Afilhados do sertão

A força do “Padim” atrai a Juazeiro do Norte (CE) fiéis de todo canto. O pau de arara deu lugar a ônibus confortáveis e, pelas ruas, casas e pousadas estão cheias de gente

(Foto: Léo Drummond)

“Em Juazeiro tempo bom, 37 graus.” Com esse anúncio, chego à terra de Padre Cícero esperando duas coisas: muito calor e muita gente. É tempo de Romaria de Nossa Senhora das Dores, e a cidade está repleta de fiéis. Padre Cícero deixou um importante legado para o município de Juazeiro do Norte: o público da peregrinação religiosa durante o ano, nas suas cinco romarias tradicionais, gira a economia, fazendo com que a cidade seja hoje um grande centro urbano com 250 mil habitantes.

Juazeiro fica no Vale do Cariri, uma região fantástica no sul do Ceará com uma história bem anterior à fé que hoje move montanhas de fiéis. Existem vários sítios arqueológicos nos arredores, e a cultura regional também é muito forte por lá, representada por músicos, gravadores, grupos folclóricos e um belíssimo artesanato. Mesmo com toda essa riqueza, a cidade ficou conhecida em todo o Brasil por seu personagem mais ilustre. Cícero Romão Batista foi padre, político, protetor dos pobres, amigo dos coronéis, reverenciado pelos cangaceiros e messias. Há muito a lenda já ultrapassou o homem, e não existe uma só pessoa na cidade que não tenha uma história pra contar sobre o “Padim”. E, em tempos de romaria, o que não falta são ouvidos para elas.

Além das histórias, seu nome está por todo lado: comércio, ruas, praças, monumentos, imagens e placas reforçam a todo momento a reverência do local pela figura de cara fechada que arrasta multidões para o calor do sertão.

Devotos deixam mensagens, fazem pedidos ao padrinho (Foto:Léo Drummond)

Os fiéis vêm de todo canto, com forte presença de cearenses e pernambucanos. O pau de arara deu lugar a ônibus confortáveis e, pelas ruas, casas e pousadas estão cheias de gente. A romaria, todo mês de setembro, tem seu auge no dia 15. Eles peregrinam pela cidade, pelas inúmeras igrejas e locais de devoção, e os mais fervorosos fazem a pé a caminhada de sete quilômetros até a Colina do Horto, onde se encontra a imponente estátua de 27 metros de altura a vigiar a região. Devotos deixam mensagens, passam três vezes sob a base da bengala, fazem pedidos ao padrinho e até colam santinhos de campanha política.
O traje virou malha, a comida é batata frita e o artesanato é “made in China”. A ordem natural das coisas, dizem alguns; mas, esteticamente, o que vi foi a transformação de uma cultura regional em uma cultura padronizada, de quinquilharias.

A romaria se encerra com uma procissão que percorre o centro da cidade com certa dificuldade, pois é grande o número de pessoas. Mas é uma multidão tranquila, paciente, que aos poucos vai abrindo espaço e tudo flui com muita naturalidade, proporcionando um belo e calmo espetáculo. No rosto das pessoas, percebo um misto de alegria e cansaço, pois o dia seguinte é tempo de arrumar as coisas e partir, algumas para bem longe.

A energia gerada por tantas pessoas em uma fé coletiva atrai o olhar dos fotógrafos desde sempre, e no Brasil não faltam mestres nessa arte. Parte do romantismo desses eventos, porém, está acabando. As pessoas em trajes “sertanejos”, se fartando de comidas “típicas” e comprando “artesanato” local estão desaparecendo.

Romaria da Nossa Senhora das Dores

A fé, entretanto, permanece. E mostra que a força que emana dessa região incrível não se dobra às mudanças e ao tempo. O espírito do Padim ainda ecoa soberano nessa terras. E, com ele, a resistência do sertanejo se mantém. Mas até quando?

 

 

Romaria da Nossa Senhora das Dores

 

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Oásis

OásisA região do Cariri ficou nacionalmente famosa no final dos anos 1950. A canção O Último Pau de Arara – embora inspirada numa região fértil e bem servida de verde e de chuvas – tornou-se uma espécie de hino a explicar a dor do nordestino quando tem de deixar sua terra para buscar a sobrevivência no Sul/Sudeste e a celebrar seu orgulho e autoestima:

A vida aqui só é ruim
Quando não chove no chão
Mas se chover, dá de tudo
Fartura tem de montão
Tomara que chova logo
Tomara, meu Deus, tomara
Só deixo meu Cariri
No último pau de arara

Enquanto a minha vaquinha
Tiver o couro e o osso
E puder com o chocalho
Pendurado no pescoço
Vou ficando por aqui
Que Deus do céu me ajude
Só deixo meu Cariri
No último pau de arara

Quem sai da terra natal
em outro canto não para
Só deixo o meu Cariri
No último pau de arara (…)

Pela riqueza poética, harmônica e histórica, ficou conhecida na voz de músicos como Luiz Gonzaga, Fagner, Gilberto Gil, Clara Nunes, Maria Bethânia, Jair Rodrigues, entre outros. A obra-prima, de 1956, é de Venâncio & Corumbá, uma das mais longevas duplas caipiras do país (trabalharam juntos de 1928 a 1968), acompanhados na composição por José Guimarães. A dupla saiu de Pernambuco em 1940, fez sucesso em programas da antiga Rádio Nacional, se estabeleceu em São Paulo e foi ativista da divulgação e da preservação da cultura e dos ritmos sertanejos nordestinos.

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