Um fórum em busca de um eixo

O prestígio de Davos despencou com a crise que solapou as bases de confiança no ideário neoliberal e a credibilidade de seus frequentadores

Vincent Kessler/REUTERS
Vincent Kessler/REUTERS
Cameron e Merkel em reunião do Fórum Econômico Mundial: o futuro da União Europeia em xeque

Não fosse pelo suspense provocado pelo discurso do primeiro-ministro britânico, James Cameron, que prometeu um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia para 2017 (caso seja reeleito em 2015), a 43ª edição do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, teria uma das aberturas mais frias de sua história, em 23 de janeiro. O maior suspense era o encontro inevitável entre ele e a chanceler Angela Merkel, da Alemanha, cujo ministro de Relações Exteriores criticara de modo veemente a posição de Cameron. Fora isso, a emoção e a repercussão do fórum eram mínimas.

O Fórum foi fundado em 1971 pelo professor alemão radicado na Suíça Klaus Schwab, como Fórum de Gerenciamento Europeu (European Management Forum). Resumindo muito, pode-se dizer que o objetivo de Schwab era apresentar ao empresariado europeu os métodos de administração norte-americanos, considerados mais eficientes e abrangentes. A partir de 1987 ele passou a ser o Fórum Econômico Mundial e a contar com a presença sistemática e orgânica de representantes de governos e de instituições internacionais. Até o final do século 20, o Fórum de Davos, como ficou conhecido, atingiu o ápice de seu prestígio, devido a diferentes fatores.

Governantes e políticos promoveram encontros históricos em seu âmbito, como Yasser Arafat e Shimon Peres, do Oriente Médio; Nelson Mandela e Frederik Willem de Klerk, da África do Sul.

A queda dos regimes comunistas e a promoção dos ideais do neoliberalismo favoreceram a ilusão de que a nova ordenação da economia mundial podia ser organizada a partir de uma reunião de “iluminados” e “luminares”, entre empresários, políticos, administradores e governantes e representantes de agências internacionais. O povo, de fora. Idem qualquer forma de pensamento alternativo. Era a época consagradora do “pensamento único”.

A ascensão da ideia de que no plano político internacional o mesmo poderia ocorrer no âmbito restrito dos “poderosos” do então G7, grupo das principais potências econômicas do planeta (França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido, Estados Unidos e Canadá), que se tornou o G-8 com a adesão da Rússia, em 1997.

Esse “círculo de confiança” foi abalado, primeiro, pelo nascimento do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 2001, que contestou essa ordenação diretamente, junto com as manifestações de Seattle e Gênova, entre outras. O Fórum de Davos resolveu ampliar sua agenda em direção a uma pauta de caráter mais social. Por outro lado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentou algumas vezes fazer a ponte, com sucesso relativo, entre ambos os fóruns.

A queda de prestígio do Fórum de Davos se acentuou com a eclosão da crise econômico-financeira de 2007-2008, que solapou as bases de confiança de boa parte de seu ideário e a credibilidade de muitos de seus frequentadores. O mesmo se deu com o aprofundamento da crise na zona do euro, e na União Europeia como um todo, mais Estados Unidos e Japão.

O prestígio do G-8 entrou igualmente em parafuso descendente: dos seus oito membros, cinco viveram e estão vivendo ainda crises profundas, um consegue sobrenadar a duras penas graças a sua pauta de exportações (a Alemanha); o Canadá depende dos outros para mergulhar ou não na crise, a Rússia passou a atuar também em função de outras referências, como os Brics. Além disso, duas das oito maiores economias mundiais, Brasil e China, não estão formalmente representadas no grupo, e a partir de 2008 o G-20 passou a ser o fórum mundialmente mais importante para discussão da pauta econômica internacional.

Dessa forma, tanto a moldura de apoio do Fórum de Davos como os alicerces do pensamento nele hegemônico entraram em crise, e sua perda de prestígio tornou-se inevitável, tanto no Brasil como em outros países. O ideário que alimentava Davos permanece ainda vivo e hegemônico na União Europeia, mas é contestado por economistas de peso (Paul Krugman e Joseph Stiglitz, por exemplo) e pelo descontentamento crescente no continente. O tema sublinhado nesta 43ª edição era “resiliência”, ou seja, elasticidade, capacidade de recuperação. Um tema atraente, mas ao mesmo tempo revelador da situação das economias dos países que se veem ainda como carros-chefes do Ocidente: não só estão no estaleiro como os mecânicos não vêm dando conta do recado.

Em contrapartida, deve-se registrar que também decaiu a repercussão do Fórum Social Mundial (FSM), cuja próxima edição vai se realizar no final de março em Túnis, na Tunísia. O FSM teve uma linha ascendente até sua edição de 2005, a última realizada em Porto Alegre. As edições subsequentes, embora ainda com muita participação, começaram a mostrar certa fadiga, provocada talvez pelas crescentes dissensões entre os que o veem apenas como um encontro para discussões e os que o desejavam como um impulsionador de ações políticas concretas.

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Obama: planos ou planador?

Enquanto o presidente dos Estados Unidos faz malabarismos para tentar aumentar os impostos sobre fortunas e aliviar a classe média, seu colega russo – presidente da pátria de Lênin e Trotsky – acolhe de braços abertos o ator fujão Gérard Depardieu, para protegê-lo da prometida “sobrecarga” de impostos que o colega francês de ambos quer impor aos abonados de seu país…

Esse verdadeiro tricô de sinais controversos mostra a complexidade da questão. A curta hegemonia indiscutível neoliberal (do reinado de Margaret Thatcher à completa rendição dos social-democratas e socialistas na Europa, depois da queda do Muro de Berlim) deixou cicatrizes e sequelas indeléveis. De lá para cá a neo-ortodoxia vem deixando um rastro de destruição econômica somente comparável ao das grandes guerras, e juntando uma coleção de contestações cada vez mais evidentes, do Sudeste Asiático à América Latina, da crise russa à europeia, da falência do banco Lehman Brothers à manipulação da taxa Libor. Mas seus arautos na mídia e fora dela continuam impávidos na semeadura da ideia de que não há alternativa a seus credos fanáticos e superstições emboloradas.

Entre esses e estas, reina a ideia de que dar mais dinheiro e poder aos mais ricos e às grandes corporações é investimento, enquanto oferecê-lo aos mais pobres é gasto público e demagogia barata, mas cara para o “contribuinte”, essa palavra elástica e fantasmagórica que abrange do pequeno funcionário público ao Barão de Rotschild.

Ortodoxos de um lado e do outro do Atlântico vituperam contra as heresias governamentais de expansão das despesas, querendo cortar mais fundo. Nessa briga sobraram rebarbas – no plano internacional , sem falar no nacional – para a presidenta Dilma e o ministro Mantega, acusados de ser “intervencionistas” antimercado, vampiros keynesianos que só poderiam ser neutralizados pela cruzada tucana em torno do cavaleiro Aécio Neves e seu escudeiro FHC.

A conclusão sobre esse acendrado debate assume a forma de uma pergunta: afinal, o que fez o presidente Obama? Bem, de um lado, ele vem se mostrando mais disposto a enfrentar (ao contrário do primeiro mandato) a barulhada republicana, em vários sentidos, do acordo fiscal à mais recente nomeação dos secretários de Estado (John Kerry), da Defesa (Chuck Hagel) e do novo diretor da CIA (John Brennan). De outro, ficam as dúvidas sobre o que suas atitudes têm efetivamente plantado no cenário político norte–americano e internacional.

Terá ele de fato posto em marcha um plano para desarticular a resistência ortodoxa dos republicanos e ultraortodoxa do Tea Party? Ou terá apenas colocado um capacete antichoque para tentar continuar sobrevoando o abismo em seu planador?

A pergunta é séria demais para ser apenas divertida.

Atitudes como a mencionada de Vladimir Putin – cujo neoczariato russo necessita de investidores internacionais de porte em sua guerra contra os oligarcas herdeiros das privatizações de Yeltsin e sua disputa de espaço com a nova classe média – mostram quão áspero é o caminho para a formulação de uma anti-hegemonia que enfrente no plano teórico e na práxis o culto ao mercado de capitais como fórum privilegiado para definir os destinos da humanidade. A falência do mercado é evidente; os alicerces de uma nova hegemonia não o são.

Até aqui o semeador Obama não se mostrou o líder capaz de construí-los. Sua ação ainda está mais para planador do que para planejamento.