A vida após o mensalão

Julgamento do mensalão pelo STF, qualquer que seja o resultado, expõe necessidade de um sistema eleitoral em que a democracia não seja refém do poder econômico

O Supremo Tribunal Federal foi tomado de assalto pelos interesses políticos e ideológicos de setores da mídia (Foto: Rogério Reis/Pulsar)

Independentemente do resultado do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o episódio do mensalão pode entrar para a história da política brasileira como um divisor de águas, servindo de estímulo para que a sociedade e os políticos promovam as mudanças no sistema político-eleitoral e no formato de financiamento de campanhas. A livre circulação dos recursos financeiros pelo chamado valerioduto acendeu o sinal de alerta para a necessidade de transformar o modus operandi da política no Brasil.

O país precisa de um sistema de comunicação livre de uma imprensa partidária 

Organizado por estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o Movimento Universitário em Defesa do Estado de Direito, que mantém um blog na internet sobre o mensalão, vê no caso problemas associados à questão do financiamento de campanhas eleitorais. 

“De fato, está demonstrada nos autos a existência de valores não declarados à Justiça Eleitoral. Nossa estrutura de financiamento leva a situações delicadas, favorecendo sempre o poder econômico na agenda política nacional”, afirma Pedro Igor Mantoan, um dos líderes do movimento.

Mantoan considera imprescindível uma reforma política que estabeleça o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais. “É o único modo efetivo de reduzir a influência do poder econômico sobre o político, propiciando uma estrutura mais próxima de uma democracia plena e do Estado de direito”, diz.

Sua avaliação é compartilhada pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS), relator da comissão especial que trata da reforma política no Congresso, que vem encontrando dificuldade para fazer avançar a agenda da reforma entre seus pares. O parlamentar observa que a maior parte das situações de ilegalidade verificadas ao longo das últimas décadas na política brasileira tem relação com financiamento de campanha. “Uma ilustração disso é o caso mais recente, que revelou a facilidade com que a quadrilha do Carlinhos Cachoeira agiu. Os canais estão totalmente facilitados e abertos para que o interesse do crime organizado consiga interferir com grande intensidade no resultado eleitoral.”Pedro Igor Mantoan (Arquivo Pessoal)

Mantoan: “Em boa parte dos veículos de comunicação se formou a convicção da culpa dos acusados, sem que necessariamente tal convicção tenha respaldo nas provas produzidas no processo”

A quem diz que o financiamento público não vai conseguir suprimir a prática de caixa 2 ou a injeção de recursos ilegais nas campanhas, o deputado retruca: “Quando uma lei como essa surge, diminuem as possibilidades de o caixa 2 entrar na democracia brasileira porque traz punições claras para quem a burlar”. Segundo ele, também retira da política outra variável, que são as campanhas eleitorais sem teto de gastos. “O financiamento público determinaria claramente um teto e daria um padrão de fiscalização para a Justiça Eleitoral, a sociedade, a imprensa e os próprios partidos.”

Direito e transparência

O movimento dos estudantes de Direito espera que o episódio do mensalão sirva ainda para o debate “sobre o compromisso dos meios de comunicação com a informação isenta e equilibrada, com respeito ao contraditório e à presunção de inocência”. De acordo com Mantoan, esses direitos não foram garantidos no caso do mensalão: “Em boa parte dos veículos de comunicação se formou a convicção da culpa dos acusados, sem que necessariamente tal convicção tenha respaldo nas provas produzidas no processo”. 

As lições deixadas pelo caso no que diz respeito à falta de acesso da sociedade a informações isentas também são apontadas pelo sociólogo Emir Sader. A criação do “marketing do mensalão”, em suas palavras, teve na grande mídia uma pedra fundamental. “Sua difusão baseou-se em alguns conceitos alimentados pelas elites econômicas brasileiras, como o caráter inerentemente corrupto e de assalto ao Estado do governo Lula”, afirma. 

Emir Sader, no entanto, diminui a importância do resultado do julgamento do mensalão se comparado à disputa de projetos políticos travada no Brasil: “O projeto alternativo de país representado pelo governo do PT fez do Estado um instrumento de políticas sociais prioritariamente, e não de ajuste fiscal, como era até então. Esse projeto superou o Estado mínimo. Fez do Estado um  elemento de indução do crescimento econômico e de garantia de políticas sociais e também um instrumento de políticas externas soberanas, que priorizam projetos de integração regional, e não tratados de livre comércio com os Estados Unidos”.

Concorrência

A pressão dos meios de comunicação levou o STF a marcar o início do julgamento logo após o recesso de julho. O andamento ficará praticamente encavalado com todo o período de campanha eleitoral. O caráter de espetáculo dado pela mídia conservadora à cobertura deve oferecer concorrência desleal com os debates sobre os projetos (ou falta deles) dos candidatos às prefeituras e câmaras municipais. Na segunda-feira que abriu a semana do julgamento, em 31 de julho, o Jornal Nacional dedicou 14 minutos ao caso, dando sequência aos cadernos especiais publicados na véspera por jornais e revistas. 

O julgamento programado pelo Supremo para começar em 2 de agosto não tem data para terminar. O processo tem mais de 50 mil páginas. A acusação está a cargo do procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Em seguida, advogados dos 38 réus farão as defesas. A implicação política do processo, no entanto, é o que lhe confere importância histórica. Iniciadas em 2005 com o provável intuito de golpear de morte o governo do PT – ainda no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva –, as denúncias tiveram como ponto de partida o vazamento de um vídeo obtido pela revista Veja. As imagens mostram um diretor dos Correios, Maurício Marinho, dizendo-se ligado ao deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), recebendo dinheiro de propina.

Recentemente, o prefeito cassado de Anápolis Ernani de Paula, associado ao líder de organização criminosa Carlos Cachoeira no estado de Goiás, afirmou em entrevista à TV Record que o vídeo foi obra de Cachoeira. O objetivo seria atingir o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, que teria impedido os planos do então senador Demóstenes Torres de trocar o PFL pelo PMDB para ser indicado a uma secretaria importante do Ministério da Justiça – e de lá colaborar com a indústria de jogos ilegais operada pelo contraventor. (Como se sabe, Demóstenes foi cassado por sua cumplicidade com o criminoso, que está preso desde fevereiro.)

Roberto Jefferson (Foto: Marcello Casal Jr./ABr)

Jefferson, então presidente do PTB, decidiu assumir uma briga particular com José Dirceu, e o acusou de liderar um esquema de pagamentos a parlamentares em troca de apoio ao governo no Congresso. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, usou a expressão “mensalão”, referindo-se a uma suposta mesada de ­
R$ 30 mil paga a parlamentares. O caso virou tema da CPI dos Correios. Eleito deputado, Dirceu afastou-se da Casa Civil e voltou a Câmara para defender-se. Ele e Jefferson foram cassados.

Roberto Jefferson montou o enredo do mensalão, caiu e levou junto o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, seu desafeto desde os tempos do impeachment de Collor

Em abril do ano seguinte, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, transformou o relatório da CPI em inquérito e denunciou os acusados ao STF por formação de “uma sofisticada organização criminosa”. Em agosto de 2007, o Supremo abriu o processo, e argumentos da acusação e da defesa foram reunidos pelo ministro Joaquim Barbosa, indicado relator. O relatório foi revisado por outro integrante da corte, Ricardo Lewandowsky, e repassado para a análise dos demais ministros, para que se proceda o julgamento. 

Sete anos depois, a pressão dos meios de comunicação impeliu o STF a programá-lo para as vésperas das eleições. Qualquer que seja o resultado, absolvição ou condenação dos réus, o tema é carregado de um componente moral para ser usado como munição pelos adversários do PT. As defesas dos principais petistas acusados, o ex-ministro Dirceu e o ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares asseguram que, juridicamente, não existe consistência nem provas nas acusações contra eles. Mas o peso político do episódio é incontestável.

Contradição

Delúbio Soares (Foto: Jamil Bittar/Reuters)De acordo com o advogado de Delúbio Soares, Arnaldo Malheiros Filho, o próprio pivô da denúncia, Roberto Jefferson, não sustenta a acusação em sua defesa escrita. “Não há nada nos autos do processo que deem conta disso. Jefferson (ele próprio um dos acusados) diz que o termo ‘mensalão’ é retórica, e não um fato. O nome é de apelo midiático, nem a manchete da Folha está nos autos.” 

Delúbio: havia compromissos de apoio financeiro para os partidos que compunham a coligação pagarem despesas de campanha, não compra de votos

Delúbio é acusado de corrupção ativa e formação de quadrilha – por ser apontado como elo com a fonte de recursos, o publicitário Marcos Valério, e com os recebedores. Seu advogado nega. “O que havia eram compromissos de apoio financeiro para os partidos que compunham a coligação pagarem suas despesas de campanha, não votos”, afirma Malheiros. “Mas não é disso que ele está sendo acusado.”

Os compromissos financeiros estavam associados à inédita coligação em torno da primeira eleição de Lula, em 2002. Enquanto a campanha de Lula comemorava a chapa composta com José Alencar – empresário e senador pelo PL de Minas –, o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, reivindicava do PT recursos para as campanhas regionais de seu partido. O mesmo cobrava o PTB de Roberto Jefferson, integrante da coligação. 

Dono de três agências de publicidade que atendiam contas do governo federal e também do governo de Minas Gerais, o empresário Marcos Valério foi apresentado a Delúbio supostamente por políticos de Minas. Valério é acusado de superfaturar contratos com o governo e de prover empréstimos ao PT por meio de contas no Banco Rural. O método já teria sido aplicado no chamado “mensalão tucano”, após a campanha à reeleição de Eduardo Azeredo, em 1998.

O processo

A acusação tentará comprovar a existência de esquema planejado e hierarquizado de desvio de recursos para compra de votos que teria contado com a participação de diversos agentes, entre empresários, parlamentares e integrantes do poder público. As defesas, por sua vez, adotarão como linha principal a tese de que os recursos não contabilizados não configuravam corrupção, mas serviam apenas à formação de caixa 2 para o pagamento de dívidas de campanha dos partidos.

Em acordo com a denúncia apresentada em março de 2006 pela Procuradoria – Geral da República (PGR), o relator Joaquim Barbosa aponta como integrantes do núcleo operacional do esquema José Dirceu, Delúbio, além de José Genoino e Silvio Pereira (então presidente e secretário-geral do PT, respectivamente). 

Esse núcleo, segundo a acusação, teria um braço publicitário-financeiro comandado pelo empresário mineiro Marcos Valério e operado por suas agências, sócios e funcionários. Além destes, fariam parte do núcleo operacional a presidente do Conselho de Administração do Banco Rural, Kátia Rabello.

Outro bloco identificado no relatório é formado pelos réus que receberam, operaram e distribuíram os recursos provenientes do chamado valerioduto em seus partidos. Nele estão incluídos nomes como Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (então PL, hoje PR) e Pedro Henry (PP). 

Há ainda outros dois subgrupos, formados por corretores e doleiros que auxiliaram o esquema e pelo publicitário Duda Mendonça e uma sócia, que teriam recebido no exterior pagamento por seus serviços.

Um dos aspectos mais curiosos do processo é incluir, entre os acusados de receber pagamentos para votar com o governo no Congresso, parlamentares do próprio partido do governo, como Paulo Rocha (PA), João Magno (MG), além do então líder do governo na Câmara, Professor Luizinho (SP), e o presidente da Casa, João Paulo Cunha. 

Ataques e defesas

Apontado pela PGR como mentor do esquema do mensalão, José Dirceu será julgado por corrupção ativa e formação de quadrilha. Dirceu desde o início considerou insustentáveis as acusações. Seu advogado, José Luís Mendes de Oliveira Lima, chegou a chamar a peça acusatória de “ficção”. E tentará demonstrar que não existe prova da participação do então ministro da Casa Civil e sequer os autos do processo apresentam existência do esquema.

Delúbio e Genoino sofrem as mesmas acusações. O ex-presidente do PT responderá que não tinha participação direta na movimentação financeira do partido e apenas assinava documentos na condição de presidente. O ex-tesoureiro admitirá a captação de caixa 2, mas sem envolver compra de votos, muito menos com recursos públicos, o que descaracteriza crime de corrupção. 

A maior carga individual de acusações recai sobre Marcos Valério, que será julgado por corrupção ativa, formação de quadrilha, peculato (apropriação de recursos públicos em benefício próprio), evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Os advogados do empresário tentarão desqualificar a acusação de formação de quadrilha ao alegar que ele não tinha vínculo político algum com a Casa Civil e os empréstimos ao PT, segundo o conhecimento do réu, seriam destinados a cobrir dívidas do partido com as campanhas eleitorais. Kátia Rabello, do Banco Rural, será julgada por formação de quadrilha, evasão de divisas, gestão fraudulenta e lavagem de dinheiro. Seus advogados dirão que todos os empréstimos concedidos por intermédio do banco foram executados em respeito ao que determina a legislação financeira.

Completam a lista dos réus Duda Mendonça e sua sócia Zilmar Fernandes, acusados de lavagem de dinheiro e evasão de divisas por terem recebido cerca de R$ 10 milhões provenientes do esquema, por meio de depósitos bancários não declarados em contas no Caribe.

Entre os representantes dos partidos acusados, a estratégia de defesa é comum, com os dirigentes e parlamentares alegando que o dinheiro não servia à compra de votos, mas sim à reposição de gastos de campanhas. A defesa de Valdemar Costa Neto negará a compra de votos, já que, segundo seus advogados, na época das denúncias o partido tinha o vice-presidente da República, portanto não precisava de estímulo para se aliar ao governo. No PTB, a tese de que o dinheiro recebido não representava compra de votos, mas sim o acerto de despesas de campanha, também será sustentada pela defesa de Roberto Jefferson.

 O petebista foi uma das figuras mais contraditórias do processo. Integrante da antiga tropa de choque que tentou blindar o ex-presidente Fernando Collor de Mello, há quem diga que o ex-deputado nutria ódio velado ao PT e a José Dirceu desde os tempos do impeachment 

Em suas acusações que deram origem ao processo do mensalão, acusou, e ainda acusa, o partido do governo de  pagar mesadas, mas não ao PTB. Quando o processo chegou ao Supremo, afirmou em sua defesa escrita que o termo era só retórica, não um fato. Na ocasião, dizia que o presidente Lula não sabia de nada, mas hoje permite que seu advogado de defesa pretenda incriminar o ex-presidente. O que nunca mudou em seus argumentos foi sua pendenga com Dirceu. Em entrevista à Rede TV! no final de julho, afirmou: “Eu queria tirá-lo de lá”.

Colaborou Paulo Donizetti de Souza