Nepal, esse desconhecido

Num país de espiritualidade, natureza magnífica e povo carinhoso, é possível servir-se de experiências com sabor de esperança. E descobrir no imaginário de suas crianças a simplicidade da vida

Templo em Katmandu, capital do Nepal. O hinduismo é a religião predominante no país de política comunista (Foto: Celso Maldos)

Sexta-feira 15 de fevereiro, aeroporto de Katmandu, Nepal. Aqui, foram 20 dias, última parada após outras três semanas na Nova Caledônia, uma ilha do Pacífico. Acompanho a equipe da cineasta Ariane Porto. Seu filme Bem Te Vi tem como ponto de partida oficinas de animação feitas com crianças no Brasil e ao redor do mundo. O foco é investigar como seria o mundo ideal segundo a imaginação delas.

O trabalho é uma parceria com a Fundação Playing For Change (PFC, na sigla em inglês), organização não governamental que dá suporte a um projeto multimídia idealizado pelo engenheiro de som Mark Johnson. A ideia é envolver músicos e artistas de todos os cantos do planeta em propostas sociais transformadoras. 

A fundação entra com a tarefa de montar escolas de música em comunidades carentes. E, assim, criar oportunidades de formar e descobrir talentos locais e envolvê-los na produção de álbuns e clipes. Visitei diferentes escolas e projetos da fundação com François Viguie e Willian Aura, responsáveis pelas ações na África e na Ásia. 

Montagem Nepal 1 (Fotos: Celso Maldos)

Em Katmandu, trabalhamos com as crianças de Mitrata, um orfanato criado há anos por Nanda Kulu, ativista de origem muito pobre engajada em ajudar crianças a ter mais oportunidades que ela própria. O orfanato abriga cerca de 40 crianças e adolescentes, e mais de 100 já passaram pela casa nos últimos dois anos. 

Nessa parceria com a PFC, há aulas de flauta, sarangui, harmônio, tabla e dança. Quando não estávamos trabalhando com as crianças, visitamos lugares e pessoas normalmente inacessíveis aos turistas, fizemos gravações com professores, sempre músicos locais, em diferentes locações, para futuros clipes de canções como Clandestino e Sem Documentos, de Mano Chao.

homemWillian Aura conta que sua aventura no Nepal começou em 2002, antes mesmo de ingressar na PFC. Caminhando pela Praça de Patan, um complexo arquitetônico com palácio e templos construídos entre os séculos 12 e 17, é abordado por um guia, um menino de 15 anos, que pede para praticar seu inglês com ele. De lá para cá, está na 26ª viagem ao país.

Raízes

Shyam, um dos intérpretes do nepalês para o inglês que nos acompanhava, deixou a comunidade rural de Tintale aos 10 anos de idade, sozinho. Queria estudar. Ao visitar Tintale, Aura se encantara com as pessoas. Chocado com a dura realidade local, decidiu apoiar os estudos de Shyam, desde Los Angeles. Depois de trabalhar por muito tempo como produtor musical da gravadora EMI, ele deixou a empresa e passou a visitar a região regularmente. Criou a Aura Imports Sponsorship Project (uma espécie de importadora de patrocínios) e começou a levar produtos nepaleses para os Estados Unidos e a buscar padrinhos para outras crianças.

Shyam estudou e voltou a Tintale. Com a ajuda das pessoas da comunidade, criou e construiu a escola de ensino básico. Nesse ínterim, as mulheres de Tintale fundaram a Mother’s Society. A organização, a partir de linguagem e técnicas teatrais, estimula a formação de grupos de discussão de direitos femininos e de enfrentamento a dramas como violência doméstica, gravidez precoce e sequestro de meninas. Mediante promessas de casamento ou trabalho, meninas de 11 a 15 anos são levadas geralmente para a Índia, desaparecem, tornam-se escravas e são obrigadas a se prostituir. No último ano, a incidência desses crimes chegou a uma assustadora média de 900 casos por mês.

Como muitos homens das vilas onde a Mother’s Society apresenta suas peças não gostam do trabalho do grupo, Shyam e outros amigos atuam como seguranças do grupo. As peças são sempre acompanhadas por música e dança, resultado da entrada de Aura na PFC, onde estimulou a criação do Programa Música na Escola. Dessa parceria surgiram novos apoiadores ao desenvolvimento da educação na comunidade. Doações em torno de US$ 40 mensais por criança podem custear  uniformes, materiais escolares e alimentação.

Mother’s Society de Tintale: dança e música para ensinar os direitos das mulheres e meninas (Foto: Celso Maldos)

mothersDurante a realização do filme, pedimos às crianças que desenhassem seu mundo ideal. Descobrimos que desejam fazer o segundo grau em Tintale, para que não precisem caminhar por cinco horas para ir e voltar da escola, onde a jornada é de quatro. E contar com um hospital local, pois o mais próximo no mundo real fica em Kataria, a dez quilômetros.

Caldeirão de experiências

O país é impressionante e surpreendente. Comunista, maoísta, com uma população 80% hindu, menos de 20% budista e ínfimo número de cristãos, tem berço do Buda na cidade de Lumbini, perto da fronteira com a Índia. A grandiosidade dos palácios e templos, com ornamentos finíssimos, imagens de pedra e metal que evidenciam uma sofisticação secular na sua metalurgia artística, é capaz de nos impor o silêncio. 

No Himalaia, a geografia majestosa de montanhas geladas, altíssimas, é cortada por estradas sinuosas, pontes construídas nos anos 1970, em parceria com a antiga União Soviética, sobre rios de leitos secos e pedregosos – que na época das chuvas, porém, isolam várias comunidades. Tudo isso parece ser nada para essa população gentil, acostumada às dificuldades de toda ordem.

Em visita à casa de uma senhora tibetana, ela contou a fuga de sua família, em 1969, após a ocupação chinesa. Seus pais tiveram os bens confiscados e, por medo, partiram com a roupa do corpo, a cavalo, pelas montanhas. Ela estava com 6 anos de idade. Hoje, sozinha com três filhas, o trio produz joias de uma beleza carregada de ancestralidade.

Depois, na garupa de uma moto pelo trânsito caótico de Katmandu, sou levado a uma comunidade periférica rural de artesãos em madeira, onde o tempo parece ter parado há alguns séculos: mulheres fiando algodão sentadas em frente de casa, patos, galinhas e cabras soltas, grandes grupos de homens desempregados jogando cartas, crianças brincando nas ruas, algumas pessoas lavando roupa, outras os cabelos, em bacias na rua, cortejos de casamento, uma exuberante cerimônia onde um menino de 8 anos é iniciado para tornar-se monge.

A má qualidade do ar, os rios poluídos, o lixo a se acumular, as condições precárias de higiene, nada nesse cenário é possível esquecer. Mas prevalece na memória o país mágico. Os templos, a espiritualidade e a natureza magnífica. E o povo gentil e carinhoso, capaz de nos servir um místico caldeirão de experiências com sabor de esperança.

A curiosidade de investigar o mundo ideal presente no imaginário, levada por Ariane a uma produção cinematográfica, proporá mais adiante uma reflexão. Se no inconsciente das crianças já estaria impregnado o modo individualista de conduzir a vida tão característico das sociedades contemporâneas ou se ainda é possível encontrar no horizonte um espaço social conduzido pelo coletivismo, a solidariedade, a não violência. Ali, no Nepal, ainda é.

Montagem Nepal 2 (Fotos: Celso Maldos)

 

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