otto Blumenau deu início à cidade à beira do Rio Itajaí-Açu para atender à necessidade da colônia de transporte fluvial. Hoje, os municípios que mais crescem e recebem investimentos empresariais são os que não sofrem com alagamentos. “Cidades que alagam têm ritmo de crescimento mais lento”, observa a professora.

Em Teresópolis (RJ), Neliane de Paula Borges foi surpreendida na madrugada de 12 de janeiro de 2011. Acordou com o choro da filha pequena e passou a ouvir sons de um barranco próximo desmoronando, vizinhos gritando. Casas de seus familiares foram atingidas em diversas partes da cidade durante dois dias de chuvas. Três parentes morreram. Da antiga casa, até hoje interditada, só restaram documentos. “É uma dor terrível ver desabar o lugar onde você cresceu.”

Os escorregamentos de terra nas cidades da região serrana são casos clássicos de evolução da superfície do terreno, de acordo com o presidente da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos, Arsenio Negro. “Foi uma conjunção de eventos intensos de chuva em um terreno altamente propenso, de declividades elevadas, solos de baixa resistência, rochas alteradas – ou seja, um processo de mudança de topografia. O quanto a ocupação urbana acelerou esse processo não se sabe. O que sabemos é que a ocupação naquele lugar não era para existir.”

Os problemas da ausência de planejamento urbano são agravados pelos eventos extremos. “É difícil dizer se é mudança climática, mas vivemos uma tendência de aumento desses eventos, sejam secas, sejam chuvas muito acima da normalidade em quantidade e intensidade”, diz o geólogo Eduardo Soares Macedo, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).

Ao analisar o regime de chuvas em São Paulo de 1933 a 2005, o pesquisador Shigetoshi Sugahara, do Instituto de Pesquisas Meteorológicas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), identificou aumentos tanto na intensidade como na frequência. Uma das hipóteses para essa evolução das precipitações é o efeito de ilha de calor, causado pela redução da arborização e a excessiva impermeabilização do solo da cidade. “A água só vai parar nos lugares mais baixos”, diz.

 

Réveillon inesquecível

No Ano-Novo de 2010, as comemorações em São Luiz do Paraitinga deram lugar ao desespero. Algo semelhante só teria ocorrido em 1863. Igreja matriz, grupo escolar, mercado, lojas, casarões históricos foram invadidos pelas águas do Rio Paraitinga. “Vi a minha identidade cair. Meus filhos, meu pai, meu avô foram batizados naquela igreja”, lembra o aposentado Luiz Tolosa Gouveia, de 77 anos. Seu Luiz morava em um casarão de 1870 e só pôde deixar o local na noite de 1º de janeiro, quando praticantes de rafting conseguiram retirar a família Gouveia. A casa permanece interditada.

As enchentes não são novidade na cidade construída em torno do rio. A mão do homem aparece na ocupação indevida de áreas que multiplicam os riscos. Nos últimos anos, donos de construções à direita do rio fizeram um soerguimento de suas áreas, o que empurrou mais água para o lado oposto. O IPT também apontou como causas o assoreamento dos rios na região, formação de barreiras naturais e artificiais. Para o professor Carlos Murilo Prado Santos, da Universidade de Taubaté, a enchente tem fatores geográficos, históricos, urbanísticos e climáticos.

Transtornos como os vividos ali se repetem em dezenas de cidades do estado mais rico do país, que não foge à regra de ocupação urbana desordenada, agravada pelo despreparo para lidar com desastres como enchentes e deslizamentos. Faltam investimentos em prevenção e gestão de situações emergenciais. Dados do Sistema de Acompanhamento da Execução do Orçamento indicam que o governo do estado de São Paulo deixou de investir R$ 163 milhões, de 2000 a 2010, em programas de combate a enchentes. Outros R$ 119 milhões deveriam ter sido direcionados a obras na calha do Rio Tietê e R$ 79 milhões, a piscinões.

A situação se repete. Até 23 de novembro de 2011, foram investidos apenas 17% dos R$ 81 milhões destinados aos piscinões e 2,5% dos R$ 48 milhões previstos para estudos de macrodrenagem. São ações de prevenção não executadas por opção do gestor. A Defesa Civil deixou de receber R$ 6,7 milhões. Para o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis, o baixo investimento em capacitação, equipamentos e no sistema de alerta é grave. Ele adianta que, se a quantidade de chuvas que caiu em São Paulo no ano passado se repetir neste verão, novos episódios de deslizamentos e inundações acontecerão.

Na capital, o problema da não execução do orçamento previsto para ações de prevenção já levou à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal, em 2010. O relatório identifica privilégio a obras “novas, de maior visibilidade e suposto efeito político-eleitoral”, enquanto serviços de manutenção urbana são “executados sem programação e sem controle para a obtenção de resultados próximos à nulidade”.

Em 2011, o investimento em prevenção de enchentes permaneceu baixo, segundo dados do Sistema de Orçamento e Finanças (SOF). A administração municipal aplicou em torno de um terço do que estava previsto para a limpeza de córregos e piscinões e ações da Defesa Civil. O geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos observa que “não há registro de nenhuma experiência exitosa” no combate às enchentes na metrópole paulista.

 

Lição não aprendida

O sofrimento e as perdas vividas nas catástrofes de Blumenau e na região serrana do Rio podem se repetir. A professora Claudia Siebert, da Furb, alerta para o mito em torno da superação dos desastres, que aumenta o potencial de voltarem a acontecer com mais força. A população acostumada às enchentes logo reconstrói os bairros e muitas vezes imita o modelo anterior. “Há recuperação de lugares que deveriam ter sido abandonados. Temos de ter a humildade de entender que a natureza deseja retornar o que é dela.” Além da reconstrução em locais inadequados, a especialista aponta obras subdimensionadas, problemas estruturais e aterros em áreas inundáveis. Estes se tornaram alternativa para aumentar o nível dos terrenos e evitar futuras enchentes, mas transferem o risco a outras áreas. “Se antes um local sofria alagamento quando o nível do rio atingia 12 metros, agora ocorre antes.”

A ocupação de espaços que deveriam ser preservados tem relação com a especulação imobiliária. A incapacidade das pessoas de pagar para morar em locais seguros cria e mantém áreas de risco e fomenta desastres nada naturais. Claudia observa que, da extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH) em 1986 até a criação do Ministério das Cidades em 2003, o país ficou 17 anos sem uma política habitacional. “A população de baixa renda ocupa onde o mercado rejeita”, define. Em sua opinião, uma política séria para evitar deslizamentos e enchentes passa pelo reconhecimento dos limites do homem e pelo respeito à natureza. Mas também depende de uma política habitacional atenta à população menos favorecida, de cidades mais inclusivas e planejamento urbano regional. Os esforços para que as chuvas sejam apenas chuvas, não mais desastres, são também uma ação humana possível.

 

Colaboraram João Peres e Thalita Pires