Crônica

A aposta

Morri numa sexta-feira, às 11 da noite. Morte horrível. Estúpida. Não podia ter acontecido. Agora, que tudo acabou, vou contar como foi

mendonça

Vou tentar, porque não é fácil; eu mesmo custei a entender. Acho que começou no dia que o Rocha propôs a aposta. Rocha é o supervisor. O carro que terminasse primeiro ganharia um extra. A nossa rota começava na Lisboa pegando todas as paralelas até o lado par da Pedroso. A maior parte, lixo de apartamento. Mas tinha também lixo de loja, de botequim, de restaurante. Muito restaurante.

O lixo de loja os catadores pegavam antes para separar o papelão. A gente tinha um acordo. Deixava eles passarem antes, em troca, não bagunçavam o lixo. Os dois saíam ganhando. Mais papelão para eles, menos lixo para nós. Gente fina esses catadores, nunca teve briga. Com os restaurantes era complicado. Um sufoco de lixo. Fedido, derramando. Os ajudantes não colaboravam, mesmo com os donos falando. Os donos até que eram legais, sempre davam alguma coisa boa para a gente levar pra casa. Alguns já deixavam tudo embaladinho no isopor. Bem, mas estou desviando do caso.

O fato é que começou essa corrida besta. O nosso carro contra o do Jota. O do Jota pegava as paralelas do lado ímpar da Pedroso até o Rio Pinheiros. Lá também tem apartamento, mas a maior parte do lixo é de oficina e de loja. Muita oficina.

Primeiro bolamos um jeito de catar o lixo depressa sem ter de correr. O Alcides ia na frente juntando os sacos, fazendo montinhos, enquanto o Figa dirigia devagar. Depois, era só arrebanhar, e com o carro parado, o que era uma vantagem. A gente não se cansava. Mas a turma do Jota teve a mesma ideia. Ou viu a gente fazer e copiaram. Só sei que se a gente ganhava num dia, eles ganhavam no outro. Se a gente apressava um pouco mais e ganhava, no outro dia eram eles que apressavam.

O Rocha só ria, filho da puta. Não sei como nós caímos nessa. A gente corria cada vez mais e eles também. Até que virou uma corrida só. O carro nem parava mais. Nem perto dos montes. A gente jogava os sacos com o carro andando mesmo. A máquina só triturando, triturando e nós atirando os sacos e correndo, atirando e correndo. Cada vez correndo mais. A máquina triturando e nós correndo.

Naquela sexta foi uma loucura. Sexta é dia de faxina nas lojas, mais movimento nos botecos, nos restaurantes, tem muito lixo. Uns sacos enormes. Pesados. Quando era um saco mais pesado eu levantava e girava ele, primeiro devagar, depois bem depressa, rodopiando junto com o saco e quando ele pegava velocidade soltava e lá ia ele direto para a boca da máquina, triturado na hora.

Foi assim que aconteceu; nós já estávamos quase na Pedroso, e eu topei com aquele saco. Não era grande, mas era pesado. Gostoso de rodopiar. E eu com a cabeça na Lua, pensando na merda que era aquela vida de lixeiro. Na sacanagem do Rocha. Como é que fomos cair nessa? Fui sentindo ódio e fui rodopiando, ódio e rodopiando, ódio e rodopiando, e o saco girando cada vez mais rápido. E eu também. Só que em vez de soltar eu pulei junto. Caímos direto na boca do triturador, o saco de um lado, eu do outro. Só senti o golpe no ombro; a cabeça foi logo esmagada e não senti mais nada.

O Alcides bem que gritou, mas com o barulho da máquina o Figa não ouviu. Não sobrou nada de mim. Se o Alcides não tivesse visto eu pular, estariam me procurando até hoje. Só deram o atestado porque ele jurou que viu e encontraram a fivela com a minha inicial. Nem meus dentes acharam. Tudo moído. Fizeram o enterro sem nada dentro do caixão. Nada é modo de dizer. Tinha lá uns restos de lixo fedido. Vai saber se era eu ou se era sobra de restaurante.