Muito além do gibi

Do terror ao jornalismo, HQs no Brasil driblam crises, extrapolam formatos, invadem livrarias e conquistam relevo como cultura pop

Você conhece alguém que vive de quadrinhos no Brasil? O argentino Rodolfo Zalla, radicado no país desde 1963, responde que não. “É impossível, paga-se mal, e não apenas aqui, mas no mundo todo.” Apesar da afirmação, o prolífico quadrinista há mais de seis décadas dedica-se diariamente ao ofício. E é considerado um dos grandes mestres vivos das histórias em quadrinhos de terror – gênero que fez sucesso principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Aos 81 anos, Zalla nem pensa em parar. Acabam de chegar às livrarias novas crias do artista.

Um dos lançamentos, Drácula, reúne oito histórias feitas para a antológica revista Mestres do Terror, do célebre vampiro criado pelo irlandês Bram Stoker. De brinde, o leitor leva ainda três inéditas, entre elas a primeira adaptação brasileira de O Convidado de Drácula, feita só a lápis. “É um texto muito pouco conhecido escrito por Stoker”, diz o desenhista. O conto foi publicado nos Estados Unidos após a morte do autor, em 1914. O pacote tem ainda o livro Desenhando Carruagens e um exemplar da revista Calafrio, que arrebanhou uma legião de fãs nos anos 1980 e voltou a ser editada, sob direção de Zalla, no ano passado, quando a revista completaria 30 anos. “Resolvemos retomá-la do número em que havia parado, em 1993, por isso voltou no 53”, explica. A revista é publicada trimestralmente e distribuída apenas em livrarias.

A extensa obra do veterano é homenageada no documentário Ao Mestre com Carinho, produção independente do quadrinista Marcio Baraldi. O filme busca reconhecer o que o autor considera a melhor geração da HQ nacional. “Zalla faz parte de uma turma que sempre lutou para que o quadrinho nacional fosse mais forte que o estrangeiro, o que infelizmente não aconteceu”, afirma. “Muitos da geração do Zalla já morreram, como Jayme Cortez, Claudio Seto, e pouca gente conhece a história e a obra desses mestres”, diz o diretor.

Beraldi e Zalla: homenagem ao veterano

Logo que chegou ao Brasil, Zalla foi diretor de arte da Taika, editora voltada totalmente para a HQ brasileira, que produziu milhares de páginas de faroeste, super-heróis e terror. Depois lançou, já pela própria editora, a D-Arte, os gibis, Calafrio e Mestres do Terror, que duraram até o começo dos anos 1990. O artista ainda levou para os quadrinhos a história do Brasil e da humanidade para livros escolares, o que assegurou sua sobrevivência financeira. Zalla vê o momento atual com otimismo. “Ha uma nova onda de efervescência surgindo em torno dos quadrinhos, estão aparecendo selos novos, não tradicionais, independentes.”

 

É graphic novel!

Os quadrinhos conquistaram status de arte, sua linguagem amadureceu, incorporaram roupagens e seu formato há muito extrapolou o antigo e conhecido gibi. Um capítulo dessa mudança ocorreu há anos, nos Estados Unidos, segundo Álvaro de Moya, autor de vários livros sobre o assunto. Ele argumenta que os caminhos alternativos começaram a surgir, em parte, graças ao seu amigo, o americano Will Eisner (1914-2005), que teria enviado a uma editora americana de livros A Contract with God. Questionado pelo editor sobre o porquê do material, Eisner afirmou: “Isso é Graphic Novel!” (novela gráfica).

O livro publicado nos Estados Unidos em 1978 deu mais relevo à arte dos quadrinhos no universo da cultura pop. As HQs começaram a ocupar espaço também nas livrarias. “Enquanto os quadrinhos das bancas depois de 40 dias voltavam em encalhe, esses mesmos quadrinhos encadernados ganharam vida longa nas livrarias”, explica Moya. “O The New York Times tem uma lista das graphic novels mais vendidas junto com a dos livros.” O caminho aberto pelos álbuns de luxo, iniciativa também reivindicada pelos franceses, com Tintim e Asterix, possibilitou o surgimento no Brasil de novos editores especializados em quadrinhos para livrarias.

Cidade de Deus: o filme no papel  Inspirado no livro homônimo de Paulo Lins, que acaba de completar dez anos, o filme terá uma versão em quadrinhos, encomendada pelo cineasta Fernando Meirelles. Quem assina o roteiro e os desenhos é o quadrinista e escritor MJ Macedo

Crescem os espaços para a HQ e multiplicam-se os formatos. Adaptações de sucessos do cinema, por exemplo, que sempre foi coisa de blockbuster americano, em geral de super-herói, começam a servir também ao cinema nacional. Cidade de Deus, inspirado no livro homônimo de Paulo Lins, acaba de completar dez anos e terá uma versão em quadrinhos. Encomendada pelo cineasta Fernando Meirelles e coordenada pelo diretor Ricardo Laganaro, da produtora O2, a HQ deve ser lançada em dezembro. Quem assina o roteiro e os desenhos é o quadrinista e escritor MJ Macedo.

“O Meirelles procurava alguém para ajudar na adaptação. Eu já havia esboçado um interesse anterior em ajudar, mesmo antes de saber que se tratava do Cidade de Deus. Quando percebi já estava conversando com o Laganaro e o próprio Fernando”, diz Macedo. “Tive de assistir ao filme repetidamente e ir desmembrando as cenas. Ver o que funcionaria em narrativa ou diálogo. A ideia era ser bem fiel ao filme, mas era necessário averiguar o que funcionava nos quadrinhos. Às vezes uma tomada ou ângulo fica ótimo num telão, com vozes, atuação e trilha sonora, mas pode perder força numa página impressa.”

Grande parte do material, segundo MJ Macedo, está pronta há quase um ano. A ideia era lançar na Bienal do Livro agora em agosto, mas problemas com direitos de uso de imagem, envolvendo de atores a figurantes, colocou o projeto na geladeira. “Meirelles achou melhor fazer um levantamento de quais pessoas autorizaram ter o rosto reproduzido, ou não, na HQ”, diz o quadrinista.

A celebração em torno de Cidade de Deus não é pela simples efeméride de seus dez anos recém-completados. O filme foi um marco na retomada do cinema nacional, embora por meio de um modelo criticado por muitos, de coprodução com grandes majors americanas, que contam ainda com atrativos incentivos através de um artigo da Lei do Audiovisual. O longa de Meirelles também escancara em escala internacional a dura realidade dos morros cariocas, além de ampliar o foco sobre as comunidades periféricas.

Aliás, assunto muito familiar ao escritor Reginaldo Ferreira, o Ferréz, autor de Capão Pecado (editora Objetiva, 256 pág.). A vida nas quebradas paulistanas é o tema da HQ Desterro (editora Anadarco), que Ferréz lança em dezembro ao lado do quadrinista Alexandre de Maio. “A história mostra que não precisa morrer pra ser enterrado em São Paulo”, diz ele, que é fã de Cidade de Deus: “Do livro de Paulo Lins ao roteiro de Bráulio Mantovani, e a direção de Meirelles, todos mandaram muito bem. Abriram portas. O Brasil entrou de vez no ringue para mostrar que sabe fazer do seu jeito”.

 

Reportagem e quadros

De Maio está na ponta de uma das principais renovações da linguagem da HQ no Brasil, a reportagem em quadrinhos. Ele começou a produzir algumas matérias em quadrinhos com viés cultural no site Catraca Livre, pouco depois encontrou o jornalista (e videoativista) CarlosCarlos, repórter da TVT, parceira de conteúdo da Rede Brasil Atual. Juntos passaram a produzir um material mais denso, publicado mensalmente na revista Fórum. “O que a gente faz é uma entrevista que se transforma em desenhos, ou seja, não perde em nada pra uma entrevista totalmente escrita de uma revista, aliás, tem mais recursos”, defende o repórter.

“Não são quadrinhos de ficção, as pessoas quando veem já perguntam: ‘Qual é o personagem’ ou ‘qual a historinha?’, pois estão acostumadas desde a infância a associar quadrinhos com heróis e coisas do tipo. E não. Não tem ‘personagem’”, ressalta CarlosCarlos. A dupla encara temas espinhosos, como a luta por moradia ou a “cracolândia”. Já fizeram reportagem com uma liderança que testemunhou o massacre de Corumbiara, sobre o genocídio dos Guarani-Kaiowá, o sistema carcerário, a violência contra jovens negros e pobres na periferia. Estariam eles reeditando em HQ a antiga parceria repórter-fotógrafo que marcou a época das grandes reportagens?

Sem herói ou vilão: pura realidade  O quadrinista Alexandre de Maio juntou-se ao repórter CarlosCarlos, da TVT, para produzir HQs de não ficção para a revista Fórum. São entrevistas que se transformam em desenhos

A inspiração para as pautas, segundo CarlosCarlos, não vem do jornalista e quadrinista Joe Sacco, que consagrou o formato, cobrindo em HQs os bastidores de conflitos como o dos Bálcãs ou o drama dos palestinos sob a ocupação israelense. Mas a pegada “underground” é semelhante: “O que me inspira são os anônimos de toda parte, gente desconhecida que faz este país girar e crescer, mas não tem o nome escrito em placa de rua e afins”.

E as mudanças não param. Desde o surgimento dos quadrinhos, muita coisa mudou. Reconhecidas como arte, hoje as HQs podem ser apreciadas até na parede de casa. A ideia era colocar os quadrinhos na casa das pessoas, como pôsteres de arte ou filme, segundo o pai da ideia, o desenhista Rafael Coutinho. “Percebi que todo mundo tem uma parte da estante reservada a quadrinhos no Brasil hoje em dia, mas na parede não tinha.”

Com tanta gente produzindo quadrinhos, para estantes ou paredes, viver do ofício pode já não ser uma missão tão impossível. Wellington Srbek, da editora Nemo, atua na área desde 1996 e garante: “Nunca o mercado foi tão maduro e diversificado”. Srbek admite já ter havido produção maior, nos anos 1960, e que os quadrinhos tiveram grande relevância cultural nos anos 1970, mas a diversidade de gêneros e formatos encontrada hoje é inédita. Em parte isso se deve ao fato de que desde 2006 os quadrinhos fazem parte dos programas de compras de livros. Isso trouxe visibilidade, relevância e mais espaço para a HQ nas escolas, bibliotecas e nas livrarias. “Quadrinhos dá dinheiro e é hoje uma profissão no Brasil”, conclui.