trabalho

A última ceia

Indústria do pescado gestado artificialmente no Chile mostra que ausência de sustentabilidade pode deteriorar condições de trabalho, de saúde e, ainda por cima, ir parar na sua mesa

Maurício Hashizume

Campanha: más condições de trabalho e cultura não sustentável

Todos os anos, o diário norte-americano The Wall Street Journal e a Fundação Heritage fazem um ranking de “liberdade econômica” dos países. As regalias que cada nação oferece ao capital são medidas em pontos. O Chile é o mais bem pontuado da América Latina e, na atual classificação global, aparece na categoria dos “majoritariamente livres” – em 11º lugar. O Brasil é o 105º. A citação do Chile como “paraíso liberal” dos trópicos é comum. O que não é usual é conferir os resultados práticos dessa liberalidade na vida das pessoas que estão na base da população. O caso dos trabalhadores da indústria do salmão é um prato cheio para essa prova dos noves.

O salmão tornou-se um dos principais produtos chilenos de exportação. “De uns 20 anos para cá, houve grande impulso da salmonicultura”, diz Flávia Liberona, da Fundação Terram, organização não governamental que acompanha os impactos socioambientais nas regiões onde o pescado introduzido (a espécie não é originária das águas chilenas) é cultivado, abatido e processado. A criação em cativeiro passa por duas etapas: a reprodução de alevinos (embriões) em lagos e rios continentais e a engorda no mar, dentro de imensas gaiolas posicionadas ao longo da costa. Na sequên¬cia, o salmão é transportado até as plantas industriais, onde uma massa de trabalhadores entra em ação para que o produto fique pronto para a venda.

Até 2007, a salmonicultura gerava em torno de 55 mil empregos diretos e indiretos no sul do Chile. Naquele ano, as vendas do pescado alcançaram US$ 2,4 bilhões. “Há uma concentração territorial. Portanto, os impactos sociais, trabalhistas e ambientais podem ser constatados sobretudo na região dos Lagos Andinos, que produz 85% do salmão que o Chile exporta”, completa Flávia.

Pesquisas de entidades como o Centro de Estudos Nacionais de Desenvolvimento Alternativo (Cenda) mostraram, porém, que essa pujança econômica não se converteu em benefícios proporcionais para os trabalhadores. As remunerações mantiveram-se no nível do salário mínimo, com uma parcela adicional de 20% vinculada a bônus por produtividade. Segundo Ana Becerra, do Cenda, muitas empresas não cumpriram integralmente as leis trabalhistas nesse período de salto da indústria. Nas plantas industriais fechadas, as temperaturas são baixas para preservar a qualidade do pescado. Cerca de 60% da mão-de-obra é de mulheres, que cortam, limpam e refilam o salmão.

“Verificamos jornadas exaustivas em condições inadequadas, sem as devidas trocas de turnos. O trabalho na linha de produção é repetitivo e sempre de pé”, relata Ana. A rotina tem causado tendinites e problemas relacionados às baixas temperaturas, como reumatismos e cistites.

“Conheço histórias de trabalhadores que entregaram toda a sua energia à empresa e não podem colocar os filhos na faculdade. Não se consegue poupar nada”, reclama John Hurtado, funcionário da Cultivos Marinos Chiloé, em Ancud (na Ilha de Chiloé, a cerca de mil quilômetros de Santiago), e presidente do sindicato União e Força. Segundo ele, gente com mais de 15 anos na indústria do salmão não tem casa própria. “Quando colocamos isso nas negociações, os empresários riem da nossa cara e dizem para pedirmos teto ao governo.”

Empregados dos centros de cultivo no mar também enfrentam situações precárias, de acordo com investigação do Cenda. Obrigados a permanecer semanas longe de terra firme para cuidar da engorda dos peixes, alguns deles se protegem do frio, da chuva e do vento cortantes em pequenas embarcações sem estrutura adequada.
A Fundação Terram, o Cenda e uma organização chamada Canelo de Nos criaram em 2006 o Observatório Laboral e Ambiental de Chiloé. Por meio de pesquisas próprias, as entidades detectaram ainda a ocorrência de diversas práticas antissindicais e descobriram que a indústria do salmão tinha a segunda maior taxa de acidentes de trabalho do Chile, atrás apenas da construção civil.

HUGHES HervÉ/afpPorto na Ilha de Chiloé
Porto na Ilha de Chiloé, onde se concentram os cultivos de salmão

Vírus, crises e choques

Esse quadro de desequilíbrio agravou-se a partir de julho de 2007, quando o vírus ISA – que já infectara peixes na Noruega – passou a contaminar os salmões chilenos criados em cativeiro. De lá para cá, os sindicatos contabilizam cerca de 17 mil demissões. “O tema central hoje não é mais a condição de trabalho, mas a situação dos que foram despedidos”, diz Flávia, da Fundação Terram.

Projeções indicam que a situação ainda está por piorar. “Muitas empresas estão falando que terão de reduzir sua produção em 60%, com efeito proporcional no número de trabalhadores”, afirma Doris Paredes, presidente da Central Unitária de Trabalhadores (CUT) na província de Llanquihue. A Cultivos Marinos Chiloé, que já teve 1.300 empregados em suas linhas de produção, mantém agora 590.

Antes do salmão, a população da região dos Lagos sobrevivia basicamente da agricultura familiar e da pesca artesanal. Com a chegada da indústria, boa parte mudou-se para os centros urbanos, atraída pelo setor em expansão. Essa indústria foi pivô de um verdadeiro choque sociocultural de toda uma geração, já que muitos trabalhadores hoje na casa dos 40 anos tiveram como única experiência de vida a lida nas salmoneras.

De acordo com o geógrafo e deputado Patrício Vallespín, membro da Comissão de Pesca, Aquicultura e Interesses Marítimos, a crise do vírus ISA pode ser atribuída a um conjunto de fatores. Na avaliação do parlamentar, a atividade do salmão não foi acompanhada no mesmo ritmo por ajustes normativos e houve “excesso de liberdade” para as empresas, sem contrapartidas: “A liberdade das empresas deve ser exercida com responsabilidade. Nesse caso, houve excesso. Colocar muitos peixes dentro de cercas favoreceu a disseminação do vírus ISA. Foi um erro”.

Maurício HashizumeMonocultura
Monocultura em crise deixou os trabalhadores sem alternativa

Ana Becerra, do Cenda, alerta que os empresários tentam dar a entender que os problemas do setor se devem à crise financeira. “É uma forma de se afastar das responsabilidades de uma crise provocada pelo mau manejo, pela produção a todo custo, sem se importar com o meio ambiente e com a degradação”, critica.

Em resposta aos diversos protestos por conta do desemprego, o subsecretário do Trabalho, Mauricio Jélvez, anunciou um plano de investimentos públicos em capacitação e intermediação de mão-de-obra. O governo articula ainda a aprovação de uma nova lei de pesca. Juan José Soto, assessor do Ministério da Economia e integrante da Mesa do Salmão, instalada pelo governo federal, define as regras sanitárias e ambientais que estão sendo propostas como “extremamente exigentes”. Para ele, não há melhor forma de cuidar dos empregos do que recuperar a indústria com a adoção de novos padrões.

A perspectiva não é tão cor-de-rosa no chão de fábrica. O Observatório de Chiloé encontrou pessoas que foram despedidas e recontratadas para trabalhar mais, por salário menor e tempo determinado. “Há casos de contratos mês a mês. As pessoas se submetem a situações mais graves de exploração para garantir trabalho. Está em curso uma mudança tecnológica disfarçada de um discurso de qualificação”, denuncia Ana Becerra. “A produção de salmões no mundo está caindo porque o ambiente não suporta. É problemático engordar tantos peixes nessa escala, com consumo de tantos alimentos e produtos químicos. Temos de pensar efetivamente no que fazer com essa gente.”

“É preciso fomentar atividades diferentes para que haja variedade na geração de emprego. O dinheiro que move essa região tem como base essa indústria, o que nos fez muito vulneráveis”, observa Doris, da CUT. “Esperamos que as autoridades mudem suas políticas e incentivem outros setores produtivos para que não se repita no futuro o que estamos sofrendo hoje.”

Peixe corado na marra

riscos para a saúde

A parcela do salmão destinada ao mercado brasileiro chegou, em 2007, a 6% das exportações chilenas – percentual modesto para os produtores, mas o bastante para popularizar o peixe nos cardápios e supermercados. EUA, Japão e países da Europa, os maiores compradores, até então pagavam mais e absorviam a importação do pescado de melhor qualidade. A procura por alimentos mais leves e saudáveis também pesou. “O salmão veio suprir essa demanda”, comenta Ivan Lasaro, da Associação Nacional dos Distribuidores e Importadores de Pescados (Andip). “Sem ele, seria difícil viabilizar um negócio como o rodízio de sushi.”

A carne do salmão atlântico é naturalmente esbranquiçada; a coloração avermelhada é adquirida em tinas com corantes. Seu preço ainda não subiu porque, com a retirada precoce dos peixes da água em função do vírus ISA, houve um acúmulo de salmões de qualidade inferior. De 2007 para cá a exportação para os países ricos caiu, e a participação do Brasil subiu para 15%. Os preços devem subir em breve, pois há pouco salmão na água e não haverá tempo para reposição.

O representante dos importadores afirma ter visitado os centros de produção e verificado boas condições de trabalho. Porém, contracheques como os de Betty Herrera, empregada das salmoneras há seis anos, mostram que a aparente normalidade esconde grandes contrastes. A média salarial do segmento é de 210 mil pesos chilenos (cerca de R$ 720). Meio quilo de salmão defumado de primeira qualidade cortado em finas lâminas (slicer) pode ser vendido até por 70 mil pesos chilenos (aproximadamente R$ 240). Um operário é capaz de produzir 7 quilos de slicer por hora de trabalho.