O pau-brasil e o legista

Gosto de caminhar por ruas bonitas, bem arborizadas, perto da minha casa, na Vila Madalena. Rua de moradores ricos é uma beleza.

Gosto de caminhar por ruas bonitas, bem arborizadas, perto da minha casa, na Vila Madalena. Rua de moradores ricos é uma beleza. Como moro perto, minhas caminhadas são naquela direção. Ruas de bairros pobres também poderiam ter muitas árvores, mas os prefeitos parecem achar que pobre tem de morar em lugar feio e desagradável mesmo. E os pobres não reivindicam melhorias como essa. Há exceções, claro.

Quem chega de avião a João Pessoa, capital paraibana, se impressiona olhando de cima a cidade bem arborizada. Dizem que é a cidade mais arborizada do Brasil e a segunda capital mais arborizada do mundo, só perdendo para Paris. Não sei se é verdade, mas é bom de ver. O segredo de João Pessoa, fiquei sabendo há décadas, é que a prefeitura abate no IPTU um valor para cada árvore plantada dentro do terreno das casas. Então, além das árvores nas calçadas, há muitas na área interna, privada.

Voltando à Vila Madalena, não nas ruas cheias de bares, mas nas de moradias ricas, perto do Alto de Pinheiros, há árvores enormes, lindas. Há algum tempo “descobri” um pé de pau-brasil numa de suas ruas. É uma árvore grande e bonita. Sempre passo lá para “conferir”, pois acredito que algum dia vão derrubar o pau-brasil, dizendo que a árvore é grande demais, que atrapalha a circulação ou qualquer coisa do tipo. Ao lado da árvore tem um pequeno pedestal com uma parte inclinada em cima, onde imagino que havia uma placa de bronze identificando como pau-brasil. Não há mais, deve ter sido roubada para venderem o bronze por uns tostões.

Aliás, essa é outra coisa comum. Lembro que, quando o sociólogo Eder Sader morreu, deram o nome dele a uma pequena praça, também na Vila Madalena. Inauguraram com festa e com uma placa de bronze. Os filhos do Eder Sader estavam viajando, se atrasaram e chegaram tarde, à noite.

Deixaram para ir ver a praça que homenageava o pai no dia seguinte, de manhã. Quando foram lá, a placa já havia sido roubada. Se fosse hoje, diriam que eram viciados em crack que a roubaram para sustentar o vício, mas na época ainda não havia crack.

Mas toda essa história é pra contar que no Sábado de Aleluia, quando saí pra minha caminhada, os postes do bairro estavam cheios de cartazes. Fiquei sabendo por eles que morava no bairro o médico legista Harry Shibata, que no período ditatorial assinava laudos inocentando a polícia de mortes de presos sob tortura. Alguns cartazes falavam dos mortos e dos laudos de Shibata. Um dos laudos atestava que Vladimir Herzog se suicidara, embora o legista nem tivesse visto o corpo. Assinava tudo que a polícia pedia.

Um cartaz tinha o endereço de Harry Shibata. Conferi: parecia que era a casa que tinha, plantada na calçada, a árvore de pau-brasil. Confesso que tremi. Não gostaria de associar na minha mente a única árvore de pau-brasil que conheço na Vila Madalena à residência de um sujeito da ditadura. Evitei passar por lá.

No domingo, li nos jornais que houve uma manifestação no sábado, em frente à casa. E resolvi passar lá para tirar a prova. Era ou não a que tinha o pau-brasil em frente? Felizmente, não era. O pau-brasil era em frente à casa ao lado. Nos portões do casarão de Harry Shibata havia inscrições como “assassino”, e na rua uma inscrição e uma seta indicavam que ali morava um legista da ditadura.

Depois do alívio, continuei minha caminhada, feliz da vida. Na segunda-feira, quando saí para caminhar, uma estranheza: quase nenhum poste tinha mais os cartazes que denunciavam Harry Shibata. Ou ele contratou uma boa equipe para sair arrancando, ou tem muitos simpatizantes no bairro. Cruz-credo!