Decente, sim, senhor

Trabalhadoras domésticas cuidam de casas, dos patrões e até educam seus filhos. Mas só uma minoria tem carteira assinada e, ainda assim, com direitos inferiores

Benê trabalha na casa de Willians há 14 anos. Recebe direitos trabalhistas e a assistência médica é paga pelo patrão (Foto: Olício Pelosi/RBA)

Bendita Benê. É assim que a empregada Benedita Martins é chamada por Bruno e Nickolas, filhos do patrão, o professor universitário Willians Balan, em Bauru, interior de São Paulo. Quando ela chegou à casa da família, há 14 anos, os rapazes tinham 10 e 12. Separado e responsável pelos adolescentes, Willians encontrou Benê por meio de uma agência. “A presença dela deu suporte à educação deles. Quando eram adolescentes, ela foi porta-voz das necessidades deles. Eu me colocava a par do que pensavam e faziam”, recorda o professor.  

Em 34 anos de vida profissional, Benê, de 46, já passou por várias famílias, quase sempre cuidando das crianças e das casas enquanto os pais trabalhavam. Na atual, lida com a alimentação – inclusive das compras –, as roupas, as quatro gatas e a limpeza. E zela pela manutenção, acionando serviços de jardinagem e limpeza da piscina. “Sem ela, eu não poderia sair diariamente e ter uma carreira consolidada”, admite o professor. Além da carteira assinada desde o início, Benedita tem vale-transporte e salário considerado “digno”. Willians recolhe Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e Previdência Social. Ela usufrui férias de acordo com a lei e tem o seu plano de saúde pago pelo empregador. “É uma amiga, está ali cuidando da família, mas é principalmente uma pessoa que tem direito a uma vida decente, como a que eu luto para ter”, elogia ele.

O salário de Benê garantiu, em sua própria casa, parte da mobília, eletrodomésticos, computador e tevê de 42 polegadas. E o sonho da grande varanda está prestes a se realizar por completo. “Falta pintar.” A casa de três quartos com jardim de inverno e cozinha ampla dá conforto à família, composta por três filhos, Benê e o marido. A mãe e o padrasto vivem no mesmo quintal.

Regina Semião- empregada doméstica (foto: Maurício Morais/RBA)A natação do filho e sua hidroginástica são igualmente “frutos” de seu trabalho. Há dois anos, a doméstica conquistou os sábados livres. Vai de segunda a sexta-feira, das 9h às 15h30. “Eu não esqueço que é um trabalho, mas me alegro com o bem-estar deles. Tenho satisfação em cuidar dessas pessoas”, diz.

Regina começou a trabalhar com 8 anos, sem salário: “Subia num banquinho para cozinhar. Tinha curiosidade de conhecer as coisas, mas não sabia que ia enfrentar uma mesa grande, fogão e cinco pessoas para cuidar” (Foto: Mauricio Morais/RBA)

Dezenove por cento da população ocupada feminina tem o mesmo ofício de Benê. Dos 6,9 milhões de domésticas do país, a maioria é formada por mulheres negras. No entanto, uma porcentagem muito pequena tem carteira assinada e direitos assegurados. A proteção social, desfrutada por Benê, portanto, é exceção. Segundo dados do Perfil do Trabalho Decente no Brasil, divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em julho, menos de três em cada dez empregadas possuem carteira assinada. Assim, embora quase 7 milhões de chefes de família tenham sua vida profissional facilitada graças a seus empregados e empregadas, a recíproca não é verdadeira. E não raras vezes, a proximidade com as famílias, que deveria garantir dignidade ao serviço doméstico, reverte-se em desculpa para desrespeito, humilhação e agressão. 

À beira da escravidão

Presidente interino da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Francisco Xavier Santana viveu uma dessas histórias. Começou com 12 anos na casa de um juiz em troca de cama, comida e uma ajuda para sua mãe. Tomava conta dos filhos do magistrado, que tinham a mesma idade dele. “Pensava que era brincadeira”, diz. 

Cuidava do cachorro, cortava grama, limpava vidro, encerava a casa de joelhos e depois passava enceradeira. “Repetia até que a patroa gostasse do serviço”, conta. “Na ingenuidade de criança, eu gostava, porque em casa não tinha três refeições.” Um dia, os meninos brincavam e uma bolinha de gude lascou a quina da mesa de vidro. A patroa o acusou pelo acidente e quis descontar da ajuda que dava à sua mãe. “Aquilo levou minha mãe a repensar”, recorda. 

Em outro trabalho, Francisco também cuidava dos filhos da família. Mas, quando casou, os patrões não aprovaram que fosse embora para ficar na própria casa com a esposa. Diziam “é aqui perto” e que ele podia ir para lá nos fins de semana. “Os patrões acham que o trabalhador doméstico não precisa receber e ainda deve favor. O meu dizia: ‘É um privilégio você conviver com a gente e ainda ganhar’”, lembra.

Regina Semião, ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Campinas, também no interior paulista, hoje com 71 anos, começou a trabalhar aos 8, quando veio de Passos, em Minas Gerais, com a família da madrinha, que a “empregava”. “Eu subia em um banquinho para cozinhar. Tinha curiosidade de conhecer as coisas, mas não sabia que ia enfrentar uma mesa grande, fogão e cinco pessoas para cuidar.” Suportou até os 15 anos. “Um belo dia cansei e comecei a chorar, porque, enquanto eles comiam, eu tinha de cuidar do neto da patroa”, relata. “Se você quer salário, pode sair”, ouvia. “Era praticamente trabalho escravo.” 

Encarnação Maria Melo, de 78 anos, foi diretora do mesmo sindicato e doméstica por mais de 30. Ia para a roça desde que “podia segurar uma criança” – segundo ela, por volta de 7 anos. Sua história e a de Regina repetem o roteiro do filme Histórias Cruzadas (2011), de Tate Taylor. A exemplo das mulheres negras do Mississippi, nos Estados Unidos do século passado, Encarnação trabalhou em uma casa em que “tudo que as domésticas usavam era separado, até talher”. 

Era 1980, em Campinas, e “a patroa sondava nós conversar, contava as frutas pra ver se a gente tinha comido”. Anos depois, Encarnação atendeu no sindicato uma pessoa que foi denunciar a patroa, uma advogada, por ter colocado laxante na sua comida quando resolveu deixar o trabalho. Em muitos lugares, ainda “é trabalho escravo”, constata. 

Em 2008, uma trabalhadora chegou a ser resgatada pela polícia, em Salvador, depois de passar 14 anos em cárcere privado. Francisco, da Fenatrad, acompanhou o caso de Gabriela Jesus Silva, que foi trabalhar aos 11 anos na casa, perdeu contato com a família e nem sequer soube da morte da mãe. “Depois que Gabriela foi libertada, sua família não a queria de volta, porque, sempre que ligavam para a casa da patroa, a dona dizia que ela estava na praia com o namorado, quando a moça na verdade estava trancada, trabalhando”, conta. Em 2012, caso semelhante foi flagrado em Juiz de Fora, em Minas Gerais. 

Proteção social 

  • O registro em carteira e a inscrição no INSS asseguram contagem de tempo para aposentadoria e direitos como auxílio-doença ou licença-maternidade, pagos pela Previdência Social.
  • A carteira de trabalho deve ser providenciada pela próprio trabalhador. Ela é expedida no Poupatempo para quem mora no estado de São Paulo e em Superintendências Regionais do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em todo o Brasil.
  • O registro é feito pelo empregador, que anota nome, CPF, função, salário, data de admissão e assina. A carteira é autoexplicativa, não é preciso procurar nenhum órgão.
  • INSS – a própria interessada, com a carteira de trabalho, pode fazer sua inscrição no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e receber o Número de Inscrição do Trabalhador (NIT). Todo mês o empregador recolhe 20% do salário à Previdência Social por meio do NIT – 12% são de responsabilidade do patrão e 8% ele pode descontar dela.
  • O recolhimento pode ser feito, também, pelo número do PIS, por meio da Guia de Previdência Social (GPS), que pode ser emitida e paga pela internet. 
  • O recolhimento do FGTS assegura ao trabalhador, além de uma pequena poupança no caso de demissão, direito a solicitar o seguro-desemprego.
  • O FGTS, atualmente, é opcional, mas deve se tornar obrigatório se passarem as mudanças constitucionais. O cadastramento do FGTS é um pouco mais complicado. O empregador deve cadastrar o trabalhador numa agência da Caixa Econômica Federal. Mensalmente, recolhe 8% do salário para o fundo, por meio da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social (GFIP), que deve ser paga no banco.

 

Encarnação Melo - doméstica (Foto: Maurício Morais)Reparação

O trabalho doméstico no Brasil segue uma rota de importantes mudanças e valorização. Uma comissão especial da Câmara dos Deputados analisa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 478, que pode estabelecer igualdade de direitos trabalhistas em relação às demais categorias profissionais. Se for aprovada – para isso precisa de no mínimo 308 votos –, a matéria segue para votação no ple­nário da Câmara, em dois turnos, e ­depois para apreciação pelo Senado.

A deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), relatora da PEC, quer substituir a versão inicial da proposta, que suprimia o parágrafo único do artigo 7º da Constituição, o qual restringe os direitos das domésticas. Ela preferiu mantê-lo e incluir ali todos os direitos que estarão assegurados aos trabalhadores domésticos. “Apenas suprimir o parágrafo não deixa referência de ampliação de direitos”, explicou. 

Encarnação atendeu no sindicato uma trabalhadora que foi denunciar a patroa, uma advogada, por ter colocado laxante na comida quando resolveu ela se demitiu (Foto: Mauricio Morais/RBA)

A expectativa da deputada é que a PEC seja votada em breve. “A perspectiva é de aprovação, porque há um grande entendimento e articulação com trabalhadores, empregadores conscientes, Parlamento e governo”, afirma. “A trabalhadora doméstica fica o dia todo na casa do empregador. Não é da família, se dedica e se integra no sentimento, mas não no direito. É acima de tudo uma relação de trabalho.” 

Francisco vê a medida como uma reparação. “A sociedade tem uma dívida.” Para Regina e Encarnação, que conviveram com uma das pioneiras da luta pela igualdade de direitos, Laudelina de Campos Mello, seria a realização de um sonho, que elas mesmas não puderam viver. 

Outra medida em estudo é a ratificação pelo Brasil da Convenção 189 da OIT, de proteção ao trabalho doméstico. A convenção foi aprovada ano passado na Conferência da OIT em Genebra, ­Suíça, e estabelece para o serviço doméstico os mesmos direitos de todos os outros trabalhadores – como jornada de trabalho legal, descanso semanal de pelo menos 24 horas consecutivas, limite para pagamentos em dinheiro vivo, informações precisas sobre termos e condições de emprego e, inclusive, liberdade de organização sindical e negociação coletiva. ­O organismo aprovou também a Recomen­dação 201, que apresenta um guia detalhado sobre a forma de pôr em prática a convenção. 

As convenções da OIT são normas e, nos países onde são ratificadas, possuem natureza jurídica de tratados internacionais. Durante as discussões da Conferência Internacional do Trabalho em 2010, o Brasil foi referência ao ser o único país a ter trabalhadoras domésticas em sua delegação. No ano passado, quando a convenção foi finalmente aprovada, outros países seguiram o exemplo. Uma das principais discussões para ratificação da convenção no Brasil é a necessidade de mudança ou não do artigo 7º da Constituição. 

Para a coordenadora do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça no Mundo do Trabalho da OIT no Brasil, Marcia Vasconcelos, a Convenção 189 independe de votação da PEC para ser adotada – basta que seja admitida pela Presidência da República e, em seguida, submetida ao Congresso. 

Enquanto as medidas de valorização tramitam no Congresso e no governo federal, multiplicam-se versões de uma possível inviabilidade da profissão, frente às novas exigências trabalhistas. Francisco Santana, da federação nacional da categoria, vê exagero. Para o trabalhador, é uma questão de justiça social e distribuição de renda e o país ficará melhor quando 7 milhões de pessoas tiverem salário digno e proteção social. “Não ­haverá prejuízo.”