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Cinema que vai longe

Com as salas de exibição fora do alcance da maioria, movimentos se empenham para levar a cultura cinematográfica a lugares aonde ela nunca chega. E descobrem gente que, além de ver, quer fazer

divulgação

Encantamento: a tenda com ar condicionado do Cine Tela Brasil já esteve em 262 cidades do país

Maria Nair Nicolau, mineira de Chapada do Norte, em seus 52 anos nunca teve a oportunidade de sentar-se em uma poltrona de cinema para assistir a um filme, nem de levar seu neto, Everton Henrique, de 8 anos, a uma sessão. Moradores da Cidade Tiradentes, distrito no extremo leste da capital paulista que tem uma das maiores concentrações de conjuntos habitacionais da América Latina, estão a cerca de 40 minutos da sala de cinema mais próxima, em um shopping de Itaquera. Com o salário de babá, dona Maria não teria condições de pagar os ingressos e a pipoca para ela e o neto, de quem toma conta. 

Numa noite chuvosa de sábado, em novembro, eles estavam numa sessão popular de cinema no pátio da escola Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, em que Everton estuda, bem no centro do bairro onde moram. E o melhor: com ingresso e pipoca de graça, Maria, na companhia de seu neto, assistia a curtas-metragens num telão como o do cinema pela primeira vez. A exibição foi feita pelo projeto Cine B, parceria entre o Sindicato dos Bancários de São Paulo e a produtora Brazucah. “Não queria vir, mas o Everton pediu e eu vim. Gostei muito do filme do cangaceiro (O Nordestino e o Toque de Sua Lamparina, de Ítalo Maia). Da próxima vez venho de novo”, diz, no acender das luzes, tímida e ainda encantada. O projeto existe desde 2007 e até setembro levou o cinema nacional a mais de 11 mil pessoas em pátios de escolas, salões de igrejas e associações de bairro, com média de 110 pessoas por exibição.

Dos 5.564 municípios brasileiros, apenas 482 (8%) têm salas, de acordo com a Pesquisa de Informações Básicas Municipais de 2006, do IBGE. Para enfrentar o baixo índice de acesso devido a preço alto e ausência de cinemas, associações, ONGs e sindicatos alavancam um movimento que ganha força desde o início de 2000: a exibição de filmes nas periferias. Para Marcio Blanco, idealizador do Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (Fepa) e organizador do Festival Visões Periféricas, iniciativas começaram a surgir com a rearticulação do movimento cineclubista no Brasil. “As entidades que já trabalhavam com formação audiovisual passaram a criar pontos de exibição e, de dois ou três anos para cá, as duas coisas se juntaram.”

Bem antes disso, em 1996, os cineastas Luiz Bolognesi e Laís Bodanski saíram por aí numa perua Saveiro com um projetor de 16 milímetros, tela montável e filmes brasileiros de curta-metragem fazendo exibições em praças e escolas de São Paulo. Depois, com um gerador elétrico, seguiram para o Norte e Nordeste, parando em comunidades aonde nem sequer chegava energia elétrica. Nascia assim o Cine Mambembe, que em 2004, já com patrocínio privado, deixou de ser mambembe e virou o Cine Tela Brasil, uma sala itinerante com 225 cadeiras, projetor de 35 milímetros, som surround e ar condicionado. De lá para cá, quase 615 mil pessoas frequentaram as 3.142 sessões de cinema em 262 cidades de quatro estados.

Em 2000 surgiu nos mesmos moldes o Cinema BR em Movimento, do Programa Petrobras Cultural, que leva a sétima arte a praças públicas, associações de moradores, escolas de ensino fundamental e médio, hospitais, presídios e assentamentos agrários. Quando a comitiva do Cinema BR em Movimento passou em 2002 por São José, município próximo a Florianópolis, o resultado foi tão bom que despertou a atenção da Nação Hip Hop, organização não governamental que trabalha na divulgação da chamada cultura de rua, com foco nos jovens em situação de risco social. Logo inauguraram o Cinema na Favela, conseguiram cópias de filmes com produtoras e distribuidoras de cinema e começaram as sessões. Atualmente em reforma, o teatro que abriga o cineclube fica no centro histórico da cidade. Enquanto não fica pronto, os filmes são exibidos em escolas e auditórios de entidades, como a OAB. “As pessoas passam a ver o cinema como ferramenta pedagógica e o cineclube acaba sendo um ponto de encontro para o debate sobre cidadania, oportunidade e comunicação”, diz Claudio Rio, jornalista e produtor cultural.

Logo no início do projeto, Marcos Antonio Batista estava na plateia assistindo a Notícias de uma Guerra Particular (documentário de João Moreira Salles de 1999) e se empolgou com a iniciativa. O professor de dança começou a ajudar Claudio nas sessões e, sem condições de pagar uma faculdade, esperou por anos uma bolsa. Aos 39 anos, está na terceira fase de Cinema na Unisul. “Aqui é uma comunidade carente, a chapa esquenta. Nosso projeto é abrir um estúdio em 2010 para trabalhar com formação de cinema, teatro, aulas de dança, basquete, grafite… tudo de graça. Já conseguimos tirar 15 pessoas do tráfico. O que precisa é ocupar o tempo deles, ajudar as famílias e ficar atento, porque prá eles voltarem pro crime é fácil.”

Táticas de conquista

Fazer com que o público se identifique com o ambiente retratado nos filmes é um dos meios de atraí-lo. A ONG Oficina de Imagens, de Belo Horizonte, promove cursos de formação em audiovisual. O resultado das oficinas é apresentado aos moradores das comunidades. E um diferencial estratégico que parece funcionar bem é ter a rua como sala de projeção e como telão, quase sempre, uma parede branca.

A relações-públicas da organização, Paula Kimo, explica que o Projeto Ocupar Espaços exibe tanto o material produzido nas oficinas que oferecem quanto vídeos preexistentes dos moradores. “Usamos o contexto em que eles vivem. Você vê pessoas da sua família, vê a favela mudando. As pessoas ficam surpresas em se identificar numa obra.” Segundo ela, as apresentações, de uma hora e meia, têm sempre no mínimo 100 pessoas e já chegaram a reunir 300.

Muitos apostam em conteúdos que tragam debates sobre o contexto social e político em que a comunidade vive. A Fábrica de Imagem é uma entidade de gênero que discute a diversidade sexual no Maraponga, bairro no sudoeste de Fortaleza que se divide entre as belezas naturais remanescentes dos antigos sítios e a ocupação urbana desordenada. Segunda iniciativa de exibição da entidade, De Ponta-Cabeça, lançado em novembro, aborda questões de gênero, diversidade sexual, juventude e minorias.

O Complexo da Maré, agrupamento de favelas e conjuntos habitacionais na zona norte do Rio de Janeiro, também está inaugurando pela segunda vez um espaço para exibir filmes. Sem sala comercial no bairro, o recém-lançado Museu da Maré vai abrigar uma área de livre acesso aos moradores para exibir curtas, médias e longas-metragens brasileiros. “A intenção é formar público e difundir o cinema nacional, em especial o de produção independente. Vamos divulgar as sessões nas escolas e nos centros culturais da região e promover debates”, explica o cineasta Clementino Jr., professor da oficina de audiovisual realizada numa parceria entre o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) e a Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas do Rio de Janeiro.

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O projeto Cine B do Sindicato dos Bancários tem um público acumulado de 11 mil pessoas

Empurrãozinho

No final de 2008 o Ceasm foi selecionado no edital do Programa Cine Mais Cultura, do Ministério da Cultura, e recebeu neste ano projetor digital, telão, mesa e caixa de som, amplificador, DVD player e microfones sem fio. Isso não foi privilégio apenas do Cineclube Complexo da Maré: entre 2008 e 2009 foram entregues 314 kits de equipamentos e até 2010 serão mais 600. Outros 600 estão previstos, aguardando confirmação. Em 2009 o programa terá 519 pessoas formadas em oficinas de capacitação cineclubista que têm o objetivo de qualificar participantes para fazer programação, divulgação e debates das sessões, além de apresentar introdução à história do cinema, linguagem cinematográfica e informações sobre direitos autorais. 

Todos os filmes da Programadora Brasil são disponibilizados para as entidades aprovadas pelo edital. De acordo com o coordenador do programa, Frederico Cardoso, 17 oficinas constituíram 346 cines em todos estados: 139 no Nordeste, 87 no Sudeste, 59 no Norte, 39 no Sul e 22 no Centro-Oeste.

Em julho o cineclube Espaço Aberto foi indicado pelo Conselho Nacional de Cineclubes para receber o kit de exibição do ministério. Iniciativa de alunos e professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Centro Educacional 02 de Braslândia, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), o espaço não compete com nenhuma sala comercial, já que nessa cidade-satélite do Distrito Federal não há cinema. Todo sábado às 15 horas tem sessão na escola e o público é quase exclusivamente formado por alunos. Os filmes muitas vezes são escolhidos de acordo com o conteúdo que os professores abordam nas aulas. 

Antônio Balbino, que faz parte da coordenação, lamenta que a frequência ainda oscile tanto. “Tem dia que vêm 80 pessoas; em outros, três. Apesar de ser difícil, a gente vê que quem vem sai com um olhar diferente, percebe que filme não é só Sessão da Tarde, Tela Quente, que há vida além do Homem-Aranha.” No dia em que a Revista do Brasil foi ao Espaço Aberto, apenas seis alunos da UnB participaram da sessão.

Balbino é cineasta e recebeu menção honrosa pelo filme Âmago na Mostra Taguatinga, existente há 11 anos, que em maio inaugurou, também em parceria com a UnB, um cineclube bimestral com característica diferente: além das exibições abertas, tem o curso Cinema, Educação e Pensamento, dirigido a professores e estudantes da rede pública.

A Associação Cultural Faísca, responsável pela mostra e pelo cineclube, já recebeu equipamentos do MinC para inaugurar outros dois espaços em cidades-satélites vizinhas, um no Centro de Ensino Médio EIT, em Taguatinga, e outro no Ponto de Cultura Mundo Olhares Saberes, em Paranoá. “São trabalhos a longo prazo, é um processo bem lento. Esbarramos em mil dificuldades, mas o público vem aumentando, apesar de ainda não ser significativo”, diz o agente cultural William Alves.

Com duas exibições aos domingos, o Cinefavela, em Heliópolis, uma das maiores favelas do Brasil, em São Paulo, também trabalha para conquistar espectadores. Às 16 horas a Associação Cultural e Artística de Heliópolis e Sacomã (Acahs) faz uma sessão voltada às crianças e, às 18 horas, aos adultos. A infantil está quase sempre cheia, mas a dos adultos costuma terminar com vários lugares vazios. Os equipamentos são adequados, mas a sala ainda é dor de cabeça para o presidente da Acahs, Reginaldo de Túlio. “O espaço é precário, a porta é de aço e, como é uma rua movimentada, o barulho que vem de fora às vezes não deixa a gente ouvir o filme”, relata o autônomo que divide seu tempo entre a associação e o trabalho de vendedor. “Gasto em média R$ 200 por dia de exibição, tenho de participar de edital, fazer rifa, eventos para conseguir meios. Mas percebo que as pessoas começam a vir. Agora queremos cativar o público adulto, que é mais difícil.”

Rose Satiko G. Hikij, pesquisadora do Grupo de Antropologia Visual da USP e diretora do vídeo etnográfico Cinema de Quebrada, acredita que a demanda pela exibição começou com o movimento de produção e formação audiovisual nas periferias. “São regiões em que não há cinema e, quando existe, as pessoas não têm condições de pagar. Essas iniciativas trazem a oportunidade de acesso e ajudam na formação dos jovens que estão protagonizando esse movimento. Eles se tornam agentes culturais.”

Toda essa movimentação para democratizar a difusão de valores culturais, mais que proporcionar lazer e diversão, tem se mostrado uma poderosa ferramenta de reconstrução da imagem das periferias – muitas vezes estereotipadas pelo próprio cinema. No exercício da produção, as comunidades redescobrem, por meio da cultura, a própria identidade.