A cultura é a voz da alma

Quinze anos depois de 'Cidade de Deus', Paulo Lins lança 'Desde Que o Samba É Samba' e assinala: a perseguição à cultura negra prova que o racismo no país persiste

No Brasil, traficante pobre é mais vítima do que provocador de violência. Ninguém fala em tráfico de armas. E quem tem o controle? Polícia e Forças Armadas. Esse pessoal coloca armas nas favelas. E ninguém fala nada (Foto:Eric Garault)

Depois do sucesso de seu livro de estreia, Cidade de Deus, o escritor carioca Paulo Lins demorou nada menos que 15 anos para lançar sua segunda obra, Desde Que o Samba É Samba. O que não quer dizer que tenha passado por algum bloqueio criativo. Nesse período, Lins ganhou o mundo e se tornou um roteirista requisitado. Após a repercussão mundial da adaptação cinematográfica do livro em que elabora as memórias coletivas do bairro onde passou parte da infância, na zona oeste do Rio, o autor escreveu para vários filmes, como Quase Dois Irmãos, de Lucia Murat. Atualmente, é contratado da TV Globo e trabalha em projetos com diretores conceituados, como Luiz Fernando Carvalho.

Como escritor, Paulo Lins foi um dos precursores da onda de livros e filmes que abordam o universo das periferias, favelas e prisões brasileiras, chamada por muitos de literatura marginal, ou periférica – termos que Lins contesta. O que era alternativo virou mainstream? Hoje, Lins é contratado da Planeta, sexto maior grupo editorial do mundo.

Desde Que o Samba É Samba é um romance que visita as fontes negras cariocas de quase 100 anos atrás para contar como surgiu essa que Lins considera uma “arte de vanguarda”. Afinal, como ele argumenta, o samba, em sua raiz, foi fruto da elaboração consciente de um grupo pequeno de artistas geniais, com manifesto e proposta estética cuidadosamente elaborados. Entre madrugadas de vivência e pesquisa em terreiros e malocas, ele revive também sua própria passagem, ainda jovem, por escolas de samba, como músico ou compositor.

Em meio a prostitutas e malandros, centros de umbanda e rodas de capoeira, giram sambistas consagrados e intelectuais modernistas a desafiar a tênue linha entre real e ficção. Ícones da história de nossa cultura, como os músicos Bide e Ismael Silva ou o escritor paulista Mário de Andrade, brigam, compõem e sonham junto com os imaginários Brancura, sambista e cafetão, e o português Sodré, em comoventes disputas por amor e território.

O resultado é um caldo grosso e saboroso, cozido a partir da memória coletiva negra da capital fluminense – e já pressagiando, como notaram alguns, a violência institucional que se consolidaria décadas depois, em tempos de Cidade de Deus.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à Revista do Brasil no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.

Você descreve o contexto de surgimento do samba, em que a herança negra era arma de resistência, formava consciências. Essa cultura depois vira uma espécie de ativo econômico. Tudo se dando em um pedaço empobrecido do Rio, onde acontecia toda uma luta pelo direito de ocupar a cidade. Como isso tudo se conjugava?

A maior luta que o ser humano pode ter é defender a sua cultura. A cultura é o espelho da nossa alma, é a própria alma da gente. Tem uma frase do Arnaldo Antunes: “O pensamento vem de fora e pensa que vem de dentro”. Você recebe a sua cultura dos seus avós, dos seus antepassados, da sua história, sua religião, sua fé. É a forma que você tem de confraternizar com seu povo, com seus antepassados, a sua religião, onde salva seus deuses. É a coisa mais forte que o ser humano tem. Se não tiver cultura, ele não é ser humano. É o que identifica, o que diferencia e une ao mesmo tempo os povos.

Só que há um preconceito. A cultura da qual nós estamos falando é uma cultura do pós-escravidão. De homens libertos, que só tinham a ela como palma de salvação, para continuar unidos, fortes, adorar seus orixás. Eu amo todas as culturas. Sei que várias tiveram muitos problemas, foram perseguidas – pelo nazismo, por exemplo –, mas superaram. Acontece que até hoje a cultura do negro no Brasil é perseguida. E eles fizeram a escola de samba, a umbanda, o candomblé, debaixo de pancada. A polícia, o Estado, batia. O negro teve de se impor para continuar fazendo a sua congregação. “Um evento que congraça gente de todas as raças numa mesma emoção”, como diz o samba do meu compadre Luiz Carlos da Vila, da Vila Isabel.

O carnaval, o samba, a umbanda, os terreiros de candomblé, tudo isso foi uma resistência que deu certo. O negro só conseguiu maior estabilidade dentro da sociedade brasileira através da sua cultura. Inventar o samba foi como dar um beijo na boca de um canhão. E hoje você tem aí os grandes astros, os nomes, as tradições, os monstros sagrados do samba, como Ismael Silva, Cartola, pessoas que nunca iriam aparecer por outra produção que não fosse a cultural. A mesma coisa que fizeram com o samba, hoje fazem com o funk e o hip-hop. É coisa de bandido… O preconceito contra a cultura e a religião negra continua. Eu não sei quando vai acabar esse racismo… Quando uma pessoa anda do seu lado e é racista, não gosta de negro, eu quero mais é que ela se dane. Agora, quando você não consegue emprego, quando as instituições, o Estado, são racistas, aí é que a coisa pega.

“A gente fala que o pobre tem de ler, mas o rico também, senão não seria tão arrogante. São poucas pessoas que são dadas às artes, à literatura. Isso é o que modifica o ser humano, é o conhecimento, é poder compartilhar ideias, é a filosofia, a poesia, a literatura. Isso é o que torna um país diferenciado”

Todo mundo conta ainda que a religião da umbanda, o candomblé, é bruxaria – coisa que não existe. Bruxaria é uma coisa europeia. Ninguém é bruxo, o pessoal só quer saudar seus orixás, suas pombagiras, seus exus. Dizem que o Exu é o diabo. O diabo só existe lá na Igreja Católica, lá na Bíblia. Não existe diabo na umbanda e no candomblé.

A gente fala que o pobre tem de ler, mas o rico também, senão não seria tão arrogante. O que modifica o ser humano é o saber, poder compartilhar ideias, é a filosofia. Isso é o que torna um país diferenciado (Foto:Eric Garault)Uma das facetas dessa interação entre cultura popular e mercado é o abafamento, o ocultamento da autoria. Muitos sambas tinham sua autoria vendida, por exemplo… 

Sempre houve exploração. As classes mais privilegiadas sempre usufruíram do trabalho das demais. Na escravidão foi assim, no capitalismo é assim. A gente trabalha limpando tudo, fazendo as coisas mais chatas, repetitivas. Não é um trabalho produtivo, é um trabalho para o conforto do outro, um trabalho escravo. A mesma coisa foi na cultura. O normal era comprar a autoria do samba. Não vinha o nome da pessoa. Isso é uma falha da humanidade, não foi só o Francisco Alves que fez isso. Agora, ninguém foge da história. Quem é Francisco Alves, quem é Ismael Silva hoje? A história deu o troco. Ismael ainda conseguiu usufruir um pouco do trabalho do seu, porque morreu quase nos anos 1980. Mas os outros que venderam samba não tiveram essa possibilidade. Morreram pobres, assassinados…

Temas ligados à periferia, ao morro, à favela, que há pouco tempo eram tabus, ganharam destaque. Da invisibilidade, passaram aos holofotes. Quando você publicou Cidade de Deus, a abertura para essa temática era uma. Hoje é outra. Houve uma virada na mentalidade?

Na verdade, não havia ninguém – nem o pessoal do samba – que se preocupasse muito com a questão do racismo no Brasil. O pessoal dos anos 1960, a turma mais engajada, que foi expulsa do Brasil, estava mais preocupada com o fim da ditadura, a liberdade de expressão. Se bem que dentro da questão da liberdade de expressão estava isso de você poder falar de favela… Você não conseguiria fazer um livro, um filme como Cidade de Deus na ditadura. Não passaria na censura. Depois que acabou a ditadura veio essa necessidade de escrever, pesquisar sobre isso. A própria academia não estava preocupada. Poucos foram os trabalhos sobre essas questões – agora tem um monte.

O olhar de dentro também não existia – só a Carolina de Jesus mesmo. O pessoal começou a ler, desenvolver, muita gente lendo, escrevendo. Hoje na favela tem bandido, tem traficante, aquilo tudo, mas tem um pessoal que lê, estuda, produz essas coisas, corre atrás. Tem muito. Sempre teve. O pessoal sempre lutou. Em péssimas condições, mas sempre lutou. Só que não tinha visibilidade, o racismo não deixava… Você não conseguia emprego. Tem muita gente com 2º grau que trabalha na obra, trabalha de lixeiro, que fez faculdade e não consegue emprego. Puro racismo. A gente vive num país racista. Então, esse pessoal está sobressaindo. Tem tanta gente escrevendo agora, produzindo. Acima de tudo, pensando o Brasil de uma outra forma, botando isso no papel, pensando sua própria origem…

O samba, o carnaval, essas invenções da resistência negra foram assimiladas, absorvidas pelo sistema?

A cultura tem o dom de se misturar. Isso é bom. Mas você está falando de poder, política, dominação – isso é outra coisa. Quando você vê o samba mudando, se adequando ao desfile, isso é normal, a cultura vai mudar sempre. Agora, o comando, o dinheiro, o show business, aí tem uma máfia que sempre domina tudo. Eles vão dominando, se apropriando para produzir grana, sem interesse nenhum de alma. Mas, de certa forma, muitos se beneficiaram. Você vê grandes cantores que vieram do nada, vários ritmistas que viajaram o mundo. O samba continua vivo na mão desses homens que vieram dali, isso passou de pai pra filho. É o caso do Diogo Nogueira, que é um excelente sambista, da Mart’nália, que cresceu ali no meio, Seu Jorge, que veio lá do Gogó da Ema… São pessoas que vieram da favela e hoje são relíquias, preciosidades do samba. E ao mesmo tempo a diretoria das escolas são pessoas de fora. Mas aí é política, que sempre esteve associada. E, de certa forma, o pessoal deixa.

Em 2012, a Vila Isabel publicou anúncio à procura de negros para desfilar…

É, inimaginável… Mas na bateria tem negro, os passistas são negros, a porta-bandeira e o mestre-sala também. Aquilo que depende da essência do samba, de talento e de vivência, de aprender na infância, a maioria vai ser sempre o pessoal que está lá – independentemente de ser negro ou não, mas o pessoal da comunidade mesmo, que foi criado naquele meio. Agora, as coisas que precisam mais para merchandising, aí pode vir qualquer um, nego vai, paga uma grana, vai ganhar dinheiro, pinta e borda, toca um rebu e vamos embora (risos).

Você já escreveu sobre o Rio dos anos 1970, 1980, agora do início do século 20. E como avalia o Rio de Janeiro atual, com tráfico, UPPs, milícias, essa relação entre polícia e política?

A milícia foi uma coisa que a sociedade e os governos aprovaram. Isso começou lá no Rio das Pedras (no Rio), um grupo de policiais, com a expulsão de bandidos… Chamava-se “polícia mineira”. Agora, a coisa está nesse pé que é muito mais difícil de acabar porque tem pessoas do poder envolvidas. Não é um poder paralelo, é poder misturado, entranhado. São policiais, deputados que estão lá dentro. É um mal que a própria sociedade criou: tanto os ricos como a classe média, os pobres, a polícia, os governos: todos apoiaram as primeiras milícias porque matavam os bandidos e tal. E o pessoal não queria os bandidos, porque eles atacavam os pobres – sempre quem sofreu mais com a violência foram os próprios pobres, favelados.

Outra coisa que não se fala muito: aqui no Brasil, o traficante pobre, que é um pobre coitado, é visto como o grande causador de tudo. Isso é uma mentira. O traficante é mais vítima que provocador da violência. Existe tráfico de drogas em Londres, em Barcelona, em Nova York, em Berlim, nas cidades mais ricas e mais organizadas do mu

Por quê?

Porque não tem racismo como aqui, a maioria dos pobres não são negros, nordestinos, descendentes de indígenas como aqui – porque os indígenas sofrem como os negros, até mais. As pessoas mais renegadas, mais baixas da sociedade, são a mulher negra e a mulher indígena… Enquanto isso ninguém fala em tráfico de armas. Parece que não existe. E quem produz armas? São as fábricas oficiais, autorizadas. Quem tem o controle? A polícia e as Forças Armadas. Esse pessoal que manipula as armas, a fabricação, o controle, a distribuição. Esse pessoal é que coloca armas nas favelas. E ninguém fala nada. Eu fico um pouco nervoso com esse negócio… E colocam o traficante de drogas como se fosse um monstro. E não é.

Monstro foi quem levou a arma para a favela e deu na mão de quem está com fome, triste, ferrado, abaixo da sociedade. Dá arma na mão de um adolescente que não entende por que é chamado de macaco o tempo todo, por que o pai dele não consegue emprego, por que a mãe dele tem de ser empregada doméstica, por que ele não tem uma profissão digna, não come direito, não tem um hospital bom, uma escola boa. Daí, pegam e dão um quilo de cocaína pra ele e dão uma arma. E ele vai fazer o quê? Vai sair dando tiro. Ele vai matar. E botam os policiais, que também são pobres, para brigar aí, junto… Fica o poder colocando pobre com pobre pra brigar o tempo todo. Sabe? o Brasil é isso. O Brasil não presta. O Brasil é um país de merda. Desculpa eu falar assim… É que eu fico nervoso com tudo isso.

E quanto às UPPs?

Sobre as UPPs… Fica esse governador, que é um enganador, esse prefeito… São dois yuppies fora de época, dois playboyzinhos, fazendo UPP, e a escola continua ruim. Como é que pode o pobre não ter uma escola? A escola tem de ser show, tinha de ser o maior investimento que se poderia fazer num estado. Tem de ter uma escola boa, um lugar aonde a criança vá e se sinta bem, seja acolhida, protegida, educada. A escola tem de ser um estandarte de cultura, de vivência, de jogos, de esporte, aquilo que o ser humano precisa de verdade.

Há uma lógica espacial na configuração das UPPs. Isso tem a ver com o projeto da Olimpíada, da Copa…

Lógico, na questão deles. Tem de ter segurança quem sempre teve mais segurança. As áreas mais protegidas, que têm mais policiais, são as áreas dos ricos, esses caras não mudaram nada em relação a isso. A polícia, quando vai para as comunidades, vai para esculachar. Essa polícia não presta, está sempre a serviço de quem tem dinheiro. Sempre foi assim. Os hospitais estão aí, nego morrendo na porta, sem poder entrar.

Hoje, fala-se em uma “nova classe média”. Há uma mudança de fato no país?

Surgiu mesmo uma nova classe média no governo Lula, isso a gente não pode negar. Mas é muito pequena em relação ao que o Brasil precisa. E, também, é uma classe média que tem plano de saúde? Tem boa escola? Ou uma classe média que comprou um carro a prestação em 32 mil vezes, uma classe média que fica comprando os produtos que são anunciados na publicidade? Classe média é educação.

A gente fala que o pobre tem de ler, mas o rico também, senão não seria tão arrogante assim. As pessoas que estão no mundo da leitura são um grupo muito pequeno. São poucas pessoas que são dadas às artes, à literatura. Isso é o que modifica o ser humano, é o conhecimento, é poder compartilhar ideias, é a filosofia, a poesia, a literatura. Isso é o que torna um país diferenciado.