Imoral e engorda

A publicidade de alimentos industrializados e a facilidade de acesso a produtos calóricos e pouco nutritivos estão entre as principais causas da crescente obesidade infantil

40% dos adolescentes acima do peso têm gordura abdominal, pressão alta, grande concentração de açúcar, triglicérides e colesterol no sangue e até diabetes, que aumentam o risco de derrame e infarto (Foto:Eric Larrayadieu/Getty Images)

Thaina Pereira de Souza, enfim, veste calças jeans no tamanho adequado para sua idade. E quem a vê não acredita que até pouco tempo atrás só usava peças de malha, com numeração para adolescentes. Antes de mudar de roupa, a menina mudou de hábitos. Passou a aceitar carnes grelhadas, salada, legumes, arroz e feijão no lugar das frituras e massas em excesso. E um prato basta, não precisar repetir. “Não foi fácil convencê-la de que para emagrecer não poderia mais comer como antes”, conta a mãe, a dona de casa Manuela Pereira Sales. Com outros casos de obesidade na família e parentes diabéticos, Manuela diz que tudo começou há dois anos, quando a filha entrou na pré-escola em Itaquera, bairro da zona leste de São Paulo.

“Na creche já tinham me alertado sobre o excesso de peso, mas a ficha só caiu quando me chamaram novamente a atenção, dois anos atrás”, lembra. A mãe acreditava que a criança emagreceria naturalmente à medida que crescesse. Quando os exames da filha mostraram colesterol alto, porém, Manuela passou a seguir à risca as orientações da pediatra. Cortou biscoitos recheados, massas em geral e as frituras feitas diariamente. A pizza semanal virou mensal. Biscoito, só de água e sal. O pequeno Felipe, de 1 ano e 1 mês, já compartilha o novo cardápio da família. “Não quero que ele repita a história da irmã”, diz Manuela.

Thaina está entre os milhões de crianças no mundo que despertam a preocupação das autoridades sanitárias com a obesidade. No Brasil, 30% das que têm entre 5 e 9 anos estão com peso acima do recomendado. O dado é da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) realizada entre 2008 e 2009 pelo IBGE. Entre os que têm de 10 a 19 anos, o sobrepeso saltou de 3,7%, em 1970, para 21,7%, em 2009. Diante dos números, o poder público tenta combatê-los com políticas e programas preventivos, como o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) para o período 2011-2022, no qual estão inseridas a obesidade e suas consequências.

Reeducação. Hoje Thaiana se alimenta de forma saudável. A lição vale para o irmãozinho (Foto:Mauricio Morais/RBA)

Os danos físicos e psicológicos causados pelo excesso de gordura corporal são mostrados no documentário Muito Além do Peso, lançado no mês passado (leia a seguir). Dirigido pela cineasta Estela Renner e produzido por Marcos Nisti, vice-presidente do Instituto Alana, ONG dedicada a assuntos da infância, mostra depoimentos de crianças, pais, professores e especialistas nas diversas causas da epidemia.

“Entre os riscos imediatos estão os psicoemocionais. As crianças são estigmatizadas, sofrem bullying e são desprezadas pelos colegas. Na adolescência, são afetadas pela preocupação excessiva com a imagem”, afirma o endocrinologista Amélio de Godoy Matos, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. As implicações físicas começam a partir dos 8 anos, com aumento das taxas de colesterol e da pressão arterial. Na adolescência surge a resistência à insulina, processo que mais tarde pode levar ao desenvolvimento do diabetes. E na fase adulta aparecem as doenças cardiovasculares – as que mais matam no Brasil –, além do diabetes, entre outras.

Doença séria

Outro dado preocupante, segundo Godoy, é que, a julgar por uma pesquisa rea­lizada no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede), do Rio de Janeiro, 40% dos adolescentes acima do peso têm gordura abdominal, pressão alta, grande concentração de açúcar, triglicérides e colesterol no sangue e até diabetes. Todas essas alterações, mesmo isoladamente, aumentam o risco de infarto e derrame.

O especialista alerta para a facilidade de acesso aos alimentos industrializados calóricos, ricos em gorduras e carboidratos processados, como farinhas e açúcares, e pouco nutritivos. É o caso dos refrigerantes, salgadinhos, biscoitos recheados e outras porcarias. “O aumento da oferta barateou os preços. Como bem mostra o documentário, esses produtos chegam hoje até os mais distantes pontos do país, às populações ribeirinhas da Amazônia, indígenas. Outro fator é a desinformação. Tanto é que a obesidade cresce mais entre as populações pobres dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Quanto menor a escolaridade, maior a obesidade”, afirma.

"As crianças têm contato permanente com todo tipo de mensagem publicitária", diz Ekaterine Karageorgiadis (Foto:João Lacerda/Divulgação)

A nutricionista Maysa Toloni pesquisou o tema para seu mestrado e doutorado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Entrevistou mães de crianças matriculadas em creches públicas e filantrópicas e observou que muitos bebês de 3 meses ou menos já tomam refrigerante na mamadeira. E 80% dessas crianças, antes de completar 1 ano, já têm na dieta danoninhos, miojos, salgadinhos de pacote e biscoitos recheados, além de outros dez itens. “Esses alimentos têm muita gordura, sódio – nocivo à circulação do sangue –, açúcar e proteínas, que em excesso fazem mal às crianças, causando obesidade e aumentando o colesterol”, diz. Outra revelação é que as mães mais jovens, menos escolarizadas e de menor renda são as mais suscetíveis a esses erros alimentares.

“A maioria das pessoas desconhece a gravidade da obesidade. Para elas, não parece doença séria; muitas alegam ter sido gordinhas e acreditam que a criança obesa vive normalmente e vai emagrecer. Só passam a se preocupar quando a situação já se agravou”, afirma a psicóloga Gisela Solymos, gerente do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), de São Paulo. A entidade capacita equipes de saúde e de creches e atende crianças com distúrbios nutricionais, como desnutrição e obesidade, moradoras em comunidades carentes da cidade.

Reclames suculentos

Apesar de indireta, a publicidade dirigida à criança é outra causa da epidemia que não pode ser desprezada. “Há contato permanente com todo tipo de mensagem publicitária, pela televisão, rádio, outdoors, revistas e internet, entre outros meios”, aponta Ekaterine Karageorgiadis, advogada do Instituto Alana e integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). São anúncios, jogos “educativos” em sites de fabricantes de alimentos, blogs que atestam uma suposta qualidade nutricional de determinado alimento, brindes colecionáveis e a exposição dos produtos ao alcance das mãos, em embalagens chamativas, com heróis da TV. Para piorar, conforme dados da Universidade de Brasília (UnB), mais de 90% desses anúncios são de redes de fast food, salgadinhos de pacote e refrigerantes, entre outros.

O assédio dos fabricantes para fixar sua marca entre as crianças e fidelizar o consumo inclui merchandising em programas infantis, além de campanhas em escolas, como as com personagens conhecidos de cadeias de fast food. “Embora não estejam ali incitando as crianças a comer hambúrguer, eles e o produto que representam são reconhecidos”, diz Ekaterine.

Segundo ela, não é à toa o investimento em publicidade para os pequenos. Como assistem diariamente à TV por cinco horas e 17 minutos, segundo o Ibope, e passam tantas outras diante do computador, são futuros consumidores em potencial que influenciam os pais na hora da compra. Pesquisas mostram que 80% de tudo que é comprado, exceto planos de saúde e seguros, leva em consideração a opinião das crianças – daí até fabricantes de produto de limpeza usarem heróis em seus anúncios. Produtos para bebês, como fraldas e papinhas, são pouco anunciados.

Os anunciantes contam com recursos como a linguagem infantil, músicas, personagens conhecidos da TV, prêmios, brindes, animações, jogos e a presença de crianças em anúncios, que leva à identificação direta com o produto. Segundo especialistas, isso funciona porque só aos 12 anos a criança desenvolve plenamente o raciocínio abstrato. Ainda pequena, recebe toda mensagem de modo literal; até os 8 anos será incapaz de distinguir programa e propaganda e de entender que a mensagem publicitária é para incentivá-la a comprar algo, mais e mais. Só aos 12 vai perceber essa diferença, embora nem sempre a intenção da venda.

“Esse tipo de publicidade é proibido pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código de Defesa do Consumidor, mas são necessárias novas regras mais específicas”, afirma Ekaterine. Em todo o país tramitam projetos de lei para disciplinar os horários de exibição do anúncio e proibição da venda casada de brindes e alimentos, como já acontece em Florianópolis, por exemplo. Em Belo Horizonte, as empresas passaram a ser obrigadas a informar que o brinquedo pode ser vendido separadamente do sanduíche e de outros alimentos.

Em 2009, as indústrias firmaram acordo de autorregulamentação da publicidade, como em outros países, mas os critérios adotados são subjetivos. “Um fabricante de suco informa que seu produto é benéfico por não conter açúcar, apesar de ser pobre em nutrientes e rico em corante”, lembra a advogada do Alana. “É claro que a regulação pode ser mais efetiva com leis que a disciplinem, mas as empresas podem fazer seu papel com a produção de alimentos mais saudáveis e anunciar somente para adultos”, diz. Cabe aos pais se informar melhor sobre os alimentos, mudar os hábitos, escolher produtos naturais e voltar a fazer as refeições com os filhos, longe da tela da TV e do computador. “Todos são responsáveis. A obesidade é um problema social, não individual.” 

_________________________________________________________________________

Óleo para um batalhão

Apesar de as informações nutricionais de cada alimento estarem nos rótulos, acessíveis a todos, surpreende saber que com o óleo usado na fritura de um pacote de certos salgadinhos devorados pela garotada daria para cozinhar para um batalhão. E, com o açúcar presente no refrigerante, seria possível adoçar muitas receitas para se deliciar com moderação. Também impressiona ver a chegada de barcos da Nestlé a lugares distantes da Amazônia, levando seus produtos, bem como indígenas mandando ver no macarrão instantâneo. Tudo isso é retratado no documentário Muito Além do Peso, da diretora Estela Renner.

“O filme é uma tentativa de decodificar uma informação que já existe no rótulo dos produtos. Não deixa de ser um serviço para os pais, para que consigam entender o que estão comprando para seus filhos”, disse a cineasta em entrevista à repórter Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual, logo após a pré-estreia, em 12 de novembro, em São Paulo. O filme discute a gravidade da obesidade infantil e os fatores que contribuem para seu aparecimento. Segundo a cineasta, sua preocupação é fazer filmes de cunho social em defesa da criança. “A partir do momento que são 30% das crianças brasileiras acima do peso, pensamos que a causa merecia uma ferramenta audiovisual para ajudar a ampliar esse debate.”

Para ouvir a entrevista na íntegra, acesse o atalho: bit.ly/rba_obesidade

Sintonize:
Litoral paulista – 93,3 FM 
Grande São Paulo – 98,9 FM
Noroeste paulista – 102,7 FM
Na internet – www.redebrasilatual.com.br/radio