Selton, uma criança

Homenageado na Mostra de Cinema de Tiradentes, Selton Mello celebra 30 anos de carreira e sua grande paixão, o cinema

Foto: Leo Lara/Universo Produção/Divulgação 15ª Mostra de Tiradentes

Selton Mello tem fama de quem assobia e chupa cana ao mesmo tempo. Atua, escreve e dirige. Na direção, já foram dois longas-metragens, Feliz Natal e O Palhaço, filme do qual também é protagonista, ao lado de Paulo José. “Era quase esquizofrênico eu me dirigir. Eu fazia a cena e dizia ‘corta’”, conta. Antes de tudo isso, já era um ator muito curioso. “Não ficava no set só esperando a hora de fazer minha cena, queria saber qual lente o diretor e o fotógrafo estavam usando, como aquilo seria montado, sempre fui muito interessado pela parte técnica.” Por isso mesmo, acredita que tenha sido uma transição natural ir para a direção. “Evidente que aquele ator curioso se tornaria diretor um dia”, diz.

Selton Mello nasceu em Passos (MG), cresceu e viveu em São Paulo e hoje mora no Rio. Há algum tempo, o ator amargou uma crise, da qual só saiu graças “à mola que existe no fundo do poço”. Com discrição mineira, se esquiva do assunto, e hoje, a salvo e distante do limbo, com apenas 39 anos, comemora mais de três décadas de uma carreira recheada de sucessos. No momento saboreia duas estreias, Reis e Ratos, com direção de Mauro Lima, que entra em cartaz neste fevereiro, e Billi Pig, exibido na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, na qual o ator foi homenageado. Na abertura, um clipe produzido pelo Canal Brasil, de TV por assinatura, mostrou todos os filmes em que atuou, arrancou lágrimas do ator e emocionou o público.

O festival abriu em janeiro o calendário da temporada brasileira de audiovisual. Selton Mello circulou pouco pela pequena cidade histórica mineira, localizada a 180 quilômetros de Belo Horizonte. Evitou como pôde o assédio de fãs e de jornalistas, mas em meio a fotos, autógrafos, filmes e aplausos encontrou um tempo para conversar com a Revista do Brasil. Falou de sua maior paixão, o cinema, e também sobre o ofício de ator, que, segundo ele, é uma forma de “continuar a ser criança”.

Minha mãe sempre me levou a programas de calouros, eu cantava Roberto Carlos no Bolinha, no Bozo, no Dárcio Campos. E, como ela atendeu ao meu pedido, a primeira música que cantei foi Lady Laura

O que é ser ator?

O ator é um contador de histórias, pode levar um pouco de sonho para quem o está vendo. É continuar a ser criança, talvez essa seja uma boa definição, porque, quando a gente é criança, brinca de ser coisas – a menina pega a boneca e finge que é sua filha –, é um exercício da imaginação. Ser ator é continuar aquela experiência da infância.

E o que o levou a esse caminho?

Comecei bem cedo, gostava muito de televisão, era bem viciado, via todos os programas de humor. Tenho um carinho grande pelos humoristas da velha guarda, por isso procuro trabalhar com eles. Chamei o Moacir Franco em O Palhaço, o Lúcio Mauro em Feliz Natal, gostava muito de assistir aos programas do Chico Anísio, do Jô Soares. Um dia eu disse pra minha mãe: “Quero ir lá dentro da maquininha”, e pedi pra ir cantar na televisão.

Ela me levou a programas de calouros, eu cantava Roberto Carlos nos programas do Bolinha, Bozo, Dárcio Campos. E, como minha mãe atendeu ao meu pedido e me levou, a primeira música que cantei foi Lady Laura (risos).

Sempre pensei: “Será que é possível fazer um filme que seja popular e autoral? Que se comunique bem e leve à reflexão e seja silencioso, e que seja cinema, portanto?” Essa foi minha tentativa, com O Palhaço, e deu certo 

E o cinema, quando surgiu na sua vida?

Minha primeira experiência com cinema foi num filme dos Trapalhões e da Angélica, Uma Escola Atrapalhada, na década de 1990. Depois comecei a fazer umas pequenas participações – em Lamarca (1994), Guerrade Canudos (1997) e O Que É isso, Companheiro? (1997). Eu até brincava, porque sempre morria no início do filme. Nessa época, então, meu grande sonho era viver até o fim de um filme. Aí veio o ano que eu chamo de definitivo na minha vida, 1998, quando fiz o Auto da Compadecida, inspirado na peça de Ariano Suassuna, e Lavoura Arcaica, baseado na obra de Raduan Nassar. Foi um choque, eu tinha 25 anos, foi a hora em que percebi o que queria pra minha vida, que é fazer cinema, foi quando me encontrei, que decidi me dedicar a isso, e a partir de então foi o que eu fiz, sou focado.

 E a direção, como aconteceu?

Foi naturalmente. Codirigi uma peça em 2001, depois dirigi uns clipes do Ira!, antes de a banda acabar, sou amigo deles. Depois que se separaram fiz outros do Nasi. Foi uma época em que o Canal Brasil estava passando por uma transição e me convidaram para fazer alguma coisa lá. Criei o programa Tarja Preta, que eu dirigia e apresentava, e lá conheci o Jorge Loredo (o Zé Bonitinho). Fiquei encantado e dirigi um curta-metragem com ele (Quando o Tempo Cair), e quando vi estava dirigindo meu primeiro longa.

Se surgir algo interessante, se alguém assistir ao meu trabalho em português e disser “gostei desse cara”, ótimo, mas não vou parar tudo para ir até lá e começar de novo.

 Você pensa em carreira internacional?

Tenho vontade, sim. O mais perto que cheguei disso foi no Jean Charles (de Henrique Goldman, 2009), que foi rodado em Londres, e já tive algumas sondagens de trabalho lá fora, mas nenhuma engatou, como o convite para atuar no novo Star Trek, de J.J. Abrams. Eu pensei: “Caramba, pô, maneiro, filme nos EUA, J.J. Abrams… Mas o que vou fazer dentro daquela nave?” E ninguém sabia me responder, porque é assim que eles trabalham: queriam primeiro um o.k. meu, e aí, sim, iam escrever sabe-se lá o quê. 

Era provável que eu colocasse aquela roupa da nave e ficasse muito deprimido. E sou muito grato pelo que conquistei aqui, é um ­país enorme, rico culturalmente, e consegui levar minha arte para muita gente. Então, não me encanta a ideia de parar tudo aqui e começar em um outro país, numa outra língua. Quero continuar fazendo aqui, em português.

Se surgir algo interessante, se alguém assistir ao meu trabalho em português e disser “gostei desse cara”, ótimo, mas não vou parar tudo para ir até lá e começar de novo.

O seu segundo longa, O Palhaço, fez sucesso aqui no Brasil. Você acredita que ele pode tocar tanto também outros países?

Eu acho que sim, porque trata de uma questão muito humana, falar de identidade, vocação, o que você escolheu para fazer da sua vida, ou para o que foi escolhido. É um filme que enquadra todo mundo, acredito que possa ter uma trajetória bonita fora do país. Fico feliz porque em O Palhaço tentei uma coisa que poderia não dar certo. Temos um cinema autoral muito bom, a que pouca gente tem acesso, e o de característica bem comercial, que não leva a nenhuma forma de reflexão.

E sempre pensei: será que não é possível juntar as duas coisas? Será que é possível fazer um filme que seja popular e autoral? Um filme que se comunique muito bem, mas leve à reflexão e seja silencioso, e que seja cinema, portanto? Essa foi minha tentativa, e deu certo. Talvez eu tenha encontrado agora uma veia, uma forma de fazer. O filme foi uma realização pessoal gigante, importante também para o cenário brasileiro, por mostrar que o público é sensível e quer coisas que enriqueçam o espírito e a alma.

Você vê diferenças, no trabalho de direção, entre O Palhaço e o primeiro filme, Feliz Natal?

Foram experiências muito distintas. O primeiro tem aquela ansiedade da estreia, você fica querendo mostrar que sabe fazer e ao mesmo tempo muito preocupado se vai dar conta de tudo aquilo. No segundo tem uma calma maior porque você já estreou, mas no meu caso entrou um novo dado, o fato de atuar também. Era quase esquizofrênico eu me dirigir. Eu fazia a cena e dizia “corta”. Era um negócio meio maluco, para quem estava de fora era até bastante engraçado. Mas correu tudo bem, deu tudo certo.

E como foi a homenagem na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes?

Foi emocionante, fiquei muito contente. Tenho 39 anos de idade, porém trabalho há mais de 30. Desde criança sou ator. Apesar de novo, já tenho quilometragem. Receber homenagem é um incentivo e tanto para seguir adiante criando e produzindo. Uma das principais características da Mostra de Tiradentes é celebrar novos talentos, as novas cabeças pensantes do cinema, e nós temos muitos talentos. É um grande diferencial desse festival, e fico feliz em ser homenageado em uma mostra que celebra os jovens. Vim aqui há dez anos, com o Lavoura Arcaica, e agora fiquei impressionado com a estrutura, cresceu muito.

O tema desta edição da mostra foi o ator. Qual a diferença entre atuar no cinema e na TV?

Acredito que a principal diferença está na falta de tempo para você aprofundar um trabalho. Tenho uma grande admiração pelo Tony Ramos, acho um ator extraordinário, justamente porque ele consegue um negócio que acho um feito: faz cinema, faz teatro, mas gosta mesmo é de novela, e faz muitas. Fico muito impressionado porque ele consegue manter um nível alto em seu trabalho, as novelas que faz são sempre grandes trabalhos, e coisas distintas: faz um indiano, um grego, um coronel do mato, um camarada urbano. E na televisão não há tempo para preparação, para se aprofundar em um personagem.

Hoje o cara vai, faz o filme, põe no Youtube, e em pouco tempo todo mundo vê. Não depende de festival,  ou de uma TV. Já foi dali para o mundo. A força da internet impressiona. Estou a fim de vasculhar esse negócio

É tudo muito ligeiro, são 30 cenas por dia. No cinema o tempo é outro, você faz duas, três cenas por dia, pode elaborar melhor tudo. Por outro lado, minha escola foi a TV. Não sou formado em nada, cresci fazendo as coisas, foi na televisão que aprendi, trabalhando com grandes atores, observando como eles faziam. Esse é o lado bom da rapidez da TV, porque dá uma agilidade de raciocínio enorme. Para fazer 30 cenas todos os dias é preciso tirar muito coelho da cartola, tem de ser criativo. Isso dá uma bagagem muito boa. Hoje, fazendo cinema, com mais calma, percebo isso.

Trinta anos de carreira e muitas transições, o que falta fazer?

Não sei o que falta, quero continuar a fazer o que gosto. Estou curtindo muito dirigir, na verdade estou gostando mais que de atuar, mas em resumo é isto: continuar trabalhando, exercitando a imaginação. No momento estou saboreando duas estreias, uma em fevereiro, Reis e Ratos, com direção de Mauro Lima, e outra em março, Billi Pig, comédia de José Eduardo Belmonte. Ainda não sei qual será meu próximo trabalho, estou tateando algumas coisas. Acho que vou viver uma coisa curiosa: geralmente um diretor sofre uma pressão do primeiro para o segundo filme, é bastante comum isso. Comigo vai ser diferente, vai ser do segundo para o terceiro. 

O Feliz Natal foi tão radical, sombrio, autoral e pouco visto que não tive o menor pudor em ir para o segundo. Não tive aquele momento “ai, meu Deus, o segundo, e agora?”, quando vi já estava fazendo. Mas para o terceiro talvez eu tenha. Agora vai rolar uma cobrança porque O Palhaço fez sucesso, deu certo, abriu um novo caminho no cinema brasileiro, apontou uma nova possibilidade, de fazer algo popular e autoral, conseguiu juntar essas duas coisas, que até então ninguém estava fazendo, ou era muito comercial, ou muito autoral. Então agora acredito que tenha uma expectativa, porque eu vou seguir nessa onda.    

A Kodak faliu, pediu concordata, já é uma coisa muito rara filmar em película, e vai acabar totalmente, a exibição vai passar a ser totalmente digital, muita coisa vai mudar

Você disse que aprendeu fazendo, mas considera importante ter o suporte de um aprendizado acadêmico?

A importância do estudo tradicional é enorme, mas o que acho na verdade é que vivemos um período de transição tão grande na comunicação que a gente não consegue nem se dar conta ainda, de tão veloz que é tudo, essa coisa da internet. Sou muito ligado nisso, e ando pensando em fazer algo nesse segmento. Mas acho que tudo ainda é embrionário, os valores vão mudar muito. A Kodak faliu, pediu concordata, já é uma coisa muito rara filmar em película, e vai acabar totalmente, a exibição vai passar a ser totalmente digital, muita coisa vai mudar. 

Isso tudo pra dizer que hoje em dia a moçada que se forma tem uma vantagem. Antigamente, para começo de conversa, não havia uma indústria cinematográfica, não era nada animador. Segundo, não tinha internet. Hoje, depois da faculdade, ou mesmo durante os estudos, se o cara quiser se expressar basta pegar uma câmera, às vezes nem tão potente. Ele vai, faz o filme dele, põe no Youtube, e em pouco tempo está todo mundo vendo, espalhando. Ele não fica dependendo de entrar num festival ou em uma TV, aberta ou fechada, já foi dali para o mundo. Fico muito impressionado com a força da internet. Estou a fim de vasculhar esse negócio.

Qual sua opinião sobre o atual momento do cinema brasileiro, e o que falta para ele se projetar mundialmente?

Já vai muito bem internacionalmente. Aliás, a Mostra de Tiradentes é pródiga disso, os jovens que passaram ou que passam por aqui já estão a todo o vapor, Cannes, Roterdã. Esses filmes mais autorais, de uma linguagem mais inventiva, viajam muito bem. Por outro lado, é importante conquistar o público brasileiro, o que também já vem acontecendo. O ano retrasado teve o fenômeno do Tropa de Elite 2, de José Padilha, com mais de 11 milhões de espectadores. Ano passado também foi muito bem, mas um pouco mais pulverizado, o que ao meu ver é mais saudável. 

Não tivemos nenhum Tropa com 11 milhões, mas teve sete filmes com grandes bilheterias. O Palhaço é um deles, com 1,5 milhão de espectadores, outro fez 800 mil, 400 mil, 3 milhões. Isso é bom, é importante o público brasileiro se ver na tela. O cinema é uma espécie de espelho do que a gente representa. Quando eu digo que essa geração de atores, da qual faço parte, é muito importante porque personificamos os mitos e os heróis brasileiros. Não somos o Brad Pitt, o Johnny Depp. Somos o Wagner Moura, o Lázaro Ramos, falamos português, e temos essa responsabilidade de dar cara ao nosso cinema e falar a língua de quem está ali nos vendo.