Paisagem entre o pão e a poesia

Com 40 anos de carreira, o cearense Fausto Nilo deixou a poesia de sua arquitetura na paisagem de Fortaleza e a arquitetura de sua poesia na paisagem da música brasileira

A canção Pão e Poesia – “Felicidade é uma cidade pequenina, é uma casinha, é uma colina, qualquer lugar que se ilumina, quando a gente quer amar…” – tornou-se mais conhecida na voz dos baianos Moraes Moreira e Simone do que na do cearense Fausto Nilo. E talvez seja uma das letras de sua autoria que mais bem sintetizem o sentido de sua obra, de poeta, arquiteto e urbanista, um acervo musical erguido nas últimas quatro décadas que soma mais de 400 composições. Poucos letristas da música brasileira, como Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Noel Rosa, alcançaram produção tão vasta. 

As minhas letras de música são romances de cenários metropolitanos, com todos os seus problemas (foto: Davi Pinheiro)

Era um sonho distante para o garoto Fausto Nilo Costa Júnior, saído de Quixeramobim, no sertão cearense. “Foi um processo rigoroso de autocrítica. No momento em que fiz, foi gravada e em seis meses estava no rádio, tocando pra caramba, e isso me confundiu, pois olhava a letra e dizia que não era boa”, confessa. Na época, ele já morava em Brasília e foi convocado pelo amigo Raimundo Fagner a escrever a letra de uma canção. “Eu tinha vontade, mas não tinha coragem, até que fiz Fim do Mundo, gravada em 1972 pela Marília Medalha. Isso me deu certo entusiasmo e fiz a segunda, Dorothy L’Amour, gravada pelo Ednardo no primeiro disco dele”, lembra.

Fausto pertencia a um seleto grupo formado por Fagner, Belchior, Ednardo, Amelinha, entre outras duas dezenas de pessoas. “Desde o início do grupo, chamado por setores do meio musical de ‘Pessoal do Ceará’, termo que não adoto e não gosto, cada um tinha um projeto singular e diferente, com o Bar do Anísio como ponto de encontro. Foi apenas a coincidência de um período de luta por um lugar ao sol”, conta. 

Apesar de estar em todas as reuniões dessa turma, o futuro letrista se restringia a cantar com os amigos na madrugada 
boêmia e a trabalhar como arquiteto, formado em 1970 pela Universidade Federal do Ceará. Nessa época, foi preso duas vezes, uma delas durante o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiú­na, no interior de São Paulo, em 1968. “Fui do movimento estudantil sempre com um pequeno dilema: tinha tendência intelectual criativa e, às vezes, havia muitas incompatibilidades com a visão da esquerda. Entrei para o PCdoB, embora tivesse maior identificação com o partidão (Partido Comunista Brasileiro, o PCB)”, conta.

Ponte projetada por Fausto em Quixeramobim (foto: Levy Mota/Flickr/Creative Commons)  Ao mudar-se para o Rio de Janeiro, encontrou artistas e ampliou o leque de parcerias. Conheceu Moraes Moreira na casa do jogador de futebol Afonsinho. “Ele estava saindo dos Novos Baianos e tinha feito um disco solo. Ficamos amigos e nos encontrávamos na noite, nos bares do Rio, mas nada de parceria. Até eu conhecer uma ex-guerrilheira, professora na zona norte, louca pelo Moraes e inconformada com o fato de eu não fazer músicas com ele.” Foi o empurrão que faltava para nascer Prosando com Maria. Depois vieram várias, como Chão da Praça, Bloco do 
Prazer, Coisa Acesa, Meninas do Brasil, Pão e Poesia, De Noite e de Dia, Santa Fé.

Parte dessas criações foi feita especialmente para ser lançada pelo trio elétrico de Dodô e Osmar, que desfilava pelas ruas­ de Salvador. Com a mesma finalidade surgiram Vida Boa e Zanzibar, composta com Armandinho; Frevo da Lira, com Waldir Azevedo e Moraes Moreira; e Eu Também Quero Beijar, com Moraes e Pepeu Gomes. 

Ponte projetada por Fausto em Quixeramobim (foto: Levy Mota/Flickr/Creative Commons) 

“O Moraes pôs letra e cantor no trio, que até então era instrumental. Foi uma experiência fantástica. Muita gente pensa que eu sou baiano”, brinca.

Outros ritmos

Sem preconceitos com relação a gêneros e ritmos, Fausto Nilo considera ter feito grandes parceiros em cada um deles. É o caso de Lulu Santos, Geraldo Azevedo, Zeca Baleiro, Evaldo Gouveia, Robertinho do Recife, Chico Buarque, Pepeu Gomes e Roberto de Carvalho. “Quando comecei, escrevia as letras no papel e as cedia. Acho que a maioria faz isso, mas depois descobri que é mais confortável e de melhor resultado letrar melodias”, diz. “Recebo, ouço e deixo que a música chegue de maneira espontânea. Quando sinto que já estou cantarolando é que vou trabalhar e fazer com que essa arquitetura fique ereta.” E assim foi ganhando a manha de escrever, ouvir no estúdio a concretização do fonograma e depois a reação do público. “Investi muito nesses três estágios e ganhei uma experiência que me obrigou a recuar de certezas. Então, sou formado por um caminho intelectual, acadêmico, e pelo caminho da rua, com autodidatismo, passando pelo ambiente dos músicos”, avalia. 

No momento em que a música começou a dar certo na vida de Fausto Nilo e ele se profissionalizou como letrista, a 
arquitetura e o urbanismo ficaram um pouco de lado. “Depois eu compreendi que o meu tempo sobrava e ter duas atividades, em vez de problema, virou um privilégio. Elas têm afinidades do ponto de vista da composição, no plano estético, embora os materiais sejam diferentes”, compara. “Em arquitetura e urbanismo, trabalho com espaço público, escalas e dimensões. A letra de música é mais livre, trabalha com palavras e sonoridades. Com o tempo, vi o meu progresso em uma se refletindo na outra, na medida em que as minhas letras de música são romances de cenários metropolitanos, com todos os seus problemas”, analisa.

O arquiteto Fausto Nilo foi professor da Universidade Federal do Ceará e da Universidade de Brasília. É um dos autores da estação Santa Cecília do metrô de São Paulo e do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. “É minha obra mais importante.” A ideia era fazer um centro cultural, numa zona de muito valor estratégico, mas decadente. Eu me juntei a um parceiro, Delberg Ponce de Leon, e fizemos uma proposta, analisando papéis históricos, a atualidade e o potencial futuro”, avalia. Hoje, como urbanista, ele procura projetos adaptáveis e sustentáveis, sensíveis ao controle social, o que realiza num colégio, num mercado público e no projeto Casa do Ceará, que chama de “um microcosmo de convergência reabilitadora de contatos para a nossa era”.

Reservado, bom prosador, Fausto Nilo vive da casa para o escritório de arquitetura que mantém em Fortaleza. Nos anos 1990, decidiu cantar e gravar seus sucessos e de lá pra cá lançou quatro CDs. Agora planeja um álbum com 12 canções inéditas compostas em 30 anos com Dominguinhos. E reunir num livro as cerca de 400 letras que já compôs até aqui.