Sem data para sair

No maior presídio da Bolívia, a polícia não se mete. Detentos administram a cidade-prisão e fazem as leis, enquanto aguardam meses por uma audiência. Muitos são brasileiros

Polícia do lado de fora. Lá dentro, quem garante a disciplina são os próprios presos, que uma vez por ano elegem a “regência” e esta escolhe seu exército, homens que andam uniformizados, armados com porrete (Foto: Desirée Martin/AFP)

Um muro alto e quatro horas de fila me separam do interior do maior presídio da Bolívia e um dos maiores da América Latina, onde vivem 4.400 pessoas. A temperatura passa dos 35oC e o chão de areia aumenta o desconforto das mulheres que esperam ali e tentam dar conta de seus sapatos de salto alto, crianças pequenas e sacolas. Não é dia de visitas no Centro de Reabilitação Santa Cruz Palmasola, na cidade de Santa Cruz de La Sierra. Ainda assim, cada uma espera pacientemente pelo encontro com seu companheiro. O passe é liberado com o pagamento de 10 pesos bolivianos (cerca de R$ 3) aos policiais.

As horas passam, histórias tristes começam a ser contadas e a cumplicidade entre as mulheres aumenta. Logo todas estarão dividindo chicletes, garrafas de água e maquiagem para o retoque, já que a pintura caprichosa desmancha sob o sol. Uma moça me pergunta a quem vou visitar. “Uns amigos brasileiros”, respondo de forma vaga, ao que ela conclui rapidamente: “Mil ocho certamente, como a maioria aqui”, referindo-se à Lei nº 1.008, de repressão ao tráfico de drogas. Diz que o companheiro “caiu” pelo mesmo motivo quatro meses antes, mas ainda não havia tido uma audiência sequer.

Segundo o advogado Hernán Mariobo, 80% dos detidos em Palmasola estão em prisão preventiva, aguardando julgamento. Muitos já ultrapassaram os três anos estabelecidos por lei. “Estamos falando de mais de mil pessoas com processos parados e, por consequência, com seus direitos violados. Nossa Defensoria Pública tem no máximo 20 pessoas. Elas precisam dar conta de todos esses processos, e é claro que a coisa se complica ainda mais para os estrangeiros.”

Além da lentidão com que os processos correm no Judiciário, segundo o advogado Alfredo Gomes Soares, especialista em casos de defesa, o sistema está imerso em corrupção. “Dói reconhecer isso, como um advogado boliviano: a corrupção prolifera. Por uma cópia de documento, para marcar nova audiência, é preciso falar com o secretário, com o juiz. Argumentam que a agenda está cheia, pedem dinheiro”, lamenta Soares. “Para fazer as notificações é pior. Um cliente espanhol de 70 anos teve a audiência cancelada cinco vezes por razões como chegar cinco minutos atrasado, o juiz ter um problema na escola do filho ou ainda porque era o Dia do Magistrado, e as audiências foram canceladas sem aviso.”

Enquanto esperamos, alguns homens chegam de táxi algemados. Mais tarde, Soares me diria que não há um veículo policial para entrar e sair dali. O preso deve pagar o táxi até Palmasola e, quando tem audiência marcada, deve pagar escolta policial e o transporte de ida e volta. Subitamente, um policial aparece à porta da prisão e diz que “ninguém deve pagar um peso sequer”. As mulheres comemoram e apontam para o motivo da gentileza: um jornalista com câmera em punho que espera a saída de um preso famoso.

Outro mundo

Nada em Palmasola se parece com o modelo penitenciário que conhecemos. Passada a pequena porta, vê-se um grande descampado lotado de lixo e urubus, cortado por uma rua que separa os pavilhões. Um de segurança máxima, conhecido como Chonchocorito – em referência a Chonchocoro, presídio de segurança máxima da capital La Paz –, outro reservado às mulheres, um terceiro para presos “comuns”, mais um para portadores de doenças contagiosas e, finalmente, um para policiais e autoridades, a “área vip”.

(Foto:Desirée Martin/AFP Photo)

Todos são trancados, porém a polícia fica do lado de fora. Lá dentro, quem garante a disciplina são os próprios presos, que uma vez por ano elegem a “regência”, espécie de administração penitenciária própria, e esta escolhe seu exército, conhecido como “disciplina”, homens que andam uniformizados, armados com porretes, para garantir o cumprimento das regras estipuladas pelos próprios presos em conjunto com a regência. Também há liberdade para punir o que achar necessário, inclusive pegando presos como “exemplos” para outros. A polícia não interfere da porta para dentro, a não ser em casos extremos que possam repercutir de forma negativa.

Ainda na zona neutra encontro Darly Franco, advogada brasileira que vive em Santa Cruz e há seis anos milita pela causa dos brasileiros presos em Palmasola. Ela é autora de tese na qual sugere a modificação do código penal para estrangeiros que cometeram delito de narcotráfico. “Na verdade, para qualquer delito penal o procedimento é o mesmo. Os artigos principais são o 233, 234 e 235, que dizem que a pessoa não vai em detenção preventiva se tiver trabalho, família, domicílio. Mas como a gente faz isso com estrangeiro?”, questiona. “Se o Decreto Supremo Migratório diz que nenhum turista pode exercer uma atividade econômica, como vamos demonstrar que ele tem trabalho lícito? Se eu estou de passagem e me pegam no aeroporto, como vou ter domicílio? Então é pouco provável que a pessoa consiga responder em liberdade. Foi pego, vai preso. E, se não tem dinheiro, vai ficar lá, por conta de todo o esquema de corrupção e da lentidão da Justiça.”

(Foto:Stephen Moore/gmancasefile.com)

Respeitada pelos detentos, principalmente os brasileiros aos quais defende como pode, mesmo que paguem pouco ou nada, Darly se oferece para me conduzir pelos pavilhões e ajuda a organizar as entrevistas. Quando entra, os presos pedem para carregar suas pastas, andam ao seu redor. “Praticamente vivi em Palmasola quando escrevi minha tese e, de lá para cá, venho uma vez por semana para tentar fazer com que esses processos andem”, explica.

Para entrar no PC4, destinado aos cumpridores de regime aberto, digo o nome de um brasileiro – os presos não serão identificados na reportagem por questão de segurança –, pago mais 5 pesos a outro policial que me carimba o pulso e entro no maior pavilhão, onde estão, naquele dia, 70 homens brasileiros, a terceira maior população de estrangeiros, segundo Darly, depois de peruanos e colombianos.

O paranaense Mario (nome fictício), de fala mansa, educado, nos conduz à igreja onde vive. Ele fugiu de uma penitenciária brasileira depois de cumprir dois anos de pena e vivia há mais de 20 anos na Bolívia quando brigou com um funcionário da fazenda onde trabalhava e o matou com um tiro de espingarda. Há dez anos em Palmasola, é o brasileiro mais antigo no PC4 e representante dos outros. Para sobreviver e pagar os cerca de 30 pesos diários que diz gastar com comida, itens de higiene e taxas não especificadas, faz redes e artesanato para vender dentro e fora da penitenciária, por meio de familiares de outros presos. No caminho, passamos por lojas de artesanato, lanchonetes, um campo de futebol, uma universidade de Direito e até uma pousada onde familiares e amigos dos presos podem se hospedar por alguns dias. Tudo criado, construído e administrado pelos internos.

Os detentos em melhor condição financeira – que recebem dinheiro da família, do tráfico ou de negócios internos – podem usufruir os bens de consumo e serviços, ter acesso a prostitutas que chegam de fora e do pavilhão de mulheres, conseguir drogas – segundo alguns, manipuladas em um laboratório local – e até incrementar a cela (alugada) com jacuzzi, televisão e cozinha. É permitido inclusive morar com a família. Segundo a Defensoria de Santa Cruz, mais de mil crianças vivem dentro de Palmasola. Elas saem para estudar em escolas próximas e voltam no fim do dia para dormir na “casa” dos pais.

Bairros da cidade-cadeia

Como em uma cidade, há “bairros” ricos e pobres. Quem não tem dinheiro para consumir os quitutes do comércio local – como a maioria dos brasileiros, que não tem família ou amigos que mandem dinheiro – se vira com o “rancho”, como é chamada a comida levada pela polícia até a porta de cada pavilhão, três vezes ao dia. Naquela quarta-feira de outubro, o rancho era uma papa de arroz com lentilha coberta com um caldo laranja não identificado.

Para dormir, há de se contar com a ajuda das igrejas ou ser um bom jogador de futebol: “Os bolivianos gostam muito do futebol brasileiro. Quem joga bem e participa dos campeonatos que a gente faz aqui recebe mais ajuda do pessoal”, conta Juan, preso por tentativa de estelionato há dois anos e três meses. “É claro que existe um regime penitenciário e alguns processos administrativos se encaixam na lei, mas o resto está totalmente à margem. O que acontece em Palmasola é o que acontece fora, quem tem mais recursos vive melhor”, explica o advogado Hernán Mariobo. “O que está na lei é o sistema-padrão, como o norte-americano, com celas, horários. Nossas leis e sistemas são copiados, mas a realidade superou. Os presos criaram seu próprio sistema.”

Antes de entrarmos na igreja, Marcelo, um moço jovem preso por roubo em San Matias, nos leva para conhecer “el bote”, uma cela pequena e escura usada como medida punitiva, sem janelas, trancada por barras de ferro, com vários homens. Um brasileiro se apresenta, diz que não se lembra há quantos dias está ali e que foi trancado porque se atrasou para a chamada. Comem o rancho que outros presos passam pela grade.

Marcelo levanta a camiseta para mostrar as costas tomadas por um tipo de doença de pele parecida com sarna, com grandes manchas vermelhas e algumas feridas. “Peguei esse bagulho quando fiquei mais de 70 dias no bote. Uns brasileiros fugiram e a “disciplina” nos pegou como exemplo. Bateram, quebraram minha costela e nos trancaram aí”, conta. “Só que para se consultar com o médico tem de pagar, para o remédio tem de pagar. Isso está se espalhando, mas não tenho o que fazer.”

As reclamações aparecem ora em uníssono, ora num caos de vozes em uma mistura de português, castelhano e gírias locais. “Nós, brasileiros, somos tratados como cachorros”, afirma um. “Queria eu ser tratado como perro, somos é lixo”, diz outro. “A comida é ruim, não temos onde dormir, não temos remédios”, grita um terceiro. Uma criança pequena escuta tudo atentamente, do colo do pai brasileiro. A mãe, boliviana, estava trabalhando.

Darly tenta organizar a bagunça, pede que as queixas sejam feitas por tema. Quase nenhum dos homens ali tem documentos, retidos pela polícia quando são pegos. Nenhum tem a cópia do processo e muitos estão há anos em prisão preventiva por crimes considerados de bagatela, como tentativa de furto – um brasileiro está há mais de três por tentar abrir um carro com um arame.

A reclamação maior é contra o consulado brasileiro. “O cônsul não vem aqui. Eles nos mandam cestas básicas de três em três meses”, diz um deles. “O advogado vem de vez em quando, anota nosso nome, diz que vai ajudar a mover o processo, e não faz nada”, acrescenta, referindo-se ao advogado boliviano contratado há mais de dez anos pelo consulado para agilizar os processos dos brasileiros. Os outros concordam. A reportagem teve acesso a uma carta escrita a mão, endereçada ao consulado, que diz: “Como cidadão brasileiro reclamo meus direitos a assistência social e médica e a um advogado. Não temos nada disso. Estamos abandonados, esperamos que nos atendam como pessoas. Estou sem documentos, com a condicional cumprida”.

Pés gelados

Depois do PC4, fomos a Chonchocorito. Por algum tempo se proibiu a visita de mulheres ao pavilhão de segurança máxima porque muitas eram estupradas. Éramos as únicas ali dentro. A advogada estava calma e ambientada, cumprimentava os homens pelo nome, perguntava sobre a família. Um boliviano reincidente veio mostrar seu bebê em um carrinho, dizendo que agora tomaria juízo.

Dois portões depois, estávamos, a doutora e eu, por nossa conta. Ali, nada de lojas nem lanchonetes: apenas um grande prédio cinza ao lado de um pequeno campo de futebol improvisado e uma espécie de pátio com bancos à sombra de um toldo. Um brasileiro vem ao nosso encontro e sai para chamar outros cinco. Enquanto conversamos, homens passam armados com pedaços de canos e armas brancas de todo tipo para saber o que está acontecendo.

(Foto:Desirée Martin/AFP Photo)

O tratamento é respeitoso. Um deles, com algo preso à cintura, passa de tempos em tempos para ouvir a conversa. Em Chonchocorito, porém, não estão os detentos mais perigosos ou que cometeram as “maiores atrocidades”, por assim dizer. A maioria dos brasileiros caiu ali por tráfico de drogas ou roubo – diferentemente do PC4, onde muitos estão por assassinato e devem cumprir penas de mais de 20 anos.

Eles contam que todos os homens, quando chegam a Palmasola, vão direto para Chonchocorito e os que podem pagar cerca de US$ 1.000 são transferidos para o pavilhão mais cômodo. Entre eles está o reincidente João. Junto com um grupo de 22 brasileiros, em 2003 ele se crucificou e costurou os lábios para chamar a atenção do consulado para a situação em Palmasola. “O cônsul veio aqui, prometeu melhorias, saiu em um monte de jornais no Brasil, e depois ficou tudo igual. Igual não, na verdade pior, porque sofremos represália. Apanhamos mais, o custo de vida aumentou.” No PC4, o mineiro Luiz havia dito que, se um boliviano ganha 10 pesos por um dia de trabalho (limpando, arrumando), um estrangeiro ganha 5. O mesmo acontece com o custo da comida e bebida.

João vai buscar a panela para me mostrar o rancho. Dessa vez só vejo o caldo gorduroso cor de laranja. Um jovem pego roubando há três meses conta que não teve nem a primeira audiência com o juiz. “Estou sem documento, sem meus pertences, que foram tirados pela polícia, e nunca vi ninguém do consulado brasileiro aqui. Sei que existe um advogado porque os outros disseram. A cesta básica chegou apenas três vezes neste ano.” No dia seguinte à nossa visita, Chonchocorito entraria em “rebelião pacífica” por melhores condições de vida, com uma greve de fome que foi notícia nas principais emissoras de Santa Cruz.

O último pavilhão a visitar – o relógio apontava 17h, e o sol a pino não dava trégua – era o das mulheres. Tensão e tristeza. Diferentemente do PC4, quase não há visitas. Muitas das 18 brasileiras presas são dependentes de drogas, sobretudo do crack e outras variações da pasta-base da cocaína, incluindo injetáveis. Elas têm a pele solta no corpo, marcas de agulhas e facadas, arranhões, hematomas das brigas diárias. Poucas se juntam a nós, muitas estão dopadas demais para conversar. Quando pergunto onde arranjam dinheiro para sobreviver ali dentro, uma responde: “Roubando. A gente rouba umas das outras, pede emprestado e não devolve, pega. Principalmente para as drogas. Eu sou uma viciada, não tenho vergonha de assumir isso. Só queria dinheiro para usar”.

Entre elas, uma senhora que aparenta ter mais de 60 anos age de modo maternal com as outras, cuidando para que não falem demais. “Pelo amor de Deus, arranje ajuda médica para essas meninas”, apela a Darly. Ela faz pães e os vende nos pavilhões. Pretende juntar algum dinheiro para pagar um advogado. Está presa por mil ocho.

Ao final do dia, uma voz masculina em particular, sem rosto, ecoa sobre as outras: “Moça, não sei como, mas eu saio daqui logo. Nem que seja com os pés gelados”.

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O papel do Itamaraty

O advogado Juan Soliz, contratado pelo consulado, conta que ajuda como pode, faz correr os processos, mas que a verba é curta. “Temos muitos indigentes, esses hippies que vêm para cá, usuários de drogas que decidem cometer alguns delitos, quando são presos ficam nesses lugares mais humildes. Normalmente minha atividade é centrada nessa gente. De maneira voluntária, o consulado manda um pouco de comida a cada dois ou três meses. Mas não é nossa atribuição. Hoje são cerca de 100 presos brasileiros e a verba que temos para todos é de US$ 1.000.”

Segundo o advogado Claudio Fikelstein, especializado em direito internacional, não há uma lei que determine o que o consulado brasileiro deve ou não fazer nesses casos, mas ele lembra que regularizar a parte de documentos, avisar a família dos presos e prestar auxílio jurídico são obrigações do órgão. “Alguns consulados realmente interferem mais em detenções de brasileiros no exterior, como os que envolvem pena de morte e casos extremos. Outros, talvez por falta de verba ou de pessoal, interferem menos”, diz.

Questionado, o Itamaraty informou por meio da assessoria de imprensa que em 2011 foram feitas 95 visitas de periodicidade quinzenal aos 120 brasileiros em Palmasola – diferentemente do que dizem alguns presos e presas, que afirmam ter falado pouco ou nenhuma vez com o advogado. Declarou também que o governo brasileiro não tem competência para representar em corte os brasileiros presos, mas o consulado deve verificar se o detento dispõe de um advogado ou defensor público. Segundo o ministério, a responsabilidade básica pela dignidade e pelo bem-estar dos presos é da autoridade local. O cidadão detido, porém, pode se comunicar com o consulado e levar suas denúncias sempre que necessário e, em “casos extremos”, adquirir artigos básicos como remédios, alimentos e peças de vestuário.

Existe, no entanto, o Manual de Normas do Serviço Consular e Jurídico (NSCJ), que regulamenta a assistência a presos brasileiros no exterior prestada pelo Itamaraty. Em seu artigo 3.10.7, estipula: “A Autoridade Consular procurará apurar junto às autoridades locais qualquer fato que possa, a seu critério, colocar em risco a integridade moral, física e psicológica do preso brasileiro, solicitando a implementação de providências nesse sentido”.  

Reportagem feita em parceria com a Agência Pública