A intensidade de Nair Benedicto

A história do Brasil contada pelas lentes e películas da fotógrafa veterana é mais intensa que a soma de seus fotogramas

Índio Arantxê-Manouki, em Mato Grosso, 2006 (Foto: Nair Benedicto/N-Imagens)

Pode acreditar. Nair parece ter poderes mágicos. O mundo se deixa captar pelo olhar genial da fotógrafa. A profissão foi escolhida como estratégia, depois de um ano, de 1969 a 1970, encarcerada no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo. Ao sair de lá entendeu que podia continuar a resistir por meio da linguagem fotográfica, registrando as pegadas da ditadura. Sempre gostou de ouvir e contar histórias. A sua própria começa assim: nasceu paulista, em 1940, neta de quatro avós imigrantes italianos. De criança alegre e participativa virou a jovem questionadora política que não disfarçava suas indignações. Tampouco a perspicácia. Enxergou a brecha a ser usada por câmeras e lentes, linguagem menos evidente que a falada e a escrita.

Os visores turvos da repressão e da censura não imaginaram que aquela mulher baixinha estivesse produzindo e arquivando memórias para o futuro. Nair não bobeou. Documentava o que a intuição, a sensibilidade e a coragem lhe dariam dali para a frente. Descobriu a Amazônia como Área de Segurança Nacional. Presenciou a chegança de gente batalhadora e sonhadora, induzida pelo governo militar a “colonizar” o espaço em torno da Transamazônica. Documentou flagrantes de vidas que hoje explicam a origem de muitos problemas dramáticos: desmatamento, invasão de territórios indígenas e diversos tipos de conflito. Sem deixar de focar também a solidariedade, o afeto, as paixões.

Na mesma Transamazônica, nas vizinhanças de Altamira (PA), ela fotografou a aproximação de um subgrupo de índios Arara que tiveram seu tradicional território cortado ao meio pela rodovia, entre 1982 e 1983. Suas fotos dos índios Arara correm o mundo. Antes, juntara-se a Juca Martins, Ricardo Malta e Delfim Martins para fundar a Agência F4 de Fotojornalismo. Largara sua atividade solitária, saltando para trabalhar em grupo. Deu tão certo que a F4 cresceu e se expandiu, tornando-se uma marca de referência. Dois trabalhos memoráveis, em parceria com Juca Martins, transformaram-se em livros: A Greve no ABC e A Questão do Menor. Quando o grupo se dissolveu, em 1991, dele surgiram as agências Tyba, Pulsar, Olhar Imagem e N-Imagens. Concorrentes e inacreditavelmente unidas.

Minhocão aos domingos e feriados, em São Paulo, no ano de 1990 (Foto: Nair Benedicto/N-Imagens)

Nos anos 1980, Nair jogou-se nas questões da criança e do adolescente e da mulher e produziu vários audiovisuais. Alguns surpreendentes, para quem não a conhecia. Desde criança, afirmava que não pretendia casar, mas de ter filhos não abria mão. E os teve com Jacques Breyton. Ariane, Danielle e Frederic deram-lhe ainda seis netos.

Minhocão aos domingos e feriados, em São Paulo, no ano de 1990 (Foto: Nair Benedicto/N-Imagens)

Quase não se falava em ecologia e ela já discutia meio ambiente e sustentabilidade. Das vezes em que me chamou para formarmos dupla (fotógrafa e repórter), uma delas foi para uma reportagem sobre uma empresa comercial exportadora chamada A-Ukre Trading Company. Constituída exclusivamente por índios brasileiros da etnia Caiapó, a companhia ficava numa aldeia isolada dentro da floresta amazônica, no sul do Pará. Rústica e eficiente, fornecia óleo de castanha-do-pará para a Body Shop, uma indústria na Inglaterra especializada em cosméticos à base de produtos naturais.

Nessas ocasiões Nair expressava seu pioneirismo. Embrenhava-se na selva quando as máquinas fotográficas eram todas mecânicas, pesadas e para funcionar precisavam ser abastecidas com filmes de celulose. Subir ou descer rios em canoa de tronco de árvore lotada de índios, para pular numa margem e ir com eles até um castanhal, era complicado. 

“Queríamos nos despedir de uma líder da tribo que estaria numa casa reunida com outras índias. Primeira a entrar, Nair rapidamente levou o olho ao visor da câmara fotográfica…”

A umidade da floresta pifava o equipamento com uma frequência terrível. Era preciso ter à mão no mínimo três máquinas e muitos, muitos rolinhos de filme. E celular… Não, não existia.

Corpos pintados (Foto: Nair Benedicto)

Índia Arara, no Pará, em 1983 (Foto: Nair Benedicto/N-Imagens)

No último dia na aldeia A-Ukre, final de tarde, queríamos nos despedir de uma líder da tribo que estaria numa casa reunida com outras índias. Primeira a entrar, Nair rapidamente levou o olho ao visor da câmara fotográfica, murmurando: “Ateneeeia”. Entendi instantaneamente: o trabalho não terminara. Apressei-me para ver o que fotografava. Protegidas sob o telhado de palha, as mulheres pintavam-se umas às outras. Usavam uma varinha fina e flexível molhada na tinta de jenipapo para fazer desenhos simétricos no corpo, inteiramente nu. Outro sussurro: “Estou sem o tripé!” Saí em disparada para pegar. Era quase noite. Mas não importava. Nair tem essa capacidade de despertar e desenvolver bons sentimentos de cumplicidade.

Índia Arara, no Pará, em 1983 (Foto: Nair Benedicto/N-Imagens)

Em 2009, entrou numa lista de espera para transplante de rim. Após várias tentativas abortadas recebeu a doação do órgão de um de seus sobrinhos. Pouco depois, lá estava ela envolvida com o ensaio Na Parede da Memória, com montagem de Salomon Citrynowicz, no Foto-Rio 2011. Na programação do evento, além da exposição das fotos, constava uma palestra. Ela mandou ver. O tema: “Não desisto de mim”. Agora reuniu fotos de quatro décadas no seu novo livro: Vi Ver. Intensamente Nair.

Mosaico Nair Benedicto