Europa: o que isso quer dizer mesmo?

As recentes eleições francesas e gregas demonstram que há esperança. Trata-se agora de acumular forças, formular alternativas à ortodoxia econômica e vencer as próximas

Quando eu era criança, “Europa”, para mim, significava um magnífico calendário colorido, impresso na Suíça, com paisagens fantásticas, cobertas de neve, de flores ou das folhas coloridas no outono. Significava também aqueles bloquinhos de madeira com que a gente podia montar cidades medievais, com pontes, torres pontiagudas e tijolinhos vermelhos. 

Se ruim é a situação do país próspero, nos “em crise”, as dificuldades têm se abatido de forma mais cruel sobre os aposentados, os jovens e os imigrantes (Foto: Jacky Naegelen/Reuters)

Claro, havia a Europa da Segunda Guerra, cheia de nazistas que não falavam, grunhiam um inglês macarrônico e andavam naquelas motos com tender que sempre capotavam espetacularmente. Mas já era coisa do passado.

Mais tarde, quando cresci, e veio a ditadura de 64, a Europa era o lugar da temperança, do asilo político, da social-democracia, da prosperidade. Até as violências eram diferentes: não é que, por exemplo, a polícia francesa não disparara um único tiro de arma de fogo contra os manifestantes de maio de 1968? A Europa era o lugar das universidades criativas e em ebulição! Cheguei a acalentar a fantasia de me auto-exilar e virar professor universitário numa universidade europeia. Enfim, acabei na USP, onde fiquei por 37 anos.

E a história continuou. Entre quedas de muros e dramáticos finais de sonhos, e de pesadelos, a Europa tornou-se o possível vetor de uma nova ordem internacional, baseada na confraternização onde antes campeavam guerras, holocaustos, genocídios, colonialismos e imperialismos. Ficou famosa a foto de Helmut Kohl e François Mitterand de mãos dadas, ouvindo a Marselhesa, depois do hino alemão, em 1984, no memorial da batalha de Verdun, da Primeira Guerra Mundial. Ou a do chanceler Willy Brant, antes, de joelhos no Gueto de Varsóvia, em 1970, pedindo perdão aos judeus e poloneses pelos crimes de guerra dos nazistas. Quando a União Europeia e mais tarde a Zona do Euro entraram em cena, tudo isso parecia se confirmar.

Pois bem. Esqueçam

A Europa mudou de lugar. Assim como o Brasil também mudou de lugar no mundo. Só que o Brasil mudou para melhor. Os últimos relatórios da Organização Internacional do Trabalho são eloquentes: a América Latina e, em particular, o Brasil são vistos como exemplares do ponto de vista de segurança no emprego para os trabalhadores. A Europa tornou-se um exemplo negativo. Além dos altíssimos índices de desemprego nos países em crise aberta, como Espanha, Portugal, Irlanda, Grécia – e este parece ser o caminho da Itália –, mesmo em países mais equilibrados, como a Alemanha, correm soltas as formas de precarização do trabalho.

A Alemanha parece uma ilha de bonança. Por quê? Porque, como apregoam os economistas da ortodoxia hegemônica, “fez a lição” que os outros não fizeram. Que lição? Podar o poder dos sindicatos. Congelar salários durante cinco anos. Mas isso tem um preço. Recentemente a revista alemã Der Spiegel publicou um diagnóstico muito interessante, entitulado “O altíssimo preço do sucesso da economia alemã”. Chama a atenção o aumento significativo dos contratos chamados de “tempo parcial” (part time) em detrimento dos de “tempo integral” (full time). Em 1991 estes eram 29,4% dos contratos; em 2011, 23,9%. Já os part time eram 5,8% em 1990, e em 2011, 12,6%. Contratos que não seguem integralmente a legislação trabalhista, os non traditional contracts, eram 22% em 2011; em 2010 chegaram a 33,3%. Entre os jovens de 15 a 24 anos, esses contratos subiram de 19,5% para 39,2% em dez anos.

Por esses “non traditional contracts”, o trabalhador, se vai para uma montadora de automóveis, não é empregado diretamente da firma para a qual trabalha, mas de uma agência de empregos. Esse mesmo trabalhador não terá bônus ou participação nos lucros. Aliás, se a participação nos lucros faz parte do cartão de visitas do capitalismo alemão, apenas 9% das empresas têm esse sistema de remuneração.

Se essa é a situação do país próspero, imagine-se a dos “em crise”. Nesses, as dificuldades têm se abatido de forma mais cruel sobretudo sobre os aposentados, os jovens e… os imigrantes. Pois é, a antiga Europa da tolerância cedeu espaço para outra, onde campeiam movimentos de extrema direita, como na Holanda, Áustria, França, no antigo Leste Europeu, nos países escandinavos, até na minha decantada Suíça dos calendários. Esses movimentos voltam-se contra um bode expiatório visível e “natural”: o imigrante. São agora “culturais”, e não mais raciais, os argumentos brandidos: “Temos culturas diferentes, portanto não podemos conviver num mesmo espaço”.

Por que houve essa dramática mudança? Bom, uma razão é a de que aquelas ideias generosas, como a de uma União Europeia e de uma moeda única, foram plantadas numa época em que a social-democracia, como alternativa ao capitalismo selvagem e ao comunismo anti-democrático, era a referência hegemônica na Europa Ocidental. Mas elas foram colhidas numa época de hegemonia neoliberal, que vai continuamente varrendo o estado do bem-estar social para fora da história, minando nos corações e mentes qualquer ideia de solidariedade social e internacional, substituída pela da competitividade intra- e inter-sociedades. Em vez do investimento social, cultiva-se hoje a “austeridade” como um valor permanente e universal. “Austeridade”? Sim, no plano social, para os trabalhadores, estudantes, aposentados. Para os bancos, até agora, ajudas e benesses.

Para onde vai essa Europa? Há sinais de esperança? Paradoxalmente, sim. As recentes eleições francesas e gregas demonstram isso. Na França a esquerda renasceu das próprias cinzas. Pode ser que consiga aumentar a pressão para reverter a ortodoxia econômica que vai mergulhando a Europa numa hemorragia recessiva e com ela o mundo inteiro. Na Grécia uma nova esquerda surgiu das cinzas do país inteiro. Trata-se agora de acumular forças, formular alternativas, vencer as próximas eleições, quando talvez a situação geral europeia já tenha melhorado.

Neste contexto, o que quer dizer “melhorado”? Significa sobretudo uma mudança no campo das ideias e do imaginário político. Ao contrário do que pensava o marxismo vulgar (nunca o sério), ideias e imaginação não são superestruturas, são infra. E hoje, nessa Europa desnorteada, o campo das ideias e da imaginação está tomado pelas crenças e superstições da ortodoxia econômica. Nas universidades, é isso que se ensina, é isso que se aprende. Para essa ortodoxia a América Latina e nossas políticas sociais emergentes não passam de uma aberração invisível. É isso que tem de mudar. Talvez leve uma geração.

Por isso, está na hora de começar a distribuir calendários impressos por nós mesmos. Com fotos de crianças sorridentes. A ver.