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Agô, o predestinado

Ele não é patrocinado por fabricante de material esportivo nem de cerveja, mas tem estrela. A vida de animais abandonados como ele e as condições sanitárias das cidades seriam bem piores se não fossem entidades e defensores independentes

Luiz Alberto Carvalho

Os militantes Fowler e Teresa, com os cachorros Menina e Pituxo

“Quem o encontrou nos disse que ele estava agonizando, repetia muito isso. Daí resolvemos dar-lhe o nome de Agô”, conta Aline Cristina, técnica veterinária e funcionária do Clube dos Vira-Latas, organização não governamental (ONG) para a qual foi levado. Desde a salvação, Agô demonstrava ter nascido com o rabo longilíneo virado para a lua. Coube à protetora de animais Cláudia São Bernardo – conhecida por sempre cruzar abandonados com cães da raça São Bernardo – topar com o SRD (sigla para Sem Raça Definida) caramelo, acompanhado de duas irmãs, uma delas já sem vida.

Logo que chegaram ao Clube, com aproximadamente 20 dias de vida, os dois membros remanescentes da família foram diagnosticados com cinomose, virose que ataca principalmente o sistema nervoso e costuma ser fatal. Apenas ele resistiu e a única lembrança da enfermidade é uma leve fisgada na pata dianteira. Além de refúgio para cerca de 350 cachorros, o Clube dos Vira-Latas, em Ribeirão Pires, no ABC paulista, é a residência de Cida Lellis, presidente da entidade. Há quatro anos ela trocou a casa onde morava por uma chácara de quase 400 metros quadrados. Solteira e sem filhos, a professora aposentada fez uma opção pelos bichos.

No primeiro sábado de maio, dentro de uma bolsa, Agô embarcou em um Táxi Dog rumo à feira inaugural de animais deficientes promovida pela ONG Solidariedade à Vida Animal (Sava). A organização não possui abrigos, mas funciona como uma espécie de central responsável por convocar a rede de parceiros para feiras e mutirões de castração.

Dentro do pet shop Tancredo Dogs, na avenida Tancredo Neves, zona sul de São Paulo, histórias e latidos se misturam. Sem a pata direita da frente, amputada depois de um atropelamento, Mel se faz perceber logo na entrada. Com porte semelhante ao de um labrador, é a maior entre os SRDs acomodados em duas fileiras de gaiolas. Movimenta-se sem dificuldade e aceita carícias dos visitantes, apesar de ficar receosa com crianças. “Ela deve ter sido machucada por alguma”, acredita Eliana Matiussi, que custeia os gastos com o veterinário e a hospedagem.

Também professora aposentada, casada, dois filhos e três netos, Eliana recolhe animais em situação de risco para mantê-los em clínicas até a oportunidade de adoção. É um dos chamados cuidadores independentes, cuja missão tem sido facilitada pela internet. Pela rede, comunidades propagam denúncias de maus-tratos, pedem socorro para manutenção de abrigos e acolhimento, estimulam adoções.

Salvadores anônimos

Para obter a guarda de um animal é preciso ter mais de 21 anos, apresentar RG, CPF, comprovante de residência e ser capaz de amar e oferecer carinho. Parte do custo para manutenção dos bichos é paga com a realização de bingos e bazares beneficentes. A grande fatia, contudo, sai do bolso dos protetores.

Nos encontros que a Sava promove com cães sem deficiência, a média é de 20 adoções. Dessa vez, três deficientes encontraram um lugar para morar. Cego (olhos perfurados na rua), com cerca de 8 anos, pelos marrom-escuros, Teco acaba de ganhar nome e fará companhia para Liliane Medeiros e Renato Kenjiro. “A maioria tinha protetor, menos ele. Resolvi levá-lo”, diz Liliane. Será o sexto na casa, além dos 12 que a adestradora mantém na residência da mãe. No primeiro dia, Teco ficou um pouco alheio, mas logo mapeou o quintal e, sempre que chamam seu nome, chega balançando o rabo. 

Mesmo destino teve Pandor, depois Adamastor e atual Sheldon. “Meu marido tinha dificuldade para dizer Adamastor”, explica Natália Rogek, que chegou como voluntária e saiu como mãe adotiva. O cachorro de pelos pretos e cerca de 2 anos teve de passar por cirurgia para retirada da pata dianteira, depois de uma protetora encontrá-lo com uma fratura mal curada. Enquanto os pontos não cicatrizam, Sheldon dorme ao lado de uma gata, sua melhor amiga, na cama da bióloga e do marido.

Antes de todos eles, Agô mostrou a estrela mais uma vez. Daniele chegou às 14h na feira, motivada pelo desejo da filha de 5 anos de ter um mascote. Em vez de comprar um, resolveu adotar. “Você vê tantos abandonados na rua”, comentou. Foi paixão à primeira vista. Agô também mudou de nome e agora reina absoluto como Beethoven, na Vila Carioca, zona sul de São Paulo.

Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde, há cerca de 20 milhões de cachorros no Brasil. De acordo com os protetores, os grandes responsáveis pelo abandono são a falta de campanhas de conscientização sobre posse responsável, poucos programas de castração para controlar a superpopulação e ausência, em boa parte dos municípios brasileiros, de políticas públicas que encarem o problema dos gatos e cães abandonados como assunto de saúde pública.

A vida dos bichos – assim como as condições sanitárias das ruas – seria muito mais difícil não fossem as entidades e, principalmente, a ação dos defensores independentes. Como definiu Fowler Filho, presidente da ONG Focinhos Gelados, “um inestimável exército de gente que fica no anonimato”.

Após denúncias, Centro de Controle de Zoonoses afasta diretor

Canil de São Paulo

Responsável pelos cuidados com os animais apreendidos nas ruas, o canil do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da cidade de São Paulo é acusado de negligência. “O CCZ mistura cães sadios com doentes, grandes com pequenos. Eles acabam transmitindo viroses uns para outros ou brigando e se matando”, denuncia Arlete Martinez, presidente da Sava. “Depois que o senhor Marco Antonio Vigilato assumiu a gerência, a parceria com as ONGs para feiras de adoção foram canceladas e há obstáculos para a atuação dos protetores”, conta a jornalista Silvana Andrade, diretora da Agência Nacional dos Direitos dos Animais. Diante da pressão, Vigilato foi afastado e algumas mudanças já começam a aparecer como parcerias com voluntários para passeios com os animais e mutirões de banho e tosa aos que serão disponibilizados para adoção. Coordenadora do Programa de Proteção e Bem-Estar Animal da prefeitura, Rita Garcia aponta falta de estrutura como a principal dificuldade do órgão. Desde 2008, uma lei estadual impede a eutanásia de animais saudáveis. “O CCZ não foi preparado para ficar tanto tempo com os cachorros. Há canis para abrigá-los por até três dias. Antes eram mortos depois desse período.” De acordo com a veterinária, um edital para obras de ampliação deve sair até o mês que vem. Por enquanto, os cerca de 500 cães são separados conforme a personalidade, independentemente do porte, e os doentes são colocados com outros na mesma condição. Mas não há área de isolamento.