Conforme a música

Em bandas de formatura ou na companhia de grandes nomes, os músicos pertencem a uma categoria desunida e têm uma rotina árdua. Mas desempenham seu ofício com prazer

Banda Dreams: até 18 eventos por mês, com 12 músicos e seis dançarinos

Passada a temporada de confraternizações de empresas e festas de réveillon, a safra de trabalho das bandas musicais têm ainda uma sobrevida com as festas de formatura, que, por excesso de universidades e falta de espaço no calendário, se estendem até o final do verão. Daí em diante virão períodos de oscilação em busca das próximas apresentações, e de caça ao cachê. 

Essa é mais ou menos a rotina de quem vive de música em grupos ou orquestras pouco conhecidos, que atuam sob demanda, mas a realidade não chega a ser muito diferente para aqueles que acompanham os grandes nomes da música brasileira. Considerando-se membros de uma classe desunida, em geral, eles reclamam da desigualdade de cachês e da ausência de uma entidade atuante para representá-los.

“Trabalhamos o ano todo, mas diria que o mercado aquece um pouco mais em dezembro”, diz o baterista Adriano Santos, sócio da banda Ópera Soul. Surgida em 2001, em São Paulo, apresenta-se com 11 integrantes, incluindo três bailarinos, em vários estados. “Os alunos que se formam hoje, assim como os noivos e as empresas, possuem um perfil jovem, buscam ideias novas, e nenhuma banda está preocupada em tocar algo diferenciado para esse público. Era sempre a mesma coisa: anos 60, 70, samba etc. Começamos a tocar em baladas, ver de perto o que o pessoal curtia, e entramos no mercado com um repertório mais moderno”, conta Adriano.

O prazer prevalece

Os oito músicos já dividiram palco com artistas famosos, como Jorge Benjor, Daniela Mercury, Sidney Magal, Latino, Buchecha, banda Cheiro de Amor, Monobloco. E, onde quer que toquem, aprender a lidar com pessoas “inconvenientes” nas plateias dos eventos e shows parece um dos ossos do ofício. “Já passamos por muitas situações em que tivemos de aguentar bêbados pedindo para tocar Raul. E até tocamos (risos). Tendo jogo de cintura somos respeitados. Antes de um evento, falamos o repertório e de nosso estilo de trabalho. Músico é um profissional sério”, garante.

Uma das bandas mais rodadas do país, e com agenda de pedidos de apresentação em eventos sempre cheia, é a Jet Boys Band Show. Fundada em 1967, em Assis (SP), foi integrada originalmente pelos irmãos Osmir (o Mirão), Laércio, Dinei, Edson e Ademir Fortuna e hoje conta com três cantores, um tecladista, um guitarrista, um baterista, um baixista e três bailarinas. 

Pelo menos dois momentos são marcantes na história da banda: ao lado da dupla Chitãozinho & Xororó, na década de 1980, e, mais recentemente, quando tocaram com o grupo The ­Platters, formado em 1953, ainda na era pré-rock, e celebrizado por clássicos como Only You e Smoke Gets in Your Eyes. “Foi um grande dia, pois crescemos ouvindo as músicas deles. Outro momento marcante foi em 1967, quando nós, que éramos um grupo de jovens com média de 15 anos, viajamos de Kombi com equipamentos de Assis a Brasília. Ficamos seis meses fora de casa, sem contato algum com nossos pais. Naquele tempo, não existia um acesso fácil à mídia e a população era carente de ver um artista ao vivo. Cansamos de viajar em estradas de terra no Paraná, Mato Grosso, Bahia…”, recorda Mirão.

Os tempos são outros, mas o ambiente ainda é marcado por certo amadorismo, como observa Fabiano Mafezoli, da banda Dreams. “Há ainda muitos ‘marinheiros’, que compram um instrumento, baixam algumas cifras da internet e se autointitulam músicos. Essas pessoas dificultam a ascensão da profissão, pois se ‘vendem’ por qualquer pão com mortadela que oferecem. Um músico profissional estuda música, vive música e sempre tem algo novo a aprender”, diz. A Dreams surgiu em 2000 e toca em até 18 eventos por mês, com 12 músicos e seis dançarinos.

Ouvidos abertos

Músico – do grego mousiké – pode ser definido como alguém hábil na arte e na ciência de combinar os sons de maneira prazerosa aos ouvidos, seja tocando um instrumento, seja cantando, escrevendo arranjos, compondo, regendo um coral ou uma banda. Eles estão presentes desde a origem da humanidade e compõem a memória de uma vida. 

Filho do compositor Ivor Lancellotti, o baterista, percussionista e violonista Domenico lembra-se de frequentar, ainda criança, rodas de samba na casa de João Nogueira e na de Clara Nunes. Entrou profissionalmente no ramo acompanhando o Quarteto em Cy. “Aprendi muito com elas, principalmente a tocar com dinâmica. Rodei Norte e Nordeste com o show dedicado ao Chico Buarque. Tinha 16 anos, estava confiante, e resolvi largar a escola e me dedicar só à música”, conta Domenico. “Tenho muita sorte e sempre trabalhei com pessoas que admiro, cada uma com sua maneira de ver o mundo.” Com a autoridade de quem já acompanhou Caetano Veloso, Fernanda Abreu, Gal Costa e Adriana Calcanhotto, garante: “O músico tem de descobrir um jeito de tocar para cada situação”.

Escola do show business

A cantora Letycia, por exemplo, aprendeu com Sandy & Junior e Zezé Di Camargo & Luciano. “A experiência trouxe amadurecimento, entendimento do processo do show business no Brasil, visão de trabalho com grandes equipes, ideal de profissionalismo e entendimento de música como arte e negócio. Observei a reação do povo, que canções cantavam junto. Conheci os diversos Brasis dentro do Brasil. E, sobretudo, tive a convicção de querer emplacar a minha carreira solo”, comemora.

Letycia se lembra de precisar ficar o dia inteiro disponível para os shows dos artistas que acompanhou, passar o som mais cedo, almoçar e viajar com a equipe. Ela lançou o primeiro álbum solo, Cores do Pop ao Samba, em 2009, e participou da banda do programa Ídolos, da TV Record. “É preciso ser o mais profissional possível, você passa a ter a estrada como sua casa e a equipe como sua família por um grande tempo, principalmente nas turnês grandes ou fora do país. O emocional, o lado pessoal, tem de saber calar e se posicionar apenas quando necessário. Sem deixar de ter presença, mas saber que quem tem de aparecer é ‘o’ artista.”

No palco e no estúdio

Há muitas diferenças entre acompanhar um nome consagrado da MPB em shows e o trabalho em estúdio. “Tem artistas que ficam superconfortáveis em uma situação e angustiados em outra. Então a pessoa muda mesmo. De saída, no estúdio, tudo está ampliado numa incrível ‘lente de aumento’. Então, as características das pessoas sofrem o mesmo efeito”, define o guitarrista e violonista Billy Brandão, que já acompanhou Paulinho Moska, Lobão, Ana Carolina, Marisa Monte, Frejat e Erasmo Carlos. Billy alerta que estúdio é lugar de paciência, repetições e minúcias. “Ao mesmo tempo, pode acontecer o efeito ‘rodar lâmpada’, uma expressão que a gente usa quando o artista não sabe o que quer, mas não gosta de nada que está acontecendo e fica só naquele ‘não sei… não acho que seja isso…’ (risos) É difícil.”

Caso raroRealista

Durante os shows, o saxofonista, flautista, gaitista e cantor Milton Guedes aprova a liberdade do improviso, permitida por artistas para os quais trabalhou, como Oswaldo Montenegro, Lulu Santos e Roberto Carlos, mas no estúdio não despreza o processo de criação, com muita calma. “Tive o privilégio de tocar com meus ídolos e acompanhar grandes nomes em shows, CDs e DVDs. A facilidade de adaptação a uma diversidade de estilos me tornou muito prático e rendeu muitos convites. Essa convivência me faz estudar mais”, diz o artista, agora também dedicado à carreira solo.

Mas a situação dos chamados músicos de apoio o preocupa. “Hoje em dia, é quase inevitável acompanhar vários artistas. O nível dos cachês caiu muito com a queda na indústria fonográfica. Acho que os órgãos existem e há organização neles, mas a classe é muito desunida”, acredita Milton. “Existe uma tabela com valores mínimos estabelecidos pela Ordem dos Músicos do Brasil, mas só no papel. Na prática, vale a condição de cada artista”, lamenta. O resultado é a expansão da informalidade, pois, segundo ele, os valores ínfimos desencorajam a pagar impostos ou contribuir com sindicatos. “Com isso, não existe uma unidade de valores ou direitos. É um tiro no próprio pé. Vemos grandes nomes passando muita necessidade por conta disso.”

O violonista e compositor Jaime Alem, há 30 anos na companhia da cantora Maria Bethânia, concorda: “A organização dentro do campo do trabalho passa pela postura dos próprios músicos diante das condições oferecidas pelos empresários. Contrata-se e dispensa-se sem cerimônia. Que eu saiba, apenas dois artistas brasileiros cuidam bem dessa questão – Chico Buarque e Roberto Carlos. A lei de oferta e procura é cruel, mas há muito a discutir no que se refere ao trabalho do músico no aspecto legal”.

Jaime Alem, que já tocou também com Gonzaguinha, Trio Esperança e Golden Boys, diz ter alcançado uma marca pessoal no trabalho de diretor musical de Maria Bethânia. “Com ela usei viola caipira em 0,01% dos arranjos. Mas esse pouquinho teve sua luz própria”, conta. “Fui exclusivo dela por 30 anos. Qualquer coisa que eu fizesse, mesmo gravando em meu pequeno estúdio, era subordinado a uma ação dela. Muitas vezes abandonei amigos em estúdio para atendê-la prontamente. Já abandonei a família em Ouro Preto para embarcar no Galeão no mesmo dia rumo a Portugal para gravar uma música com ela.”

Corda bamba

Para Domenico, a constante oscilação no mercado da música é incômoda. “Há um movimento natural, quase sazonal. Meses em que há trabalho, meses em que não há. Você anda na corda bamba. Sempre foi assim. Hoje, a música está tão desprestigiada que raramente você pode ter um trabalho só. É preciso se desdobrar. E é tenso tentar conciliar agendas de nomes como Gal Costa, Adriana Calcanhotto e Orquestra Imperial. E ainda tenho de achar brechas para tocar meu trabalho solo”, descreve.

Mesmo com tantas dificuldades, o prazer prevalece, como garante Barão do Pandeiro. Com 5 anos ele já batucava e, aos 13, se apresentava em conjuntos. Barão orgulha-se de ter acompanhado gente como Clementina de Jesus, Zé Kéti, Roberto Silva e Nelson Cavaquinho. “Desde criança, nunca me imaginei fazendo outra coisa. Especializei-me em dois instrumentos de ritmo – pandeiro e prato e faca – por influência de João da Bahiana, que foi uma das minhas inspirações”, diz.

Billy Brandão define o ato de tocar com grandes nomes da música como a marca de uma carreira “bem-sucedida”, mas a carreira não se esgota nessa constatação. “É preciso ter sorte. É claro, ela não vale nada sem a competência, mas é fundamental. Dei a sorte de trabalhar com vários grandes artistas, famosos etc. Em muitas oportunidades me vi ali, com uma pessoa que simplesmente era (ou é) um dos meus ídolos. Já me peguei algumas vezes sendo distraidamente ‘carregado’ por emoções e chorei no meio do show. Isso é que é especial, com certeza.”