O povo do lago

Civilizações milenares povoaram o maior lago navegável do planeta, o Titicaca, que com suas ilhas, sua gente e sua paisagem compõe a grata experiência de ir ao Peru

Crianças de Taquile, onde vivem 2 mil habitantes, não precisam sair da Ilha para estudar e preservar sua cultura (Foto: Paulo Donizetti de Souza)

O ônibus deixa Cusco bem cedinho. Nas primeiras horas, vai cruzar o vale do Rio Urubamba, o Vale Sagrado dos Incas, e passar por lugares ricos em cultura, história e arqueo­logia. Do primeiro deles, Saqsaihuaman, ainda na periferia da cidade, a Ollantaytambo – um dos mais importantes conjuntos arquitetônicos da civilização inca, uma hora e meia adiante –, o trajeto tem a companhia do rio. Entre a nascente, nos arredores de Cusco, e o Amazonas, no qual desembocará depois de percorrer 
2 mil quilômetros, o Urubamba comporá paisagens para diferentes fotografias dos Andes peruanos e terá vários outros nomes, mas será sempre o mesmo. 

O lago, visto da Ilha Taquile, fica a 3.800 metros de altitude em área de 8.300 quilômetros quadrados (Foto: Cláudia Motta)

Passado o Vale Sagrado, o rio segue para o norte, e nosso trajeto  rumo a Puno, ao sul. A altura das montanhas ao redor parece diminuir, sinal de que a altitude está aumentando. Após deixar Cusco a 2.400 metros do nível do mar, já estamos a quase 4 mil.  Nove horas e muitas paradas depois, o ônibus começa a cruzar a cidade de Juliaca.

Lago Titicaca (Foto: Cláudia Motta)

Para quem se habituou a construções de pedras caprichosamente lapidadas e encaixadas, Juliaca não tem graça. Espécie de terra de ninguém, violenta e procurada pelo contrabando de eletroeletrônicos, é feia e repleta de sobrados ocupados, mas com aspecto de inacabados, de lajes com os ferros de construção espetados, esperando as colunas do piso superior que nunca vêm. A obra inacabada, segundo o guia Blady, livra o morador do imposto, o IPTU deles. Está explicado. Esse jeitinho peruano também pode ser notado na periferia de Cusco e nos arredores de Puno. 

O centro de Puno é ajeitadinho, com ruelas charmosas, bares e restaurantes. Esse pedaço da cidade foi erguido pelos espanhóis – os “inca-pazes”, não os incas, brincam os mestiços locais. E abriga o porto junto ao Lago Titicaca, o maior navegável do mundo. Suas águas provêm mais das chuvas e do derretimento do gelo andino do que de nascentes. E inundam 8.300 quilômetros quadrados, em terras peruanas e bolivianas, onde guardam tesouros históricos, culturais, humanos. Parece um mar, com muitas ilhas.

Ilhas

O saveiro com duas dezenas de passageiros segue em direção a um “arquipélago” formado pelos Uros, etnia pré-inca que se estabeleceu ali depois de fugir do outro extremo, na Bolívia, de batalhas por disputa de território. Essas comunidades se sentiram mais seguras longe da terra firme. Para isso, aproveitaram uma matéria-prima naturalmente fornecida por aquele trecho mais raso do lago, a totora, espécie de junco que cresce em abundância. 

Montagem Titicaca

Arquipélago de Uros tem 64 ilhas flutuantes, onde vivem 1.500 pessoas. As gôndolas turísticas, feitas de junco e 4 mil garrafas pet (Fotos: Cláudia Motta)

Atracamos junto à Ilha de Santa Maria. Assemelhada a uma balsa, seu “casco”, dois metros água adentro, é feito do húmus da própria totora. Seu “convés”, também todo à base de juncos entrelaçados, tem espessura de um metro. A construção é ancorada – “para não ir embora para a Bolívia”, diz o morador Jacinto. 

Jacinto e Elza (Fotos: Paulo Donizetti de Souza)

Na comunidade chefiada por ele e pela mulher, Elvira, vivem nove famílias, 36 pessoas, acomodadas em pequenas casas feitas adivinhe do quê? Totora. Em questão de minutos, o chefe dá uma aula da arquitetura, da engenharia e do design locais. Trançando os ramos da planta, constrói uma maquete, com ilha, casinhas, utensílios, e explica como cada coisa funciona. 

Faz parte do roteiro. Se antes a comunidade de Uros vivia basicamente da pesca, do escambo de mercadorias e de animais, hoje o que garante a renda local são os turistas, pagando agências e guias, comprando seu artesanato – de junco, claro – e suas peças de tear. 

Jacinto, líder da Santa Maria, e a filha Elza. Junco é matéria-prima de tudo na ilha, é também alimento e faz bem para os dentes (Fotos: Paulo Donizetti de Souza)

Elza, a filha de Jacinto, mostra sua casa, com um metro e meio de pé-direito, e suas habilidades com as linhas extraídas dos pelos de uma alpaca, um dos camelidos (ao lado da lhama, do guanaco e da vicunha) que compõem a paisagem e a base da economia rural peruana. E oferece um pedaço de talo de junco – sim, ainda se pode comer o danado, rico em iodo e com propriedades medicinais, como prevenir de artrites e reumatismos à formação de bócio. Elza atribui ainda à totora os dentes perfeitos e brancos. Seu sorriso, de fato, brilha.

Flutuam no arquipélago de Uros 64 ilhas de totora, onde vivem 1.500 pessoas. O centro médico e as escolas também boiam. A viagem é numa pequena embarcação, uma espécie de gôndola de junco sobre uma jangada, que aproveita em sua base recursos da vida moderna: boiamos sobre 4 mil garrafas pet enquanto um grupo de mulheres de Santa Maria se reúne na beirada. 

Dicas do Peru

  • Um real corresponde a 1,3 do novo sol, a moeda peruana.  Existem muitas casas de câmbio, mas é preciso ter cuidado e pesquisar, porque as cotações variam muito de uma para outra.
  • A comida é barata, mas recomenda-se cuidado com os alimentos crus e a água. Experimente sem medo o pisco sour, o cevice, algumas das muitas variações de milho e das 3 mil espécies de batatas catalogadas.
    Tecelã peruana (Foto: Paulo Donizetti de Souza)
  • Há muitas malhas. A dica é passar a mão antes e só comprar as muito agradáveis ao toque. Caso contrário, vai pinicar. São feitas de lãs de lhama (pinica), alpaca (prefira) e vicunha (caríssima).
  • Em Puno, além do Titicaca, o sítio arqueológico Sillustani vale uma visita. É um cemitério inca, com construções de vários tipos e tamanhos, demonstra o valor daquela cultura para a passagem após a morte. A Lagoa Umayo (foto abaixo) faz parte do cenário espetacular
  • Há viagens para todos os gostos, com boas opções de trem, ônibus e avião. As mais procuradas são para Arequipa, Cusco/Machu Pichu e Puno/Titicaca.
  • Saia de casa com tudo planejado, evite surpresas. Deixar para pesquisar no local pensando em economizar pode ter efeito oposto. Procure guias especializados, de preferência exclusivos, para viajar no seu ritmo, sem corre-corre, com mais atenção para apreciar e entender culturas locais.

Acenam e cantam em aimará, a língua nativa e preservada de geração em geração. Atravessamos a rua de água. Na vizinha da frente, um centro de suvenires, onde também se pode petiscar salgados e tomar uma Cuzqueña, cerveja das boas. Ali mesmo o saveiro nos recolhe, e a empreitada continua.

Duas horas lago adentro e chegamos à Ilha Taquile. Essa é de terra, pedras, vegetação, também com muita história e um morro de 200 metros de altura para subir. A paisagem ajuda. A ilha foi ocupada há 3.500 anos por povos pré-incas da cultura pucara – primeira a desenvolver na região um modelo de assentamento com traços urbanos e a exercer pleno domínio sobre os recursos naturais. Quando os incas chegaram, nos anos 900 depois de Cristo, tornou-se centro religioso de adoração ao sol e à lua. Hoje é ocupada por seis comunidades indígenas, que formam uma população de 2 mil pessoas. O idioma nativo, o quíchua, é ensinado em casa e nas escolas. Assim como a cultura que define hábitos, alimentação, lazer e vestuário é passada serenamente de pais para filhos. Os homens mais velhos se cumprimentam trocando folhas de coca de seus alforjes. É também masculino o ato de fazer o tear enquanto caminham. As mulheres fiam, os homens tecem. Taquile é famosa por produzir os melhores teares de alpaca do Peru.

Visitamos uma família e provamos sua comida – muito simples, e muito boa, com legumes, batatas, pescado –, para depois  assistir a uma apresentação de música e dança folclóricas. Não dá para entender a letra da canção quíchua, mas a coreografia revela um enredo de adoração à terra, ao trabalho e a seus frutos. Emocionante. 

Enquanto essa comunidade nos recebe, outras têm de fechar suas casas. Como a presença de turistas é controlada, os anfitriões se revezam. A cada semana, o guia Blady leva seus convidados a uma casa diferente. A economia de partilha garante o sustento da população e a sustentabilidade da ilha.

Lagoa Umayo - Puno (Foto: Paulo Donizetti de Souza)

Lagoa Umayo, no sítio arqueológico de Sillustani: convite à contemplação silenciosa (Foto: Paulo Donizetti de Souza)

Nos pequenos arcos, portais de entrada e saída de uma comunidade para outra, a cruz católica com a inscrição “Inti” (sol), em vez de “Inri”, transmite um recado daquela nação indígena quíchua aos colonizadores espanhóis: aceitamos a sua igreja, mas preservamos o nosso deus. Os olhares serenos e cordiais são parte de um ambiente harmônico, e de uma composição cenográfica natural indescritível. O traçado da ilha, o lago imenso a perder de vista, a minúscula cordilheira coberta de gelo ao fundo da paisagem provocam a sensação de que o passeio foi mal calculado. A vontade é de ficar enfiado naquela atmosfera cheia de histórias e mistérios por um ou dois dias. Talvez um pouco mais. 

Colaborou Cláudia Motta